LICITAÇÃO NA NOVA LEI: A) PREGÃO; B) INDICAÇÃO DE MARCAS

LICITAÇÃO NA NOVA LEI: A) PREGÃO; B) INDICAÇÃO DE MARCAS

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jun/22)

 

 

I -  Tendo escrito um livro de comentários à Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021 ([1]), os comentários ali não podem dilargar-se muito, ou o livro superaria a Enciclopédia Britânica em volume, algo que em definitivo saiu de moda porque leitura não se confunde com halterofilismo.

É preciso, então, que se pincem individualmente muitos dos inúmeros temas de licitações dentro daquela, por ora  nova, lei, para em artigos específicos se discorrer sobre eles com detença um pouco maior.

A lei entra em vigor único e compulsório em 1º de abril de 2.023, até então sendo aplicável alternativamente à Lei nº 8.666/93, velha conhecida de todos. É um fenômeno raríssimo de eficácia alternativa de duas leis em vigor, até que em abril do ano vindouro passará a ser a única em vigor.

Desta vez dois temas são escolhidos: a) o pregão, e a recepção dos respectivos decretos ainda em vigor pela nova lei, e b) a viabilidade de indicação de marcas  de objetos em licitação.

 

Pregão

 

II - Observe-se o que reza a Lei nº 14.133/21 com referência ao pregão:

XLI - pregão: modalidade de licitação obrigatória para aquisição de bens e serviços comuns, cujo critério de julgamento poderá ser o de menor preço ou o de maior desconto;

 (...)

Art. 17. O processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência:

I - preparatória;

II - de divulgação do edital de licitação;

III - de apresentação de propostas e lances, quando for o caso;

IV - de julgamento;

V - de habilitação;

VI - recursal;

VII - de homologação.

§ 1º A fase referida no inciso V do caput deste artigo poderá, mediante ato motivado com explicitação dos benefícios decorrentes, anteceder as fases referidas nos incisos III e IV do caput deste artigo, desde que expressamente previsto no edital de licitação.

§ 2º As licitações serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica, admitida a utilização da forma presencial, desde que motivada, devendo a sessão pública ser registrada em ata e gravada em áudio e vídeo.

§ 3º Desde que previsto no edital, na fase a que se refere o inciso IV do caput deste artigo, o órgão ou entidade licitante poderá, em relação ao licitante provisoriamente vencedor, realizar análise e avaliação da conformidade da proposta, mediante homologação de amostras, exame de conformidade e prova de conceito, entre outros testes de interesse da Administração, de modo a comprovar sua aderência às especificações definidas no termo de referência ou no projeto básico.

§ 4º Nos procedimentos realizados por meio eletrônico, a Administração poderá determinar, como condição de validade e eficácia, que os licitantes pratiquem seus atos em formato eletrônico.

§ 5º Na hipótese excepcional de licitação sob a forma presencial a que refere o § 2º deste artigo, a sessão pública de apresentação de propostas deverá ser gravada em áudio e vídeo, e a gravação será juntada aos autos do processo licitatório depois de seu encerramento.

 (...)

Art. 29. A concorrência e o pregão seguem o rito procedimental comum a que se refere o art. 17 desta Lei, adotando-se o pregão sempre que o objeto possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado.

Parágrafo único. O pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, exceto os serviços de engenharia de que trata a alínea “a” do inciso XXI do caput do art. 6º desta Lei.

 

III – A lei nº 14.133/21 revoga a Lei nº 10.520, de 17 de junho de 2.002, a lei do pregão presencial, a partir de 1º de abril de 2.023. A partir dessa  última data não mais se poderá invocar a Lei nº 10.520/02 para fundamentar o pregão presencial que se venha a realizar.

Valerão então apenas as regras da Lei nº 14.133/21 e, ocasionalmente, dos decretos que forem recepcionados pela lei – porque não a contrariam em seus termos e em seus institutos.

Sim, porque não é a mera revogação de uma lei regulamentada que necesariamente implicará a revogação automática dos referidos regulamentos, desde que sejam compatíveis com a nova ordem legal.

