DOIS TEMAS DE PROCESSO: 1) ASSOCIAÇÃO REPRESENTA ASSOCIADOS MESMO QUE NÃO AUTORIZADA; 2) JUÍZO INTEIRAMENTE DIGITAL

DOIS TEMAS DE PROCESSO: 1) ASSOCIAÇÃO REPRESENTA ASSOCIADOS MESMO QUE NÃO AUTORIZADA; 2) JUÍZO INTEIRAMENTE DIGITAL

 

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jan/21)

 

 

Introdução

 

I – Pinçam-se das novidades diárias no mundo do direito processual os dois temas que compõem o título. Mas não se trata de matéria reservada aos processualistas, porque os assuntos interessam, potencialmente, a qualquer pessoa.

O primeiro se refere ao Tema nª 1.119 do Supremo Tribunal Federal, resultante do reconhecimento da repercussão geral do assunto da desnecessidade de autorização nominal e individual dos membros de associação para efeito de os representar em ação judicial.

O segundo assunto é um dos muitos frutos ou reflexos, no mundo do direito processual, da pavorosa, asquerosa, pestilencial e indesejabilíssima praga, ou peste,  proveniente da república popular da China, que gerou uma pandemia designada pelo epíteto de coronavírus, ou covid-19. 

Aquela pestilência, maldita entre as maldições e que vem destruindo o planeta,  viralizou no pior sentido imaginável, e deitou consequências também por sobre o universo  do nosso processo, de qualquer natureza (civil, criminal, trabalhista ou a que mais for).

Diz respeito à Resolução CNJ nº 345, de 2.020, que admite um processo inteiramente virtual, eletrônico, digitalizado, sem papéis ou trabalhos presenciais. Vejamos, com brevidade.

Associação representa seus associados, mesmo sem autorização

 

II – Inicia-se pela Ementa do ARE nº 1293130, do Supremo Tribunal Federal (Relator Ministro Presidente; julgamento em 17/12/20, publicação em 8/1/21):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO RECONHECIDO EM MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO IMPETRADO POR ASSOCIAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA DE VALORES PRETÉRITOS. CONTROVÉRSIA QUANTO À LEGITIMIDADE ATIVA. TEMAS 82 E 499 DA REPERCUSSÃO GERAL. INAPLICABILIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO EXPRESSA. PRECEDENTES. MULTIPLICIDADE DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL DOTADA DE REPERCUSSÃO GERAL. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AGRAVO CONHECIDO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.

A questão girou em torno  do Tema nº 1.119, da repercussão geral do Supremo Tribunal  Federal, cujo teor é o seguinte:

Necessidade de juntada da autorização expressa dos associados, da relação nominal, bem como da comprovação de filiação prévia, para a cobrança de valores pretéritos de título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade associativa de caráter civil.

 

III – Este é o cerne da questão, e é curiosa a sua história uma vez que o acórdão do Agravo em Recurso Extraordinário – eletrônico – nº 1293130 simplesmente desdiz e contraria fundamentalmente o enunciado do próprio Tema nº 1.119, da repercussão geral do augusto sodalício. Inverte aquele Tema...

Dá a impressão, entretanto, de que há tempos é remansosa e pacífica a jurisprudência da mais alta corte quanto a este assunto, tal qual se novidade alguma estivesse introduzindo no direito que menciona... 

O fato é que a orientação do Tema nº 1.119 foi simplesmente invertida, no sentido de que passou a ser desnecessária a autorização nominal e expressa de todos os associados para a associação civil que os congrega os representar em juízo.

Basta ler o Tema, acima transcrito, e a seguir ler a ementa do acórdão no ARE indicado: o que era necessário tornou-se desnecessário.

