PATROCÍNIO NA NOVA LEI DE LICITAÇÃO

PATROCÍNIO   NA   NOVA   LEI   DE  LICITAÇÃO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(mar/22)

 

 

I – Este tema do patrocínio pertence por excelência ao mundo privado, particular.  Patrocínio é custeio, patronato, amparo, sustentação financeira, estipêndio, por vezes mecenato mesmo, que é a duradoura atitude de amparo e proteção do mecenas a alguém.

O mundo empresarial, quase sempre incentivado por legislação tributária específica,  patrocina  rotineiramente projetos, trabalhos e  eventos da mais ampla natureza que algum particular se preste a realizar, como assim são filmes, peças de teatro, exposições, festivais, oficinas, cursos da mais variada  duração, ou de outro lado extensas e abrangentes pesquisas técnicas, científicas, arqueológicas, históricas ou culturais do mais amplo espectro.

Publicações importantes e registros de pesquisas e de extensois trabalhos merecem, há longas décadas, patrocínio e mecenato exercido por pessoas físis e jurídicas abastadas e de fôlego suficiente, e mo=vidas de espírito público acendrado o bastante para vislumbra a funda utilidade do seu investimento.

E fácil é entrever a importância disto: sem o patrocínio de Lord Carnavon a Howard Carter no Egito há mais de um século, em que pé estariam hoje os conhecimentos de egiptologia ?  Aquele salto monumental do que até então se conhecia até o que se passou a saber... como teria sido sem o patrocínio ?

E sem o patrocínio de entidades de variada natureza como estaria a medicina e a farmacologia de hoje tanto quanto a química,  a física, a eletrônica  e a mecânica - para citar apenas algumas facetas mais refulgentes do mundo moderno ?

Apenas  recentemente – algumas décadas - a ideia de o poder público custear e bancar os custos de produções, trabalhos, ofensivas, iniciativas, longos contratos de qualquer natureza e sempre de interesse público, porestados pelo particular, vem sendo implementada a passos firmes e seguros.

O patrocínio de iniciativas culturais, técnicas, científicas, arquitetônicas, urbanísticas, de planejmento,  ou de prestação de serviços públicos ou de utilidade pública dentre outros intermináveis objetos, sempre foi uma proveitosa ideia, e se na administração pública antes não se implementou consagradoramente foi por deficiência de visão de governantes e estrategistas, e não por outro motivo.

Patrocinar eventos e ofensivas evolucionistas de toda natureza  atualmente, entretanto, é uma necessidade e deve  ser uma meta prioritária da administração pública.

Resta equacionar, nessa circunstância,  como implementar eficientemente as políticas públicas de patrocínios,  questão essa que na nova lei de licitação – a Lei nº 14.133, de 1º de abril  de 2.021 – exige reflexão, e depois decidida ação.

 

II – Frequentemente  a simples existência do patrocínio é o fator que diferencia realizar, ou acontecer,  e não realizar, ou não acontecer, seja qual for o evento.  Grande parte das ofensivas onerosas que alguém realiza ocorre apenas porque alguém as patrocinou, e com isso as viabilizou financeiramente.

Na administração pública um número assustador de eventos acontecem, e levam a chancela do adminsitrador, pura e simplesmente porque foram patrocinadas,  tendo conseguido  a autoridade  celebrar contrato de patrocínio; de outro  modo, nada teria ocorrido.

O administrador público empreendedor  passa o seu mandato na perseguição de patrocínios, sabendo da insuperável limitação dos recursos públicos – e os obtém também em vasta quantidade, e através deles realiza memoráveis eventos.

Sendo os patrocínios privados ao poder público tão tradicionais e comuns, então não podem ser irregulares, porque não se os  conceberia durando décadas ou séculos se ilegais, inconvenientes ou desinteressantes. Tratando-se de receita aos cofres públicos -  ou ao menos de não-despesa pública - tudo se simplifica, sendo sabido que de graça admite-se até ônibus errado, injeção na testa ou cafuné de macaco.

Quanto à questão oposta,  de o poder público patrocinar iniciativas particulares, ainda que perfeitamente legítimo também, aqui se exigem mais dedos, maior cuidado e mais detalhadas justificativas considerando-se  a despesa pública que envolve, inversa à receita do patrocínio privado a iniciativas públicas.