Ainda que – falemos agora do pregão eletrônico – o Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2.019, o regulamento do pregão eletrônico, indique expresssamente que regulamenta o § 1º do art. 2º da lei do pregão presencial  (Lei nº 10.520/02), e ainda que essa lei restará revogada em 1º de abril de 2.023, nem por isso se perderão  as disposições do decreto, que sejam  compativeis  com a Lei nº 14.133/2.

Pelo fenômeno da recepção, trata-se de simplesmente aproveitar o arcabouço jurídico existente, quando não existe razão maior ou mais relevante para que se o considere revogado – é bastante simples.  O decreto como se sabe não inova a ordem jurídica, mas apenas disciplina os procedimentos dados pela lei.

Não pode prevalecer, pensamos, um preciosismo extremamente formalista e prejudicial num caso assim, que considere revogados pela nova lei os regulamentos da antiga lei, se esses regulamentos são plenamente compativeis com a nova ordem legal.

Afinal, se se os considerar revogados, os novos regulamentos que virão serão, muito possivelmente, bastante parecidos com os anteriores ...  porque a matéria a regulamentar é a mesma !   Por que, então, duplicar-se o trabalho que já está realizado ?

 

IV – Mas é por um outro motivo, e maior que este já exposto, que o Decreto nº 10.024/19 está mantido pela Lei nº 14.244/21: essa lei, pelo que se leu retro, nem de longe disciplina o pergão eletrônico.

A Lei nº 14.133/21 simplesmente informa, no § 2º do art. 17 (mandado aplicar ao pregão pelo art. 29)  que o pregão sempre que possível será realizado sob forma eletrônica, e seguirá o roteiro básico do art. 17 – e nada além disso.

Então, deixar o pregão eletrônico apenas com estas escassas regras legais simplesmente impede a sua execução por faltarem os elementos mínimos de operacionalidade, qual se fora um trem ao qual faltassem os trilhos.

E onde estão aqueles elementos operacionalizadores do pregão eletrônico ?   Evidentemente no decreto regulamentador do pregão elertônico, o qual, antes de por acaso vir a ser substituído por algum outro, continua sendo  o Decreto nº 10.024/19.

Não há porque não ser, ou de outro modo a partir de 1º de abril de 2.023, se até então não for editado outro decreto, se paralisarão  imediatamente todos os pregões eletrônicos que se realizam às centenas todos os dias no país.

 

V - E nas regras materiais e substantivas da Lei nº 14.133/21 para o pregão são substancialmente diferentes das regras da Lei nº 10.520/02, a começar porque o pregão não mereceu maior destaque dentro da nova lei, incorporando-se ao roteiro de procedimentos do art. 17, que é aplicável às demais modalidades – de certo modo dessacralizando um pouco o pregão, no que fez muito bem a nova lei.

A matéria e que atualmente está concentrada na lei do pregão presencial, a Lei nº 10.520/02, foi desconcentrada na nova lei de licitações, nisso se igualando o pregão às demais modalidades.

Hoje em dia existem dois mundos em licitações: o daa tradicionais modalidades e o do pregão (sendo que esse mundo se divide em dois, presencial e eletrônico).

Na Lei nº 14.133/21 essa separação foi extinta: todas as modalidades figuram juntas e seguem o mesmo rito do art. 17, o pregão tendo merecido um único artigo específico, o art. 29 (que no caput ainda menciona a concorrência).

Observa-se portanto a nítida preocupação da lei em nivelar ou igualar todas as modalidades dentro de um só rito (art. 17), o que é excelente por exatamente, a partir de 1º de abril de 2.023,  acabar com aquela separação de mundos e de fundamentos jurídicos  ‘pregão versus outras modalidades’, o que, ainda hoje,  somente dificulta e artificializa a operação das licitações, como se pregão visasse algo diferente de concorrência.

Ponto para o legislador, que com isso e de certo modo desmitificou  o pregão.

E outro ponto ainda ao legislador:

Art. 29, parágrafo único:

O pregão não se aplica às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia (...)

Vamos aguradar que termine, por exemplo,  a patifaria de licitar a implantação de sistemas de informática para tributação municipal por poregão. Algo que não poderia nem sequer ser licitado o é com absoluta frequência,  e por pregão !..