Transcreve-se agora um longo excerto do acórdão (que na ínegra tem 17 fls.), voto do Ministro Presidente e Relator, Luiz Fux, que fundamenta e lastreia sua conclusão, acatada pela unanimidade dos Ministros da suprema corte (fls. 8/12 da numeração original):

Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Mandado de segurança coletivo. Associação. Legitimidade ativa. Autorização expressa dos associados. Relação nominal. Desnecessidade. Precedentes.

  1. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que as associações, quando impetram mandado de segurança coletivo em favor de seus filiados, atuam como substitutos processuais, não dependendo, para legitimar sua atuação em Juízo, de autorização expressa de seus associados, nem de que a relação nominal desses acompanhe a inicial do mandamus, consoante firmado no julgamento do MS no 23.769/BA, Tribunal Pleno, Relatora a Ministra Ellen Gracie.
  2. Agravo regimental não provido. (RE 501.953-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe de 26/4/2012)  

AGRAVO. INTERPOSIÇÃO EM 25.03.2020. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. ASSOCIAÇÃO DE SERVIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DOS ASSOCIADOS E FILIAÇÃO ANTERIOR À PROPOSITURA DA AÇÃO. TEMA 499 DA SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. INAPLICÁVEL. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

  1. Reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da legitimidade ativa das associações para a impetração de mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus associados, independentemente de autorização expressa dos associados e filiação anterior à propositura da ação.
  2. Inaplicável o Tema 499 da Repercussão Geral por ausência de identidade entre as matérias trazidas na espécie e a tratada no RE 612.043.?3. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 1.233.647-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, DJe de 14/9/2020)

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SUBSTITUÍDO PROCESSUAL. LEGITIMIDADE PARA EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL FORMADO EM MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. POSSIBILIDADE. TEMA 848. ALEGADA SEMELHANÇA. INEXISTÊNCIA.

  1. O Supremo Tribunal Federal, com fundamento no art. 5o, LXX, b, da Constituição, reconhece legitimidade ativa a associações para a impetração de mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus associados, independentemente de expressa autorização ou da relação nominal desses.
  2. A matéria discutida nestes autos não se assemelha à controvérsia do ARE 901.963-RG, tendo em vista que no Tema 848 a controvérsia não era caso de mandado de segurança coletivo, e sim de ação civil pública.?3. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios (art. 25 da Lei no 12.016/2009 e Súmula 512/STF).?4. Agravo interno a que se nega provimento. (RE 1.146.736-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 3/9/2019)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. ASSOCIAÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DOS ASSOCIADOS E FILIAÇÃO ANTERIOR À PROPOSITURA DA AÇÃO. PRECEDENTES. INOVAÇÃO RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (RE 1.250.123-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 22/6/2020)

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. LEGITIMIDADE DE ASSOCIAÇÃO. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO EXPRESSA. PRECEDENTES. VERBA HONORÁRIA MAJORADA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (ARE 1.256.406-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Red. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 4/11/2020)

No mesmo sentido, em casos análogos, confiram-se ainda as decisões monocráticas proferidas nos seguintes recursos: ARE 1.286.045, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 24/9/2020, RE 1.222.004, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 4/9/2019, ARE 1.293.830, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 5/11/2020, ARE 1.235.128, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 17/9/2020, ARE 1.293.482,

nifestação sobre a Repercussão Geral

Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 21/10/2020, ARE 1.280.216, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 19/8/2020, ARE 1.289.075, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 22/10/2020, ARE 1.292.713, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 5/11/2020, ARE 1.293.843, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 5/11/2020, ARE 1.274.043, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 20/8/2020.

Destarte, a vexata quaestio veicula tema constitucional (artigo 5o, XXI e LXX, b, da Constituição Federal), que transcende os limites subjetivos da causa, especialmente em razão da multiplicidade de recursos extraordinários a versarem idêntica controvérsia. Não se pode olvidar, outrossim, a relevância jurídica da matéria, haja vista a disciplina constitucional sobre o mandado de segurança coletivo a ensejar o discrímen em relação aos Temas 82 e 499 da Repercussão Geral.

