Artigo
SIAFIC - JURIDICIDADE
SIAFIC - JURIDICIDADE
Ivan Barbosa Rigolin
Colaborou: Fabiana Ferreira Pascoaloto
(out/22)
I – Saindo ligeiramente da nossa zona de conforto e da nossa predileção articular, o tema agora é o momentoso SIAFIC – Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle, instituído pelo Decreto federal nº 10.540, de 5 de novembro de 2.020.
O título que emprestaram ao Sistema é assustador, e a sigla absolutamente artificial: ao invés de SUIEOAFC como seria de primária lógica - e que seria outra barbaridade de mau gosto -, simplificaram-na até este ponto, resultando então, apesar do artificialismo, melhor a sigla que o título.
O propósito aqui é de apenas e com brevidade apreciar a fundamentação jurídica do SIAFI e a sua juridicidade dentro do ordenamento institucional, sem sequer resvalar aspectos operacionais ou procedimentais, uma vez que cada símio sempre precisa adstringir-se à circunscrição de sua rama, sem ousadias em terreno alheio.
Sim, até porque a palavra de um profissional do direito sobre matéria contábil em tese não desfruta de maior credibilidade que a de um engenheiro a respeito de uma cirurgia cardíaca, ou a de um piloto de helicóptero sobre receita de goulash.
II – Eis o decreto instituidor do SIAFIC, na publicação do site Planalto:
DECRETO Nº 10.540, DE 5 DE NOVEMBRO DE 2020
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 48, § 1º, inciso III, e § 6º, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000,
DECRETA:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º A transparência da gestão fiscal de todos os entes federativos em relação à adoção de Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle - Siafic, será assegurada pela observância do padrão mínimo de qualidade estabelecido neste Decreto e do disposto no art. 48-A da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, sem prejuízo de outras disposições previstas em lei ou em atos normativos aplicáveis.
Observa-se que de falta de fundamento jurídico o decreto instituidor não padece. Até este ponto são mencionados:
a) Constituição, art. 84, caput e incs. IV e VI, a;
b) Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, art. 48, § 1º, inc. III, e § 6º, e
c) Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, art. 48-A.
Diz a Constituição:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
E rezam os dispositivos citados da Lei Complementar nº 101/00 (Lei da Responsabilidade Fiscal):
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
§ 1o A transparência será assegurada também mediante: (...)
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A. (...)
§ 6o Todos os Poderes e órgãos referidos no art. 20, incluídos autarquias, fundações públicas, empresas estatais dependentes e fundos, do ente da Federação devem utilizar sistemas únicos de execução orçamentária e financeira, mantidos e gerenciados pelo Poder Executivo, resguardada a autonomia.
Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a
I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado
II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.
III – A Constituição para este caso não diz nem fá nem fu. É uma faca sem lâmina da qual se extraiu o cabo.
Quanto à LRF – LC 101/00, com efeito prevê a ‘adoção de sistema integrado de administração financeira e controle’ (art. 48, § 1º, III), e ainda que todos os órgãos públicos devam adotar esse sistema, a ser gerenciado pelo Executivo (art. 48, § 6º).
Até este ponto, portanto, o fundamento legal do que por força do Decreto nª 15.540/20 veio a ser o SIAFIC parece perfeito, nada parecendo contém de irregular ou desbordador dos princípios norteadores da federação.
A seguir o art. 48-A, obra de quem parece ter tido pouco a fazer, garante o acesso amplo e irrestrito ao cidadão dos dados constantes do sistema. Grande coisa não significa, desde que o cidadão de longa data tem assegurado o direito a obter esclarecimentos e certidões do poder público, assegurado pelo art. 5º, incs. XXXIII e XXXIV, da Constituição.
IV – O SIAFIC entretanto não passou livre de questionamento.
A centralização dos sistemas de ‘execução orçamentária, administração financeira e controle’ no Executivo de cada pessoa de direito público, a alguns pensadores do direito desde logo pareceu afrontar a autonomia administrativa de cada Poder local, em favor do Executivo no qual se centralizou o controle do sistema.
Os Municípios têm apenas dois Poderes, porém os Estados têm três, além do Ministério Público e o Tribunal de Contas que amiúde são tidos com o quarto e o quinto poderes do Estado... de modo que uma centralização de controle deve ter parecido estranha ante as regras balizadoras do sistema federativo constitucional.
Até o momento, entretanto, as tentativas de invalidação ou de suspensão do SIAFIC não triunfam, como se examina a seguir.
V – Um partido político ingressou em 12 de novembro de 2.020 com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo Tribunal Federal contra o decreto instituidor do SIAFIC. Essa arguição mereceu o nº ADPF nº 763.
Até esta data (26 de outubro de 2.022) o acórdão dessa arguição não foi publicado, porém já foi expedido o voto do Ministro Relator, André Mendonça, denegando o pedido.