Auguremos que nesta parte a nova lei pegue.

 

Indicação de marcas

 

VI – Sobre a questão das marcas reza a nova lei:

 

Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:

I - indicar uma ou mais marcas ou modelos, desde que formalmente justificado, nas seguintes hipóteses:

a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;
b) em decorrência da necessidade de manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração;
c) quando determinada marca ou modelo comercializados por mais de um fornecedor forem os únicos capazes de atender às necessidades do contratante;
d) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação de determinada marca ou determinado modelo aptos a servir apenas como referência;

II - exigir amostra ou prova de conceito do bem no procedimento de pré-qualificação permanente, na fase de julgamento das propostas ou de lances, ou no período de vigência do contrato ou da ata de registro de preços, desde que previsto no edital da licitação e justificada a necessidade de sua apresentação;

III - vedar a contratação de marca ou produto, quando, mediante processo administrativo, restar comprovado que produtos adquiridos e utilizados anteriormente pela Administração não atendem a requisitos indispensáveis ao pleno adimplemento da obrigação contratual;

IV - solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor.

Parágrafo único. A exigência prevista no inciso II do caput deste artigo restringir-se-á ao licitante provisoriamente vencedor quando realizada na fase de julgamento das propostas ou de lances.

Art. 42. A prova de qualidade de produto apresentado pelos proponentes como similar ao das marcas eventualmente indicadas no edital será admitida por qualquer um dos seguintes meios:

I - comprovação de que o produto está de acordo com as normas técnicas determinadas pelos órgãos oficiais competentes, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou por outra entidade credenciada pelo Inmetro;

II - declaração de atendimento satisfatório emitida por outro órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior que tenha adquirido o produto;

III - certificação, certificado, laudo laboratorial ou documento similar que possibilite a aferição da qualidade e da conformidade do produto ou do processo de fabricação, inclusive sob o aspecto ambiental, emitido por instituição oficial competente ou por entidade credenciada.

VII – Aqui a nova lei fala muito mais sobre o tema das marcas que a Lei nº 8.666/93, e proveitosamente.

Existe um mito hodierno, uma lenda urbana, segundo a qual é terminantemente proibido ao edital indicar marcas de produtos a adquirir em licitação.

Escrevemos num artigo em setembro de 2.017:

Nem sempre indicar marcas é proibido.

Outro mito em licitação - desta vez propiciado pela própria lei e não por assombrações administrativas  - diz respeito à crendice relativa à assim dita  impossibilidade de a Administração indicar marcas ou modelos dos bens que pretende adquirir em licitação, o que aparenta contrariar a lei de licitações, em momentos como o art. 15, § 7º, inc. I, ou o art. 25, inc. I, ambos a proibir a indicação de marca nas licitações.

O que tem aquilo de real e verdadeiro é que é e sempre será proibido indicar marcas quando não existir um motivo técnico para tanto, porque a indicação  só em si dirigiria a licitação de modo a prejudicialmente restringir a competitividade e afrontar a  igualdade entre os potenciais licitantes. Se não houver outro modo de esclarecer o que o ente licitador de fato quer sem  exemplificar com marcas conhecidas, então que sejam indicadas diversas delas, abrindo o leque de objetos aceitáveis - porque se apenas um o for será caso de padronizar esse bem ou essa marca, como se examinará adiante.

Temos ao menos três hipóteses em que mais do que permitido torna-se logicamente obrigatório ao edital indicar a marca, e quando for o caso também o modelo, do material, equipamento ou  bem desejado:

1ª)  se existir um só produto, de marca específica, que atenda a necessidade da Administração, e mais de um vendedor, então far-se-á obrigatória na licitação a indicação da mesma marca e das especificações pertinentes, ou de outro modo a Administração irá adquirir o que não deseja, ou que não lhe serve. Trata-se de uma regra de pura lógica, contra a qual não poderia prevalecer regra legal contrária alguma, e nem sequer caberia que tal regra existisse, por simplesmente ilógica;

2ª) se o material pretendido, com sua marca, seu modelo e suas especificações, é padronizado, e se existe na praça mais de um fornecedor, então será igualmente obrigatória a indicação de todos os aspectos padronizados do bem no edital, pena de outra vez, em não sendo isso providenciado, a Administração sujeitar-se a comprar material fora de seu padrão, ou seja fora da especificação que por qualquer motivo anteriormente levantado ensejou a padronização.