Desse modo, considerando a necessidade de se atribuir racionalidade ao sistema de precedentes qualificados, assegurar o relevante papel deste Supremo Tribunal como Corte Constitucional e de prevenir tanto o recebimento de novos recursos extraordinários como a prolação desnecessária de múltiplas decisões sobre idêntica controvérsia, entendo necessária a reafirmação da jurisprudência dominante desta Corte mediante submissão à sistemática da repercussão geral. Para os fins da repercussão geral, proponho a seguinte tese:

É desnecessária a autorização expressa dos associados, a relação nominal destes, bem como a comprovação de filiação prévia, para a cobrança de valores pretéritos de título judicial decorrente de mandado de segurança coletivo impetrado por entidade associativa de caráter civil.

Ex positis, nos termos dos artigos 323 e 323-A do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, manifesto-me pela EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL da questão constitucional suscitada e pela REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE, fixando-se a tese supramencionada.

Por fim, nos termos da fundamentação acima exposta, CONHEÇO do AGRAVO, DESPROVEJO o RECURSO EXTRAORDINÁRIO e CONDENO a parte sucumbente nesta instância recursal ao pagamento de honorários advocatícios majorados ao máximo legal (artigo 85, § 11, do CPC/2015).

Submeto a matéria à apreciação dos demais Ministros da Suprema Corte.?Brasília, 27 de novembro de 2020.?Ministro LUIZ FUX, Presidente.?Documento assinado digitalmente.  (Os destaques em  negrito e itálico  são nossos).

 

IV – Aguarda-se que essa nova orientação, que simplesmente inverteu a do Tema nº 1.119, perdure.

Foi a nosso ver acertada e adequada no mérito, sobretudo porque enterra uma burocracia e um burocratismo de todo retrógrados e francamente anacrônicos – o de exigir autorização para uma associação postular em juízo em nome de quem se associou principalmente para esse fim de defender direitos, administrativa e judicialmente.

Parece claro que a associação civil autora de ação para obter direitos de seus associados precisará indicar quais são esses associados, em lista nominal com identificação e cada qual.

Não precisará apresentar autorização expressa deles, porém terá de indicar quais são os seus associados, que judicialmente pleiteiam seu direito – independentemente de que sua filiação tenha sido posterior ao ingresso da ação, conforme se lê do primeiro dos dois parágrafos acima destacados, do acórdão no ARE 1293130.   Sim, porque de outro modo simplesmente não se poderá saber quais são os beneficiários da ação exitosa.

Quanto à mencionada excessiva burocracia procedimental, é própria à mentalidade de quem não quer trabalhar e para tanto inventa incontáveis obrigações formais, muita vez  sem nenhuma necessidade ou mesmo  nexo, aos que intentam  acorrer ao Judiciário em perseguição de seu direito, e em muito contribuíam para lhes dificultar o acesso à justiça.

A mentalidade burocrática que desgraça o Brasil desde o ano da graça de 1.500, originada, como se diz,  por quem deseja que o mundo acabe num barranco para nele morrer encostado,  se deve principalmente a isto: procura-se dificultar ao máximo as iniciativas alheias para obter direitos que, se processadas,  obrigarão alguém a trabalhar. Com efeito, crueldade maior que essa -  obrigar a trabalhar, vejam só !.. - é árduo imaginar ([1]).

Então, assim sendo, merece aplauso a decisão unânime da mais alta corte, por desburocratizar ao menos essa pequena parcela de toda a prestação jurisdicional, uma vez sabido que a exigência de autorização dos associados provinha de decisões judiciais e não de outra origem.

 

V – O segundo tema, este, sim, a este ancião e alquebrado escriba parece arrepiante.

