PROCESSO ADMINISTRATIVO: 1) PROVA EMPRESTADA; 2) EXCEDIMENTO DE PRAZO

PROCESSO ADMINISTRATIVO:  1) PROVA EMPRESTADA;  2) EXCEDIMENTO DE PRAZO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/22)

 

I – Neste breve artigo se comentam duas Súmulas recentemente aprovadas – em 13 de setembro de 2.021 - pelo e. Superior Tribunal de Justiça através de sua 1ª Seção, dentre as seis que foram aprovadas na mesma sessão.

São as seguintes:

Súmula 591: É permitida a “prova emprestada” no processo administrativo disciplinar, desde que devidamente autorizada pelo juízo competente e respeitados o contraditório e a ampla defesa.

Súmula 592: O excesso de prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar só causa nulidade se houver demonstração de prejuízo à defesa.

O tema central é o processo administrativo disciplinar, PAD, e naturalmente já existiam muitas decisões, administrativas e judiciais  no mesmo sentido agora sumulado. Quando as súmulas são editadas é porque a tendência jurisprudencial é antiga e pacífica.

Com a sumulação reduz-se significativamente, ou mesmo se elimina de todo, o trabalho dos advogados para fazer valer regras, em geral já pouco controvertidas, em favor dos seus processados clientes.

Resulta  sempre muito mais tranquilo às comissões  processantes ou aos julgadores singulares nos PADs acatarem teses sumuladas do que outras que ainda não o foram, e que a cada novo processo ensejam folhas e folhas de demonstrações lógicas, doutrinárias e jurisprudenciais – com muito trabalho e muito tempo envolvido na sua elaboração -,  daí a relevância das súmulas em qualquer área do direito.

São a previsão, ou a síntese, do que seguramente irá ser decidido quanto ao tema posto em disputa.

 

II – A Súmula 591 cuida de prova emprestada, verdadeiro sonho dos advogados no curso dos processos administrativos e judiciais, porque significa a prova que já está pronta e completa, e que foi produzida em outro processo, em geral com objeto semelhante, e que com isso não demanda mais trabalho, com frequência penoso e exaustivo, até sua configuração final.

A prova de um acontecimento, de uma circunstância, de um evento, ou  dos motivos que que o cercaram – ou seja tudo que seja relevante trazer ao processo em favor de teses defensivas ou acusatórias contra alguém -, tudo isso pode existir completo e acabado em um outro processo que a parte conheça.

Pode então esse material probatório, originário de outro processo, ser autorizadamente emprestado para este processo atual, na exata condição de prova emprestada.

Não existe nem se vislumbra qualquer razão para que provas emprestadas de algum processo válido e correto estejam impedidas de serem emprestadas para outro processo igualmente válido.

Qualquer obstaculização ao emprego de prova emprestada ao menos  não cheira bem, porque a parte que tem medo de provas, vindas de onde for porém  aplicáveis ao seu caso concreto e em curso, deve temer a verdade que aquelas provas podem revelar.

 

III – Com todo efeito, além de o indeferimento arbitrário de prova emprestada constituir nítido cerceamento do contraditório e da ampla defesa constitucionais em qualquer processo,  é atitude que carrega em si uma inafastável suspeição de que o resultado do processo está sendo direcionado não ao melhor direito, mas ao ocasional resultado faccioso, desviado de sua finalidade de justiça, ou corrompido, ou então àquele resultado ditado pela moda do dia, ou pelo discurso político da ocasião, ou pelo moralismo dos fariseus de plantão. 

Detesta prova emprestada quem tem medo da verdade, quem se esgueira pelas sombras dos fatos, e quem tenta impor a sua versão  aos acontecimentos reais, muita vez arquiconhecidos da população.

A prova que se visa emprestar de um para outro processo há apenas de ter sido legal e legitimamente produzida no processo de origem, e o empréstimo poderá ser indeferido apenas no caso  de o julgador demonstrar que foi ilegal, por exemplo por clandestina, ou forjada, ou fabricada, ou não probatória mas apenas indiciária, ou detentora de qualquer outro defeito que a desqualifique como prova.

Não se defere o empréstimo de prova capenga, jurídica ou processualmente esdrúxula. materialmente desarrazoada mas que no processo de origem acabou sendo processada – e aqui o ponto crucial desta questão: até que ponto o julgador da causa pode, alegando a imprestabilidade da prova, indeferir o seu empréstimo de outro processo para este que agora conduz ?

