ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E DESPESAS COM PESSOAL NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS   E  DESPESAS  COM  PESSOAL NA  LEI  DE RESPONSABILIDADE   FISCAL

 

Ivan Barbosa Rigolin

(abr/22)

 

 

I – Ressurge, sob a esfera de influência da Lei das Organizações Sociais -  a   Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1.998 - o velho tema das despesas com pessoal, da forma como foi tratado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2.000.

Considerando-se que as Organizações Sociais são uma  instituição, de quase  década e meia em nosso direito, que teve uma trajetória explosivamente ascendente nos seus primeiros anos e  a seguir sofreu por diversas razões um visível desgaste institucional junto aos entes públicos e sobretudo  àqueles da fiscalização (Ministério Público, Tribunais de Contas, Corregedorias, Ouvidorias, órgãos de controle interno), e dada a dimensão que alcançaram no setor público, as suas dificuldades ou as vicissitudes ocasionais que enfrenta merecem reflexão detida.

Quer as que sofreram  desgastes na sua imagem,  quer as que não sofreram nenhum  deslustre em inúmeras comunidades, o fato é que as OSs se impuseram dentro da organização administrativa de Estados e de Municípios de modo fulminante, praticamente irreversível em muitos casos e dentro de variadas áreas de atuação.

Representaram uma verdadeira revolução institucional  no seio de Prefeituras Municipais e de governos estaduais como pouca vez se testemunhou no passado com relação a  qualquer espécie de entidade privada, ou mesmo público-privada.

Constituem – inobstante o referido desgaste em face de gerenciamentos duvidosos assaz de vezes constatados - uma gigantesca e exitosa parceria entre os entes públicos e as empresas privadas prestadoras de serviços e solidamente organizadas em grandes estruturas, as quais como regra substituem vastos aparatos estatais que com frequência máxima  deixava imenso a desejar.

Se passou a ser tão vasta a relevância das OSs dentro das administrações locais e regionais, então forçosamente os seus problemas institucionais de certo modo passam também a ser públicos, na medida em que envolvem umbilicalmente o  interesse dos cidadãos e da sociedade usuária e dependente.

Trata-se de serviços essenciais – como saúde, educação, trânsito e transporte, segurança – ou culturais, como gestão de parques, teatros, museus, oficinas, cursos  e empreendimentos desse matiz, sem os quais o cidadão sobrevive, mas muito mal.  Existem ainda outros serviços objetos de OSs, porém são de menor monta.

Os problemas das OSs, se assim é a situação, transbordam o âmbito privado e particular dessas entidades e ganham relevo de verdadeiros impasses públicos  ou semipúblicos, merecendo toda atenção  e todo cuidado, a todo tempo, pelas autoridades.  Sim, porque qualquer (considerável)  revés que a OS sofra quase certamente  se refletirá nos serviços públicos ou de interesse social que presta à população.

O pessoal da OS – resultado da substituição de um quadro pouco eficiente de pessoal por outro igualmente caríssimo porém mais eficiente segundo o que se costuma relatar - é seguramente o maior desses pontos de melindre e de riscos permanentes, dado o seu inigualado montante  frente ao das demais despesas da entidade.

 

II – Que  juridicamente são as   organizações sociais ?

Reza a lei que as instituiu, a Lei nº 9.637, de 2.008:

Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei. (Inclinado nosso)

São portanto pessoas de direito privado, sociedades particulares e não públicas, e que detém aquelas qualificações e aquele rol de características elencadas no art. 2º da lei instituidora, como a natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação; finalidade não-lucrativa, com investimento dos excedentes no desenvolvimento de seu objetivos; no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma estatutária.

Todas essas são características peculiares das empresas privadas, e o toque original das OSs vem dado pelo elencamento de outras facetas como a previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, e também a obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão.