Eis alguns excertos do extenso e bem fundamentado voto naquela ADPF 763:
7. No caso dos autos, o partido requerente sustenta que o decreto atacado extravasou os seus limites constitucionais, ao contrariar a regra de transição disposta no art. 73-B da Lei Complementar nº 101, de 2000, (LRF), adicionado pela Lei Complementar nº 131, de 2009. Trata-se, por conseguinte, de irresignação referente a um vício formal de inconstitucionalidade. Porém, com as devidas vênias, não o vislumbro na presente hipótese.
8. De saída, verifico que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal retirou o caráter legal da matéria atinente às normas gerais de contabilidade pública. Dito de outra forma, a LRF imputou a órgão técnico-burocrático a função de harmonização dos ditames contábeis dos milhares de entes federados do Brasil. (...)
32. Em suma, com o devido respeito a posições contrárias, a prognose realizada pelo requerente não guarda compatibilidade com a realidade brasileira . Então, uma vez que fundadas em premissa patentemente equivocada, as resultantes do esforço argumentativo do partido requerente não comportam maior plausibilidade. Assim, rejeito a argumentação no sentido de que o objeto impugnado teria aptidão para afrontar, de um lado, os princípios da publicidade, da eficiência e da impessoalidade e, de outro, o dever de disponibilização de informações financeiras. Dito de forma direta, também não constato qualquer vício material de inconstitucionalidade na espécie.
IV. Dispositivo
33. Diante do quanto exposto e analisado, conheço da arguição de descumprimento de preceito fundamental e, no mérito, julgo-a improcedente, de modo a declarar a constitucionalidade dos arts. 18 a 20 do Decreto nº 10.540, de 2020.
É como voto.
Ministro ANDRÉ MENDONÇA Relator
O acesso a esse voto se deu em 23 de outubro de 2.022, e é de imaginar que o acórdão seguirá o voto do Relator, porém, como informado, até este momento não saiu publicado, restando aguardá-lo.
Em sendo confirmado o voto acima, então o Supremo Tribunal Federal terá julgado constitucionais os arts. 18 a 20 do Decreto federal nº 10. 540, de 5 de novembro de 2.020.
A arguição de afronta aos princípios constitucionais de harmonia e independência entre os Poderes do Estado, então, uma vez confirmado o voto do relator, não terá vingado quanto ao caso SIAFIC.
VI – Diversos Tribunais de Contas estaduais foram e vêm sendo consultados por Municípios sobre a juridicidade do SIAFIC, como preconizado no Decreto nº 10.540/20.
De todos os acessados o que nos pareceu mais percuciente e objetivo na resposta foi o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, que apreendeu com precisão o cerne da questão colocada.
Eis a pergunta e a resposta em síntese, após a fundamentação constante do corpo da consulta:
(ii) Se possível, tal situação não viola a independência dos Poderes?
Resposta: De acordo com o § 6º do artigo 48 da LRF, devidamente regulamentado pelo Decreto Federal nº 10.540/2020, a atribuição do Poder Executivo de cada unidade federativas restringe-se, tão somente, à disponibilização, manutenção e gerenciamento do Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle (Siafic), fato que não acarreta a concentração de mando em um único Poder e não invade as garantias e prerrogativas constitucionais e legais deferidas aos demais integrantes da respectiva unidade da federação, inexistindo, como isso, violação à independência dos demais Poderes . (Destaque nosso).
(...)
Plenário Virtual, 9 de dezembro de 2021 – Sessão Ordinária Virtual nº 20.
NESTOR BAPTISTA
Conselheiro Relator
FABIO DE SOUZA CAMARGO
Presidente
VII - Assim nos parece exatamente.
O SIAFIC, por seu decreto instituidor, parece ter cumprido o papel de instituir o sistema a que se refere a LRF, artigos mencionados.
O que não se poderia jamais admitir é que se instituísse um sistema centralizado federal que ditasse as escolhas, os comportamentos, a discricionariedade e as iniciativas locais de escolher o que fazer, o que programar e o que executar em matéria orçamentária e de gestão financeira.
Que um mecanismo federal centralize as ações de disponibilização, manutenção e gerenciamento da contabilidade – e apenas e tão somente isso – é razoável e plausível, e quanto a isso nenhuma oposição pode ser objetada ao SIAFIC nos moldes do decreto federal.
Ir além entretanto, imaginando que o SIAFIC possa transferir ao Executivo o poder de determinar as diretivas de atuação e de discrição locais, ou seja de dizer o que os Poderes devem fazer e realizar, é ir longe demais, e se assim fosse – porque não é - o SIAFIC seria apenas um reles instrumento ditatorial da pior categoria.
Mas pelo que o TCPR esclarece com toda simplicidade e objetividade não é bem assim que acontece.
É preciso que se compreenda: o SIAFIC gerencia a contabilidade realizada, que espelha o que ocorreu no ente, mas jamais determina qual deva ser.
O sistema gerencia para organizar num plexo único, mas jamais determina qual deve ser esse plexo, o que sempre foi, é e continuará sendo tarefa dos administradores locais, cada qual no seu Poder ou entidade.
Ou, de outro modo, temos a ditadura do Executivo, desenfreada e sem limite – e não é esse o caso.