A pandemia viral da China de um lado revelou quão frágil,  insegura e pouco integrada  é a consciência das pessoas, que passaram a temer umas às outras, a dirigir nas estradas sufocadas por máscaras e o carro hermeticamente fechado, a passar álcool em gel nas luvas, a borrifar máscaras de plástico que não servem para coisa nenhuma – senão fantasia de astronautas - com desinfetantes, a permanecer reclusas e apavoradas por meses a fio em casa, dialogando com as paredes ou a consigo mesmas, e a evitar, ad cautelam,  até a sua própria sombra. Boa parte dos controles cerebrais, se os havia, foi desligada, e assim permanece.

De outro lado, no aspecto profissional o trabalho em casa, na tela de um computador como se o mundo fosse ou pudesse ser isso, passou a ser  a constante em todo o planeta. Isso deve ter evitado, de resto, milhares de suicídios movidos pelo desespero, porém também patenteou o tremendo e avassalador vazio interior das pessoas, entre constrangedor e desanimador.

E essa reclusão que para muitíssimos pareceu forçada – e que não o é nem nunca foi, mas que a eles pareceu – sugeriu que o mundo pudesse ser outro doravante, e que existia um novo normal, como se  essa idéia fizesse algum sentido. Diante da avassaladora doença coletiva o aberrante e o esdrúxulo assumem ares de triviais.

Semelhante estapafúrdio e, depois da gripe espanhola de 1.918, inédito estado de coisas instou nossos poderes públicos a engendrar o que lhes pareceram fórmulas de sobrevivência, malabarismos procedimentais antes impensáveis, ginásticas mentais insólitas movidas por  conjeturas de pura ficção científica.

Natural que assim seja. O ser humano, trancafiado longos meses em suas celas, olhando tão só para as paredes e vitimado pelo bombardeio ininterrupto de reportagens macabras provenientes da denominada imprensa-abutre que parece torcer sempre pelo pior ([2]),   acaba vendo coisas, miragens, fantasmagorias, e a ter sua mente assaltada por ideações que antes não faziam qualquer sentido.

Assim foi e está sendo, também, com o Poder Judiciário no Brasil.

 

VI - Reconhece-se que a computação e a informática atingiram hodiernamente níveis de requinte e  pródromos de pura ficção científica. O que a cibernética realiza, em todas as áreas de interesse e de domínio do homem, supera as mais delirantes  fantasias do passado, e a imaginação até então mais tresloucada.

O modus operandi dos profissionais de qualquer área hoje em dia não é o mesmo de há cinco anos. E o modus faciendi de toda a produção humana é algo tão inédito que apenas com uma aproximação muito lenta pode ser absorvido.

O trabalho realizado exclusivamente diante de uma tela atingiu patamares de volume e de qualidade que ninguém podia antever, e que ninguém pode negligenciar.

A realidade, entretanto, é que nem tudo na vida, no mundo e na profissão   pode ser realizado por computador, nem ser virtualmente executado diante de uma tela. Só o enunciado dessa ideia faria as pessoas gargalhar há uns vinte anos.

E o que parecia comédia futurista vem a cada dia que passa mais se integra à realidade de todos, sendo que as novas gerações já nascem num mundo quase que completamente virtual, depois nele se desenvolvem e, por certo, sob as suas diretrizes haverão de morrer.

 

VII – Imerso nesse surrealista estado de coisas e inebriado pelo poder da informática, os órgãos públicos reduzem – a palavra é essa – toda atividade imaginável a telas de computador, a programas, a plataformas digitais, a nuvens-repositórios de dados, a controles totais de dia e de noite em todo rincão do universo...    sendo que até onde se sabe ainda não se conseguiu que o computador desconte cheques, traga cafezinho,  faça carinho ao patrão (como na divertida melodia do passado), tome banho pelo operador, corte seu cabelo... e coisas afins.

Mas afora isso último que\se tudo passou a ser realizável e realizado por computadores, e os mais inimagináveis programas que os informam e, inquestionavelmente,  os enriquecem até o infinito. 