Essas últimas características, diferentemente das primeiras,  refogem àquelas comuns da iniciativa privada, e indicam a natureza público-privada das OSs. São ambas bastante marcantes:

a) a participação, no colegiado superior das OSs, de membros do poder público é algo inédito na empresa privada;

b) o fato de a OS celebrar contratos de gestão é  a mais marcante particularidade  dessa instituição. Mistura contrato com gestão pública, a indicar que, mais do que uma simples execução comandada como ocorre nas `terceirizações` mais encontradiças de serviços, é a própria gestão e supervisão  de áreas essenciais da administração pública que o ente público entrega à concepção particular, com a consequente execução a seguir e por longos anos nos moldes do que foi particularmente

E somente essas duas características das OSs já bastaram para dinamitar as fronteiras, os limites e a publicística continência das formas anteriores de gestão da coisa púbica.

Com seus quinze anos de existência, tratou-se de uma revolução absoluta na teoria e na história da administração pública, a tal ponto que se se indagar a certas conhecidas Prefeituras do Estado de São Paulo se teriam condição de dispensar as OSs que lhes prestam serviço nos contratos de gestão, e de retomar os respectivos serviços, a resposta seria uma sonora gargalhada: não têm nem teriam a mais remota condição de fazê-lo.

A novidade da OS, a ser continuadamente aperfeiçoada como sem dúvida precisa ser, veio para ficar.

 

III  –  Se isso é verdade, então os problemas das OSs em atividade nos Estados e nos Municípios são  problemas dos Estados e dos Municípios.

Não se aplica às OSs a confortável fórmula do isso não é problema meu, frequente em muitos contratos tradicionais de serviços e de obras nos quais o contratado desfruta de  estudadas margens de segurança operacional e financeira suficientes para protegê-lo das vicissitudes naturais e aleatórias do contrato – sendo que mesmo essas muita vez se revelam insuficientes e demandam revisão.

Não.  No contrato de gestão é o próprio Estado que entrega uma parte de si mesmo – como conceptor e como executor natural e originário da administração pública - ao particular, com o qual então divide a concepção do que  a partir de então deverá ser feito.

É evidente que nada cai do céu pronto, nem tem geração espontânea no âmago de nenhuma OS, pois que todas as áreas da administração têm sua longa história, e sua informação sistematicamente acumulada e registrada;  mas é que em dados momentos cada vez mais frequentes  toda essa experiência se revela insuficiente para satisfazer a demanda vertiginosamente crescente de uma população que se multiplica em escala geométrica, e com isso engendra inéditas dificuldades de toda ordem.

O desafio é hercúleo, monumental, e bem logo observou o administrador federal, no  que foi seguido pelo legislador, que as formas tradicionais de terceirização de serviços e de grandes empreendimentos periclitavam na sua eficácia, e que algo bem novo urgia naquela guerra sem quartel.

Vieram as OSs, e o desafio do momento é fazê-las funcionar bem.

 

IV – Interessa focar a questão das despesas de pessoal das OSs sob o enfoque da Lei de Responsabilidade Fiscal, que reza:

Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.

§ 1o Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como "Outras Despesas de Pessoal". (Itálicos nossos)

Sobre esse assunto escrevêramos o artigo ‘Serviço terceirizado’ não é, nunca foi  nem jamais será  despesa de pessoal – o insólito e absurdo § 1º, do art. 18, da lei de responsabilidade fiscal  ([1]), de onde se lê:

Pelo oposto, agrada-nos significativamente a LRF, apreciada em seu conjunto. Ela contém impropriedades, como dificilmente lei tão vasta e detalhada, sobre assunto tão espinhoso, deixaria de conter; mas o impacto do seu resultado final fazia tremenda falta ao país e ao nosso direito, porém mais ainda à administração pública brasileira e ao cidadão, que paga impostos em demasia  sem disso, até hoje,  ter enxergado resultado.

Dentre as – poucas, insista-se - imperfeições ululantes da LRF destacamos duas, uma teratológica e insalvável - que bem se poderia atribuir ao autor da lei de licitações -, que é o § 1º, do art. 18, e outra (...)

O tema de ambos os pontos mencionados, terceirização de mão-de-obra, não poderia ser mais momentoso, porém do modo como  disposto no § 1º, do art. 18, da LRF,  também não poderia ser mais embaraçoso ao aplicador do direito, e com isso mias polêmico no mundo jurídico. Ataquemos, por conseguinte, a odiosa espécie. (...)