 

IV – Parece  questão subjetiva e portanto difícil de bem equacionar, porém algo é certo: se é incontroverso que a avaliação da prestabilidade ou da imprestabilidade da prova contém – por vezes forte – subjetividade, é também certo que a técnica  processual exige que o julgador, para indeferir o empréstimo, declare  nos autos, com força de decisão (ainda que interlocutória), que aquela alegada prova não é processualmente aceitável, indicando na sequência por que motivo(s) não o é.

E o só fato de que no processo de origem foi aceita não vincula – entendemos – a vontade do julgador deste atual processo quanto a essa questão.  Este juiz não precisa aceitar o que outro juiz, em outro processo, aceitou como prova eficaz, na medida em que cada cabeça produz uma sentença como se sabe.

Vincula, em verdade,  apenas no seguinte sentido - e isto é absolutamente objetivo -: se este julgador  reconhece a legitimidade daquela prova no contexto de onde proveio, então sua vontade está agora vinculada à obrigação de, uma vez invocado,  deferir o empréstimo.

Para ser indeferida a prova por empréstimo é requisito que seja ela pura e simplesmente desclassificada como prova, desqualificada juridicamente, e por consequência oficialmente esvaziada de qualquer  conteúdo probatório que a parte lhe tenha tentado dar.

Figuremos outro exemplo: para uma ptova de algum modo obtida de um processo que correu em segredo de justiça  a nosso ver deve ser indeferido o pleito de empréstimo para outro processo. Trata-se de prova ilegal fora do processo de origem, de modo que apenas por isso não pode ser veiculada extra-autos originários.

Em qualquer caso, se o julgador deste atual processo admite que no processo de origem aquela prova valeu – porque jurídica,  formal e materialmente perfeita -,  então não se imagina como poderá defender que agora, neste atual processo, não valha.

Ou uma prova – pela razão que for -  deixa de ser prova, ou de outro modo precisará ter o seu empréstimo deferido.

 

V – O último ponto de comentário a esta súmula é o referente à garantia de contraditório e de ampla defesa, ali consignada. Parecia implícita na regra essa garantia constitucional, mas não pareceu  demasiado ao Tribunal sumulador  repisar o tema.

Não é pelo fato de que no processo de onde se pretende colher prova emprestada o acusado se defendeu amplamente – tendo a prova em questão dado certo ou dado errado contra ou a favor de  alguém, tanto faz – que agora neste novo processo, se o empréstimo da prova for deferido, se poderia furtar  à parte contra a qual a prova foi produzida  o contraditório e a ampla defesa.

O que se passou no processo de que se origina a prova passou-se lá, e pouco importa, para agora, o resultado daquilo, naquele contexto. A juridicidade da prova independe do resultado que ela produziu no processo.

 O fato é que, sendo inserida prova emprestada em algum processo, a parte contra quem é a prova tem assegurado todo o seu amplo e constitucional direito de defender-se por todos os meios admitidos em direito, exatamente conforme assegura a Constituição, art. 5º,  inc. LV.

A prova emprestada,  nesse sentido,  faz o papel de uma nova acusação, contra a qual toda defesa precisa estar assegurada – e se for subtraído esse direito à parte caberá em seu favor mandado de segurança, precisamente por violação ao seu direito constitucional de ampla defesa.

Se existe atitude que o Judiciário positivamente não tolera nem admite, di-lo a experiência e a observação, é o cerceamento de defesa.

 

VI – A Súmula TST nº 592 cuida do excedimento do prazo máximo estatutário para a conclusão do PAD, declarando que esse excedimento apenas gera nulidade se prejudicar a defesa.

O estatuto dos servidores federais, que é a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1.990 (lei do regime jurídico único), prescreve:

Art. 152. O prazo para a conclusão do processo disciplinar não excederá 60 (sessenta) dias, contados da data de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem.

Os estatutos estaduais, distrital e municipais de servidores públicos rezam mais ou menos na mesma toada, fixando prazos expressos e claríssimos para a finalização dos PADs.

A regra que o STJ agora sumulou é antiga e conhecida: mesmo que o PAD não se encerre no prazo legal pode legitimamente a decisão produzir efeito e resultado fora do prazo, salvo se essa delonga – agora  inova a súmula – (demonstradamente) prejudicar a defesa.

 

VII - Então alguém deveria responder a pergunta: por que o estatuto fixa aquele prazo, se ele não precisa ser cumprido ?   Por que admite prorrogá-lo uma vez por igual período, se também isso não é para ser observado nem respeitado ?