Reconhece-se que o mundo converteu-se, quase, numa realidade virtual, porém nem por isso é possível com tanto conformar-se quem insiste em manter o cérebro ligado e funcionando, e que não deglute a ideia de a mãe, no andar de baixo, ao invés de chamá-lo, manda mensagem ao filho no andar de cima, informando que o almoço está pronto.  

A maravilhosa informática, por outro lado, ensejou a eclosão de degradações mentais gravíssimas. Lembremo-nos de que a natureza não se defende previamente do que se lhe inflige, porém  a seu tempo se vinga...

No Judiciário brasileiro o reflexo disto acima (temerosamente) apontado, nesta repugnante pandemia se faz sentir bem nítido por iniciativas como, desde abril de 2.020, fazer instaurar o trabalho judiciário virtual, o chamado teletrabalho, inclusive com audiências e julgamentos realizados à distância, e mais recentemente, a formal possibilidade do juízo inteiramente virtual.

Dissemos formal possibilidade porque no plano material a ideia nos parece claramente inexequível.

 

VIII - O diploma que abriu aquela possiblidade foi a Resolução CNJ nº 345, de 9 de outubro de 2.020, que se transcreve na íntegra:

 

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais e regimentais,

CONSIDERANDO que cabe ao Poder Judiciário implementar mecanismos que concretizem o princípio constitucional de amplo acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal);

CONSIDERANDO as diretrizes da Lei nº 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial e dá outras providências;

CONSIDERANDO que o art. 18 da Lei nº 11.419/2006 autoriza os órgãos do Poder Judiciário a regulamentarem a informatização do processo judicial;

CONSIDERANDO que a tramitação de processos em meio eletrônico promove o aumento da celeridade e da eficiência da prestação jurisdicional;

CONSIDERANDO a necessidade de racionalização da utilização de recursos orçamentários pelos órgãos do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO que o Conselho Nacional de Justiça detém atribuição para regulamentar a prática de atos processuais por meio eletrônico, nos termos do art. 196 do Código de Processo Civil;

CONSIDERANDO as diretrizes contidas na Resolução CNJ nº 185/2013, que instituiu o Processo Judicial Eletrônico (PJe) como sistema informatizado de processo judicial no Poder Judiciário;

CONSIDERANDO as atribuições do Conselho Nacional de Justiça, previstas no art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, especialmente no que concerne ao controle da atuação administrativa e financeira e à coordenação do planejamento estratégico do Poder Judiciário, inclusive na área de tecnologia da informação;

CONSIDERANDO as mudanças introduzidas nas relações e nos processos de trabalho em virtude do fenômeno da transformação digital;

CONSIDERANDO a decisão plenária tomada no julgamento do Ato Normativo nº 0007913-62.2020.2.00.0000, na 319ª Sessão Ordinária, realizada em 6 de outubro de 2020;

RESOLVE:

 Art. 1º  Autorizar a adoção, pelos tribunais, das medidas necessárias à implementação do “Juízo 100% Digital” no Poder Judiciário.

Parágrafo único. No âmbito do “Juízo 100% Digital”, todos os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores.

Art. 2º As unidades jurisdicionais de que tratam este ato normativo não terão a sua competência alterada em razão da adoção do “Juízo 100% Digital”.

Parágrafo único. No ato do ajuizamento do feito, a parte e seu advogado deverão fornecer endereço eletrônico e linha telefônica móvel celular, sendo admitida a citação, a notificação e a intimação por qualquer meio eletrônico, nos termos dos arts. 193 e 246, V, do Código de Processo Civil.

Art. 3º A escolha pelo “Juízo 100% Digital” é facultativa e será exercida pela parte demandante no momento da distribuição da ação, podendo a parte demandada opor-se a essa opção até o momento da contestação.