Chama a atenção o § 1º do art. 18, que muda completamente de assunto com relação ao do caput, como que para aliviar o impacto daquela importantíssima definição de “despesa total com pessoal”, a qual, em conjunto com a definição de “receita corrente líqüida” (LRF, art. 2º, inc. IV), constituem o pilar central da LRF, sobre que toda ela se estrutura.

O  sesquipedal  dispositivo  – o  § 1º do art. 18 -, filho malsão e obra de alguém  que um importante tributarista  falecido denominaria mendigo do direito,  foi infeliz a mais não poder. Não tem pé nem cabeça, nem faz o menor sentido técnico, jurídico, contábil ou institucional, dentro das categorias existentes.  É daqueles que  nem a divindade suprema, encarnada, saberia aplicar.

No afã de incluir tudo o que podia no conceito amplo de despesa com pessoal - para limitá-la e obrigá-la a diminuir na Administração – o legislador incluiu aquele horrendo § 1º no art. 18 da LRF, para “determinar” uma classificação contábil que num primeiro momento faz rir a qualquer contador, economista, advogado ou administrador, mas que logo após  os faz chorar de raiva:  a contratação de empresa de limpeza para substituir o trabalho que antes era realizado por servidores públicos, por exemplo, a teor do § 1º passou a ser “outra despesa de pessoal” !   É de morder a nuca, como asseverava outro importante jurista de nosso círculo. (...)

Um contrato administrativo de serviço, licitado e firmado entre o poder público e uma empresa de limpeza urbana, quer a LRF que seja classificado como “outra despesa de pessoal” !   Como seria possível essa façanha?

Como se poderia classificar como se fora despesa com servidores públicos o gasto contratual com uma empresa prestadora de serviço,  detentora de um contrato administrativo licitado segundo a lei nacional de licitações e contratos administrativos?  Que tem ou poderia ter uma coisa com outra?  Como se poderia processar o milagre, de uma tão absurda e insólita conversão?  Se a manobra for viável, também o será, então, classificar contabilmente uma obra como se fora compra de material de consumo, ou classificar como  inversão financeira  o fornecimento de merenda escolar.  A racionalidade é a mesma, ou seja nenhuma.

A despesa com contratos administrativos de serviços é contabilmente classificada (Lei nº 4.320/64) como “outros serviços e encargos”, na conta 3.1.3.2, mas nunca, jamais poderia estar significando despesa com pessoal, ou “outra despesa com pessoal”, porque se é “outra” isso está a significar  que é efetivamente despesa com pessoal.

Outra possibilidade de classificação contábil de um serviço prestado por terceiro é pela conta 3.1.3.1 – remuneração de serviços pessoais,  como é o caso do pagamento a pessoa eventualmente contratada para um serviço específico na condição de autônomo,  sem vínculo empregatício, em outro contrato  regido também pela lei de licitações; mas isso não é “outra despesa de pessoal” nem aqui em nosso país nem na residência do demônio de sete barbas da Mesopotâmia, nem nunca o será – e não é preciso ser Contador para sabê-lo, pois que salta aos olhos do mais jejuno profissional da Administração pública a tremenda impropriedade pretendida pela LRF nesse infausto momento. (...)

Não fora este apontado absurdo, o § 1º, do art. 18, da LRF, ainda contém outra pérola da inidoneidade conceitual: “contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos”. 

Já se inicia o erro por se separar servidor público de empregado público, como se esses não fossem servidores públicos; mas tal batatada não é o que mais importa.

Trata-se, aquele acima,  não apenas de um conceito difuso ou indeterminado, daqueles que abundam em certas áreas do direito e que nas  leis têm seu compreensível papel, mas de um autêntico conceito indeterminável, sem a mais remota possibilidade de ser objetivado ou reduzido a alguma fórmula compreensível  e constante.

Ninguém sabe, nem pode saber, nem jamais poderia pretender saber com certeza - a não ser que a Administração declarasse expressamente que “este é um contrato de terceirização de mão-de-obra para substituir servidores públicos” – quando se estaria diante de um contrato de serviço celebrado para substituir servidores.

Em primeiro lugar, porque não existe nenhum serviço, dos “terceirizáveis” – termo ridículo, e que como tudo que é ridículo dissemina-se no Brasil em um piscar de olhos como a peste -  que precise ser realizado por servidores públicos, já que podem ser executados tanto pelos servidores quanto por terceiros contratados. São serviços passíveis de “terceirização” todos os que não sejam exclusivos de Estado, como são exclusivos a magistratura, o Ministério Público, a diplomacia ou  a tributação, por exemplo.