E a despesa pública, sobre a qual todos os olhos do mundo estão postos, tal qual as minas terrestres espalhadas e esquecidas em antigos palcos de guerra, é assunto potencialmente explosivo.

Como a – ainda nova, e de aplicação ainda  alternativa à da Lei nº 8.666/93  - lei de licitações, a Lei nº 14.133/21, focaliza esses assuntos ?

 

III – Inicia-se por patrocínio privado ao poder público.

Os problemas neste caso, se é que existem, são mínimos, insignificantes, na medida em que para alguém patrocinar eventos ou ofensivas governamentais, custeando total ou parcialmente esses programas, e em caráter exclusivo ou compartilhado com outros patrocinadores, nenhum empecilho institucional existe, nem pode existir.

Em geral os patrocínios privados se dão com a contrapartida de anúncios ou publicidade dos patrocinadores em locais visíveis da atividade patrocinada.

Essa publicidade, desnecessário lembrar,  há de ser moderada e em bases condizentes com a dignidade do evento patrocinado, porém não existem regras legais gerais ou nacionais sobre esse tema, resolvendo-se-o com base ou na (dificilmente existente) legislação local, porém  mais nos costumes e nas tradições de cada localidade.

Assim se resume este enfoque: se o próprio evento público é regular, institucional e de interesse ou de utilidade pública, então com muito mais motivo qualquer patrocínio particular que obtenha será, iso facto, legítimo, regular e formalmente perfeito.

Não se cogita de licitação para o caso, porque é pouco imaginável instaurar uma competição enrte interessados em patrocinar eventos públicos: em vez disso, o razoável é que o ente público se mantenha permanebtremente aberto a patrocínios privados.

Mas o usual, bem ao inverso, é o poder público correr atrás  de patrocindores com grande apetite, uma vez que, repita-se, com freqüência se existe patrocínio o evento acontece, mas se não existe o evento simplesmente deixa de ser programado, dada a proverbial escassez de recursos públicos.

E a motivação do patrocinador, parece claro, não é tanto a de se valer comercialmente da publicidade obtida com o patrocínio, mas antes a de  servir ao ente público, com acendrada dose de idealismo e de cidadania.

As duas leis nacionais de licitação (nºs 8.666/93 e 14.133/21) silenciam totalmente sobre esta questão, até porque não faria muito sentido tentar regrar patrocínios privados ao poder público, matéria típica de idealismo e de boa-vontade e que não enseja despesa pública.

 

IV – Quanto ao patrocínio público de eventos ou de empreendimentos privados, a questão já não é tão simples.

De antemão fique claro que a nova lei de licitações (L.14.133/21) , tanto quanto a antiga (L. 8.666/93) não cuida desse assunto de patrocínio, nem em destaque nem no correr de outros diosciplinamentos.

O único patrocínio referido nas duas leis é o de propositura de ações ou de defesas judiciais, e mesmo assim como gato sobre brasa, ligeirissimamente, apenas para informar que é inexigível licitação nesse caso se dentro das circunstâncias que a lei descreve.  

A própria palavra patrocínio nesse momento foi uma homenagem ao jargão dos advogados, porque porderia ter sido referida pela simples contratação, eis que outra coisa não é. A grande instituição do patrocínio cultural, ou técnico, ou de saúde, sempre como custeio governamental de iniciativas particulares de interesse público, não é nunca referida.

Estabeleçamos, então, algumas categorias de patrocínios, ou de objets ‘patrocináveis’, tentando aclarar a questão.

 

V – Tenha-se presente antes de mais nada, entretanto, que  não foi  esta Lei nº 14.133/21 que alterou as regras da licitabilidade  de patrocínios: o patrocínio que exigia ou exige  licitação pela lei nº 8.666/93 continua a exigi-la na nova lei, e o que a inexigia continua inexigindo.  O que foi - em parte - alterado de uma lei para outra foram os critérios de julgamento das licitações.