  • 1º Após a contestação e até a prolação da sentença, as partes poderão retratar-se, por uma única vez, da escolha pelo “Juízo 100% Digital”.
  • 2º Em hipótese alguma, a retratação poderá ensejar a mudança do juízo natural do feito, devendo o “Juízo 100% Digital” abranger todas as unidades jurisdicionais de uma mesma competência territorial e material.

Art. 4º Os tribunais fornecerão a infraestrutura de informática e telecomunicação necessárias ao funcionamento das unidades jurisdicionais incluídas no “Juízo 100% Digital” e regulamentarão os critérios de utilização desses equipamentos e instalações.

Parágrafo único. O “Juízo 100% Digital” deverá prestar atendimento remoto durante o horário de expediente forense por telefone, por e-mail, por vídeo chamadas, por aplicativos digitais ou por outros meios de comunicação que venham a ser definidos pelo tribunal.

Art. 5º As audiências e sessões no “Juízo 100% Digital” ocorrerão exclusivamente por videoconferência.

Parágrafo único. As partes poderão requerer ao juízo a participação na audiência por videoconferência em sala disponibilizada pelo Poder Judiciário.

Art. 6º O atendimento exclusivo de advogados pelos magistrados e servidores lotados no “Juízo 100% Digital” ocorrerá durante o horário fixado para o atendimento ao público de forma eletrônica, nos termos do parágrafo único do artigo 4º, observando-se a ordem de solicitação, os casos urgentes e as preferências legais.

  • 1º A demonstração de interesse do advogado de ser atendido pelo magistrado será devidamente registrada, com dia e hora, por meio eletrônico indicado pelo tribunal.
  • 2º A resposta sobre o atendimento deverá ocorrer no prazo de até 48 horas, ressalvadas as situações de urgência.

Art. 7º Os tribunais deverão acompanhar os resultados do “Juízo 100% Digital” mediante indicadores de produtividade e celeridade informados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Art. 8º   Os tribunais que implementarem o “Juízo 100% Digital” deverão, no prazo de trinta dias, comunicar ao Conselho Nacional de Justiça, enviando o detalhamento da implantação.

Parágrafo único. O “Juízo 100% Digital” será avaliado após um ano de sua implementação, podendo o tribunal optar pela manutenção, pela descontinuidade ou por sua ampliação, comunicando a sua deliberação ao Conselho Nacional de Justiça.

Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.  Ministro LUIZ FUX, Presidente.

 

IX – Pode-se até elogiar a boa intenção desburocratizante e modernizante do Conselho Nacional de Justiça neste caso, porém a adoção de um juízo inteiramente digital a nosso ver esbarra em impossibilidades jurídicas e materiais, e a instituição não parece fadada a vingar, o que se irá confirmar ou desmentir dentro de  poucos anos.

A grande racionalidade por trás da ideia é que a adoção desse sistema é facultativa e não obrigatória, de modo que cada juízo local o adota se quiser, nada a tanto o obrigando. É o que se lê dos arts. 1º e 3º da Resolução, que facultam e não impõem a adoção.

O parágrafo único do art. 1º informa que os atos do  processo virtual se darão e se comunicarão  através da rede mundial de computadores. O Brasil tem imensas regiões simplesmente não-servidas pela internet, de modo que nem se quiser o juízo local adotará o sistema virtual, ali inacessível.

De mais a mais, ninguém, potencial autor ou réu em juízo, está obrigado a contratar ou utilizar os  serviços da internet. É uma ferramenta absolutamente única na história da tecnologia, porém ninguém está obrigado a adotá-la, somente o fazendo se por livre exercício de vontade. Então, ninguém adotará a internet apenas para ser autor de ação judicial, ou, muito menos, réu.

 

X – Uma só questão que inviabiliza qualquer idéia de integralidade digital do processo é a da citação.

Citação por internet ? Que diabo disso vem a ser aquilo ?  Alguém ingressará na internet apenas para ser citado ? Essa só ideia, a quem acaso já foi processado, convida ao oposto: sair da internet apenas para não ser citado...