Quanto a todos os demais serviços – infinitos m número - inexiste qualquer um que precise ser contratado  “em substituição de servidores”, simplesmente porque os servidores jamais precisariam ter prestado aqueles serviços, porque eles jamais foram privativos de servidores. Exemplificando, o serviço de vigilância, ou o de manutenção de equipamento, ou o de transporte de carga, ou o de limpeza de próprios públicos, ou o de elaboração de merenda escolar, ou o de vigilância patrimonial, nenhum deles é privativo de servidor público, podendo todos ser prestados tanto por servidores quanto por terceiros sob contrato administrativo.

Como, então, falar em “terceirização de mão-de-obra para substituição de servidores” ?  

 

V – Mantemos todas essas palavras e essas conclusões para o presente caso das Organizações Sociais.

OS não significa apenas uma terceirização comum, mas significa muito mais do que isso. Na terceirização usual o poder público apenas  contrata, por exemplo, serviços à empresa que vença a licitação. Concebe todo o objeto com seus detalhamentos, dá todas as diretrizes, fiscaliza a execução e com muita frequência interfere pontualmente nos passos do contratado.

Na OS o panorama é bem distinto, porque equivale – figurativamente - a uma abdicação de poder, e de concepção e de gestão públicas, do poder público paa o particular dirigente da OS, ainda que essa direção seja compartilhada com autoridades públicas.  Mas é muitíssimo mais, o contrato de gestão celebrado com uma OS, que um contrato de terceirização de serviço que se celebra a todo dia e a toda toda nas comunidades brasileiras.

Observem-se sempre, portanto, tais essenciais e cruciais diferenças de escopo, de propósito, de dimensão, de abrangência e de essencialidade.

 

VI – Seja como for, transporta-se para o caso das OSs o raciocínio acima exposto, que inadmite a previsão legislativa (LRF, art. 18, § 1º), de que ‘despesas que visem substituir servidores públicos’ devem ser tidas como  outras despesas de pessoal. A lei de responsabilidade fiscal transformou-se em lei de classificação contábil, e enfiou os pés pelas mãos.

Se essa absurda regra valer, então as despesas da OS com seu pessoal serão outras despesas de pessoal  do ente público que celebrou o contrato de gestão com a OS.  Despesas que não são do ente público mas da entidade que ele contratou então passam a ser dele ... nesta indigência institucional !

Ora, se um dos principais motivos de o ente público contratar gestão pública com uma OS, ou mesmo de se terceirizar simplesmente algum serviço, é o de não mais correr o risco de arcar com as pavorosas  e frequentemente injustas condenações trabalhistas que somente existem no Brasil, então o § 1º do art. 18 da LRF, se aplicado – tanto a empresas comuns  quanto a OSs – desfaz e arrebenta toda aquela garantia que a terceirização, ou o contrato de gestão, visam proporcionar ao ente público: escapar de condenações trabalhistas, verdadeira tragédia tupiniquim ou jabuticaba.

Se se permite recomendar algo os entes de fiscalização das contas públicas é exatamente isso: não computar os gastos   com o pessoal das OSs contratadas pelo poder público como despesas de pessoal do mesmo ente contratante, sejam ‘outras despesas de pessoal’, sejam ‘novas despesas de pessoal’ ou sejam o diabo que forem, criação doentia e malsã de algum péssimo legislador que conseguiu enfiar  o § 1º no art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

E não impressiona nem comove a conhecida e comodista tendência de a fiscalização prestigiar a letra daquele, muito respeitosamente,  imundo § 1º.   Errar é próprio da espécie humana – porém acreditemos  que  ninguém pode errar para sempre.

 

 

 

[1] Publicado em IOB-DCAP, mar/2.001/15; Revista Jurídica de Administração Municipal, mar/2.001/13;  Revista L&C,  ed. Consulex,  Brasília, nº 35, maio/2.001; Doutrina ADCOAS, nov/2.001; Revista Licitar Digital, ano 8, nº 5, nov./04.