Reza o art. 33 da Lei nº 14.133/21:

Art. 33. O julgamento das propostas será realizado de acordo com os seguintes critérios:

I - menor preço;

II - maior desconto;

III - melhor técnica ou conteúdo artístico;

IV - técnica e preço;

V - maior lance, no caso de leilão;

VI - maior retorno econômico.

 

Sabendo-se o que é um contrato de patrocínio, então desde logo se observa que todos estes critérios da nova lei são material ou juridicamente inaplicáveis exceto possivelmente o do inc. III, melhor técnica ou conteúdo artístico, que vem disciplinado no art. 35:

Art. 35. O julgamento por melhor técnica ou conteúdo artístico considerará exclusivamente as propostas técnicas ou artísticas apresentadas pelos licitantes, e o edital deverá definir o prêmio ou a remuneração que será atribuída aos vencedores.

Parágrafo único. O critério de julgamento de que trata o caput deste artigo poderá ser utilizado para a contratação de projetos e trabalhos de natureza técnica, científica ou artística.

 

Se, desse modo,  o poder público pretende patrocinar ‘projetos e trabalhos de natureza técnica, científica ou artística’, e se o trabalho patrocinável não contiver uma tal característica de  singularidade que torne incomparável qualquer um imaginável com qualquer outro – porque nesse caso a licitação será inexigível – então qualquer licitação precisará ser de melhor técnica ou conteúdo artístico.

Não se imagina preço influindo na escolha, salvo na organização de competições desportivas, ou de certame c similar, algo que nada tem de especial ou de singular.

 

VI – Partindo desta premissa, podem ser exemplificativamente classificados os objetos de patrocínio em categorias como:

- eventos culturais locais, de curta duração, de qualquer natureza (apresentações artísticas,  shows), apresentados por habitantes locais ou não;

- produção de filmes, vídeos, documentários, peças de teatro, mostras;

- produção de livros e documentos de interesse público;

- tours ou expedições culturais com viagens dentro do país e ou fora dele;

- competições esportivas, dentro e fora da localidade patrocinadora;

- pesquisas científicas, arqueológicas ou sociológicas;

- produção de monumentos comemorativos de fatos, pessoas ou datas relevantes;

- concursos artísticos ou literários, com premiação  aos vencedores;

- bolsas de estudo, nacionais ou internacionais;

- projetos de interesse público e de qualquer natureza;

- projetos envolvendo  transferência de tecnologia ou desenvolvimento  tecnológico;

- campanhas e projetos de saúde, e ofensivas junto à população com propósito educativo sanitário,

e outros variados empreendimentos de interesse público ou social.

 

VII – A primeira preocupação da autoridade candidata a patrocinadora é a de ter demonstrada a utilidade pública, o interesse público, o proveito das faixas populacionais ou profissionais envolvidas, na realização do evento patrocinável.

Sem o cumprimento desse essencial requisito nem se deve cogitar qualquer patrocínio público ao que quer que seja, pois que os recursos públicos somente podem ser vertidos em prol do interesse da população, ou de segmento dela. Essa justificativa da despesa pública, seja através de patrocínio ou não.

Observe-se: não é porque é licitável  que ipso facto o  objeto pode ou deve ser patrocinado; e não é porque pode ser licitado que pode ou deve ser patrocinado – uma condição não determina a outra.

O que justifica o patrocínio é o interesse público; o que conduz à inexigibilidade da licitação, sendo patrocinado o objeto ou não sendo,  é a singularidade do objeto em causa. Nenhuma outra relação de características é obrigatória.

 

VIII - Uma vez atendido o requisito de se ter demonstrado o interesse público no evento a patrocinar, então se apresenta a grande questão, imensamente discutível e que enseja as leituras e as interpretações mais variadas e contraditórias entre si, da natureza singular do objeto.

Alguns dos objetos acima relacionados têm natureza absolutamente singular, e cada trabalho, ou cada proposta,  é incomparável com qualquer outro(a). Nesse caso uma licitação não faz o menor sentido, porém o árduo é chegar a um consenso sobre o que contém tal característica de singularidade.

Uma obra de arte clássica (pintura, escultura, música, teatro) dificilmente pode ser comparada com outra, para não se dizer desde logo que nunca pode.