Se o indiciado perde prazo que tem para se defender arca com as consequências.  Por que razão então apenas o indiciado está sujeito a prazos preclusivos, se o ente público que o processa não sofre a mesma sujeição ?

Isso seria a igualdade que a Administração precisa cumprir por força do art. 37 da Constituição ? 

Isso porventura prestigia a legalidade, também do art. 37 constitucional, se o ente processante pode descumprir ou desconsiderar  um prazo legal ?

Se acaso um PAD demora dez anos para ser concluído ...  tudo bem ?..     O indiciado pode ser apenado ?  

E o indicado, for força de outro mandamento estatutário,  precisou esperar os dez anos para poder aposentar-se – se acaso não tiver sido  demitido em razão do PAD ?  Está correta a regra ? É equânime ?   É justa, ou mesmo apenas razoável, num estado democrático de direito ?

 

VIII - Ninguém alegue que esse prazo acima é caricatural, abusivo ou qualquer outra coisa inaceitável, porque a súmula nada diz a respeito, e onde a regra legal não distingue não cabe ao intérprete distinguir.

A súmula legitima a aplicação das penas e do regime punitivo a servidores processados há dez ou a vinte anos. Basta que o processo dure tudo isso, não se encerrando antes.

Se a regra antes de ser sumulada era péssima, com a súmula tornou-se pior, e contribui à larga para a imagem brasileira do país do faz-de-conta, do fingimento, do direito  para inglês ver.

Se a Administração admitida e confessadamente não reúne condição para concluir processos administrativos no prazo da lei, ora, então com 32 anos decorridos da lei federal já não era momento de se alterar a lei e ampliar aquele prazo ?

A regra lembra o caso das chamadas polonetas, títulos de crédito que o Brasil concedeu à Polônia décadas atrás e que continham a particularidade de não ter prazo de vencimento !

Isto é país cônscio da sua responsabilidade com o dinheiro público ou circo de cavalinhos de subúrbio ?

Mas não é diferente do prazo estatutário para concluir PADs, o qual...  sic et simpliciter não precisa ser considerado pela autoridade !

 

IX – Outra pergunta árdua de responder é a seguinte:  como porventura uma dilação indeterminada de prazo pode não prejudicar a defesa ?

Algum advogado pode contratar serviços eternos, sem cobrar por isso do cliente?    Faz sentido ?  Ninguém conte com este escriba.

Como a permanente mobilização do servidor indiciado, por não se faz ideia de quanto tempo além do prazo legal, pode não prejudicar a sua defesa ?

Então alguém se defende continuada e interminavelmente,  e produz prova sobre prova, e contesta acusação atrás de acusação, e produz diligências, e faz ouvir testemunhas, e junta laudos e perícias, e enceta todos os malabarismos defensivos que puder, sem que se considere isso prejuízo pessoal, e prejuízo da sua defesa ?  Alguém honesto de propósito defende a ideia ?

 

X – Um pouco mais.   Como imaginar que se a ação judicial que poderia condenar o indiciado em um PAD pelo mesmo cometimento já prescreveu, então como tecnicamente conceber  que o PAD ainda não deva estar encerrado, e que possa prosseguir ?   

Pode então a Administração pública fazer o que o Poder Judiciário não pode ?  Por razões práticas e compreensíveis se reconhece que dificilmente tal ocorre, mas a súmula abre ensancha.

São perguntas, repita-se,  relativas a fatos que, nessas quantidades,  dificilmente acontecem na vida real, porém que  pela aberta generalidade da Súmula STJ nº 592 podem perfeitamente ter cabimento em nosso direito !

 

XI - Uma regra jurídica não pode de vez em quando dar certo.  Ou é rígida e objetiva, com limites declarados e visíveis,  ou simplesmente deve ser eliminada do ordenamento jurídico, porque antes atrapalha que auxilia na ministração do direito.

Os prazos estatutários para o PAD foram desmoralizados por completo pela reiterada jurisprudência, agora, e respeitosamente,  em má hora sumulada.

Augura-se que seja um dia invertida a Súmula nº 592, e alteradas as leis estatutárias para estabelecer  prazos que as autoridades processantes julguem suficientes para concluir seus processos administrativos disciplinares – recomendação que por evidente não vale para os entes locais que cumprem os prazos legais.

Num estado juridicamente organizado causa  muito má  impressão  um processo administrativo disciplinar pautado por semelhante indisciplina em matéria de prazos.