E não seja olvidado que praticamente toda e qualquer característica de qualquer material - se houver justificativa técnica para tanto - é suscetível de padronização, tais como são marca, modelo, idade mínima ou máxima, desempenho mínimo, rendimento, cor, transparência, ruído máximo ou mínimo, regularidade, visibilidade, audibilidade, timbre, forma, peso, material, cheiro, gosto (por curioso que pareça), princípio ativo, origem, composição, fórmula, processo de fabricação ou qualquer outro que a imaginação humana possa engendrar.

Em podendo ser tecnicamente justificada a padronização, pode ser efetuada, e o bem padronizado precisará ser indicado nas licitações, sem qualquer possível argüição de vedação, que nesse caso deixa de ter sentido;

3ª) nas reposições de peças ou componentes pode a Administração - e se considerarmos o dever de boa administração deve e não apenas pode - indicar a marca e o modelo da peça a ser adquirida, sendo da marca original do produto que integrará.  

É fato notório, além de que o barato sai caro,  que peças não-originais de reposição -  fabricadas em oficinas pela-porco  de fundo de quintal por marreteiros merecedores do ergástulo com chicotadas semanais  e oitiva forçada de música de Stravinsky por ao menos duas horas diárias -, danificarão quase que invariavelmente o equipamento que deveriam servir.

Assim, o referido dever principiológico da boa gestão pública manda exigir peças originais para reposições de equipamentos, ao menos daqueles que contenham  certo grau de refinamento ou complexidade.  A marca há então de ser destacada e exigida particularizadamente, sem meias-palavras, subterfúgios ou escamoteações, pois que somente assim estará atendido o melhor interesse da entidade compradora. ([2]).

Tudo isso se refere à Lei nº 8.666/93, e para nós permanece rigorosamente válido no dia de hoje.

A Lei nº 14.133/21 elenca quatro motivos para excepcionalmente o edital poder indicar marcas, e são os previstos nas als. a a d, do inc.. I,  do art. 41, a saber:

a) padronização do objeto (na marca indicada);
b) manter compatibilidade de plataformas e padrões já adotados;
c) quando dada marca for a única que atenda a necessidade do ente licitador, e que seja vendida por mais de um fornecedor (porque se  existir apenas um fornecedor a licitação  será inexigível), e
d) quando precisar a marca servir de exemplo ou de referência que oriente o licitante – na medida em que, como se sab, um exemplo vale mais que mil palavras.

Não existe muita novidade no panorama, pelo que se denota. Apenas está mais organizada a matéria, com melhor sistematização.

Trata-se no mais   de pura lógica e racionalidade posta a serviço da Administração,  a merecer elogio.

 

VIII – O art. 41 menciona ainda amostras – por vez primeira em lei de licitações -, indicando quando podem ser exigidas, e  apenas do vencedor das propostas.  Boa referência da lei, já que esse assunto é bastante controvertido sob a Lei nº 8.666/93, e qualquer nova achega é bem-vinda.

E o artigo menciona e admite ainda algo no mínimo polêmico e muito discutível: que o edital exija carta de solidariedade do fornecedor ao proponente ns licitações.

Ainda que bem intencionada, não nos cheira bem essa ideia, a uma porque não se acredita na eficácia da solidariedade em caso de ser efetivamente demandada, e a duas porque não parece razoável obrigar o vendedor de alguma coisa ser co-responsável por um contrato que não é seu,  para além da própria garantia que o produto deve ter.

Pode circunstancialmente auxiliar e mesmo tornar mais séria a proposta, porém, com todo respeito,  a Siphonaptera  permanece ubicada na região traseira do pavilhão auditivo.

 

 

 

[1] Lei nº 14.133/2021 comentada. Uma visão crítica, ed. Forum, MG, 2.022.

[2] Artigo Combatendo mitos em licitação e contratos, com a nota `Publicado até o momento apenas em apostila para curso da empresa Fiorilli Software, São José do Rio Preto, 2.017’.