Apenas por exemplo. reza o art. 17 da lei nº 8.429, de 2 de junho de 1.992, a lei da improbidade administrativa:

  • 7oEstando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias.  (destaque nosso)

Então, seria possível digitalizar e virtualizar esta explícita ordem da lei processual ? O juiz mandaria o réu oferecer manifestação por escrito virtual, e o notificará pessoalmente de modo virtual ?

Como se faz citação virtual ? O juiz publica virtualmente a citação.. e ?..  Se o réu se der por citado em caso assim seria como preparar uma armadilha e  seguir pular nela.  Ou como combinar o assassinato de alguém com essa própria pessoa...

Com todo o respeito, os mínimos  da formalização processual são com isso agredidos de modo irremediável. Como o palito no sanduíche, não desce pela garganta do experimentador.

Mesmo que o réu aceite ser citado virtualmente a lei estaria sendo desrespeitada, porque uma resolução de um conselho nacional não revoga nem modifica a lei, nem muda o direito. A regra legal  não dá oportunidade a que as partes transijam  ou se acomodem quanto a obrigações formais que a mesma lei lhes impôs – simplesmente isso. 

Tal poderia suscitar um incidente de nulidade do processo a partir de então, e se este humílimo escriba fora juiz, demandado nesse sentido, proveria o incidente.

Se ninguém é obrigado  fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, tem-se então que uma resolução do Conselho Nacional de Justiça não tem condão de afastar nem de modificar a lei.

 

XI – Reza o art. 4º da Resolução que

 Os tribunais fornecerão a infraestrutura de informática e telecomunicação necessárias ao funcionamento das unidades jurisdicionais incluídas no “Juízo 100% Digital” e regulamentarão os critérios de utilização desses equipamentos e instalações.

Com todo respeito, alguém acredita ou imagina que isso possa dar certo. Os Tribunais locais terão condição de amparar digitalmente os postulantes ?   Ninguém se olvide de que o Brasil não é apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília...

Por fim, os arts. 7º e 8º parecem ter sido escritos para a Suíça ou para o país das maravilhas, de Lewis Carrol.  Se nem o tão decantado e alardeado juiz de garantias pôde ainda ser implantado no Brasil –  se é que um dia poderá  e será, como não se deseja  -, então que dizer destas futurísticas  metas,  virtualmente infactíveis ?

Com todo o máximo respeito, o melhor da – de resto bem intencionada - Resolução nº 345 do CNJ é a facultatividade da implantação do juízo exclusivamente digital, a cujo público se recomenda com síntese máxima: - nem pensar.

 

 

[1] E esse é o motivo de tanta resistência à volta ao trabalho presencial, muito particularmente no ensino, em face da (reconhecidamente asquerosa) pandemia que neste momento ainda nos assola: voltar a trabalhar !  Essa idéia arrepia até o fundo da alma as pessoas que, como a imensa legião de servidores garantidos por e estáveis em  cargos públicos, não se oporiam a que a calamidade pandêmica fosse prorrogada até 2.030, porque. além de o trabalho em geral lhes constituir um verdadeiro horror existencial,  a sua sobrevivência está garantida. Mas se reconhece que não é apenas no ensino que aquilo ocorre, todo o serviço público devendo ser abrangido, com a ressalva de honrosas exceções integradas por trabalhadores sérios de propósito e que exigem fazer jus ao que recebem.  Essas últimas camadas são integradas, sobretudo, pelos servidores da saúde, as primeiras grandes, naturais e heróicas vítimas da calamidade.

[2] Mas cuja verdadeira motivação, neste janeiro de 2.021  em nosso país, é tentar por todo modo denegrir e prejudicar o atual presidente da República, que  cortou da imprensa escrita, segundo ele próprio anuncia, cerca da três bilhões de reais por ano em patrocínios,  e mais de um bilhão de reais por ano a uma gigantesca rede de televisão.