Se o objeto patrocinável for a produção de alguma delas, então não hesitamos em opinar pela inexigibilidade de licitação – ou se estará diante de uma licitação patética, esdrúxula, desprovida do mínimo senso de civilidade e de cultura.  Como se compara uma estátua com outra, ou um quadro artístico e autoral com outra peça da mesma natureza ?

Por similaridade, o patrocínio da produção de um filme, um documentário ou uma peça de teatro parecem enquadrar-se na mesma categoria de inexigibilidade, uma vez que a singularidade de cada peça parece inquestionável.  Não faz sentido imaginar-se licitação.

Se se trata de eventos culturais locais, de curta ou de média duração, como apresentações musicais com artistas  da localidade, folclóricas ou não, dificilmente comportam licitação, dada a natureza singular da arte apresentada. Uma pesquisa de mercado é sempre muito recomendável, mas os parâmetros não são absolutamente determinantes, podendo os valores oscilar em percentual razoável.

O mesmo se diga se o objeto do patrocínio for a realização de pesquisas científicas, arqueológicas, sociológicas ou de outra ciência, humana, biológica ou exata, e também o mesmo se aplica à confecção de  monumentos comemorativos de fatos, pessoas ou datas relevantes, ou de algo que mereça um monumento para a preservação da memória.

A produção de livros, se contratada a autores consagrados, repele licitação, porém se se tratar de um documento de pesquisa a ser produzido, e se os parâmetros de conteúdo forem rigorosamente objetivos, esse objeto comporta a licitação de melhor técnica e conteúdo artístico, como se recomenda realizar.

Excursões, tours e viagens com apresentações, dentro do país ou fora dele, se envolverem matéria artística ou muito peculiar  dos apresentadores, não comporta licitação.

A organização e a prestação do serviço de realização de competições esportivas comporta licitação, e até mesmo por menor preço, porque se trata de matéria puramente de administração e não de conteúdo singular.

Quanto a objetos como a promoção de concursos artísticos ou literários, ou o selecionamento de merecedores de  bolsas de estudo, nacionais ou internacionais, esse patrocínio é perfeitamente licitável, recomendando-se a melhor técnica ou conteúdo artístico, que contém elementos muito pessoais de julgamento – com subjetividade inafastável, portanto – porém se revela melhor que outros critérios de julgamento nesta lei.

O patrocínio público dos três últimos exemplos anotados acima, - (I) projetos de interesse público e de qualquer natureza;   (II) projetos envolvendo  transferência de tecnologia ou desenvolvimento  tecnológico, e   (III) campanhas e projetos de saúde, e ofensivas junto à população com propósito educativo sanitário – parece licitável pela melhor técnica ou conteúdo artístico.

Em princípio inexiste algum elemento tão singular, em qualquer caso, que afaste a licitabilidade por inexigibilidade de licitação. O que nunca pode acontecer  é o aviltamento,  a vulgarização, a igualação grosseira de objetos diferentes para fim de se licitar o seu patrocínio por critérios que privilegiem o menor preço, porque essa seria uma atitude primitiva e em tudo inconsentânea com o requintamento técnico ou humanístico do objeto patrocinável.

 

IX – Observa-se quão difícil é eleger critério justo e seguro para saber da licitabilidade de certos objetos refinados, e por excelência, dentre esses, o dos patrocínios públicos.

A orientação  principal em matéria de patrocínio público para nós, claramente, é a da inexigibilidade de licitação.

Essa orientação  comporta exceções conforme os casos concretos e reais, alguns dos quais perfeitamente licitáveis não por preço, porém é vedado ao administrador reduzir a dignidade do objeto do patrocínio por obrigar candidatos a se submeterem a certames adequados a vendedores de materiais, ou a prestadores de serviços comuns e licitados com toda frequência.

É preciso separar o objeto material de trato comum e indiferenciado, que é de longe o mais comum,  de material cultural, refinado, intelectual, humanístico, evolucional.

Não foi a nova lei de licitações que alterou essa necessidade de cuidado, de atenção a cada objeto e de adequação do contrato pretendido ao grau de civilização  que a nação atingiu, porque isso implicaria uma regressão cultural inadmissível.