LEI Nº 14.770, DE 22/12/23. MODIFICADA  - HORRIVELMENTE - A  LEI  DE  LICITAÇÕES

LEI Nº 14.770, DE 22/12/23. MODIFICADA  - HORRIVELMENTE - A  LEI  DE  LICITAÇÕES

 

Ivan Barbosa Rigolin

(abr/24)

 

Com algum atraso publicamos estes comentários à segunda lei que modifica a nova lei de licitações, a Lei nº 14.133/21.   Trata-se da Lei nº 14.770, de 22 de dezembro de 2.023,   que  modifica os arts. 86, 92, 96 e 184, e cria o art. 184-A, todos da Lei nº 14.133/21.  Foi outra arremetida de péssima qualidade do legislador brasileiro, e só prenuncia o que deverá vir ainda.

Numa tão curta lei parece ter havido mais vetos – onze – do que matéria promulgada. E já tem sequência a odiosa e asquerosa numeração alfanumérica de artigos (art. 184-A),  que neste momento da história consegue adicionar uma má ideia em técnica legislativa à em geral péssima qualidade  das novas leis brasileiras.

Eis o seu teor integral, para o que interessa. E os comentários vão após cada artigo:

Art. 1º  A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 56. (...)

§ 1º (VETADO).

“Art. 86. (...) 

§ 3º A faculdade de aderir à ata de registro de preços na condição de não participante poderá ser exercida:

I - por órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital; ou

II - por órgãos e entidades da Administração Pública municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal, desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação. (...)

Comentário

A adesão às atas de registro de preços – chamada jocosa e acertadamente carona desde a sua infortunada invenção para servir apenas aos Ministérios do governo federal mas que depois se generalizou interentes federados malgrado o combate que sempre lhe dedicaram os Tribunais de Contas brasileiros – foi uma das piores ideias governamentais em matéria de licitação. O comodismo federal gerou uma praga incontrolável na federação.

O ente público que souber pesquisar seguramente não mais precisará realizar licitações, porque tudo o que se fabrica e comercia no país por certo consta de alguma ata de registro de preços de algum ente federado.  Procurai e descobrireis.

Mas a nova lei de licitações, na sua técnica sabida e prodigiosamente ruim, prestigiou à grande a instituição, e de mal vista que era passou a constituir um instituto jurídico como outro qualquer. Em nosso país o que há de pior sempre vence, predomina, toma conta.

O que esta Lei nº 14.770/23 fez foi alterar o § 3º do art. 86 para permitir que órgãos e entidades públicas (federais, estaduais, distritais e municipais) que não tenham participado do procedimento licitatório para o registro de preços de algum ente público – e por isso denominados não-participantes – possam aderir àquela ata (§ 3º, inc. I), sem estabelecer  requisitos para tanto.

O pouco compreensível inc. II do § 3º estabelece algo que parece óbvio e pressuposto da adesão: entidades municipais podem aderir às atas de outras entidades municipais, desde que tenham sido constituídas por licitação. Ora, existe algum ouro meio de montar ata de registro de preços, se não por licitação ?

 O § 2º do art. 86 não foi alterado, e já exige licitação para elaboração da ata.  Qual, então, o papel deste inc. II do novo § 3º ?  Parece ser nenhum, de modo que o dispositivo simplesmente autoriza a adesão a uma ARP municipal, regularmente constituída em licitação específica,  por outro Município.

“Art. 90. (...)

§ 8º (VETADO).

§ 9º (VETADO).”

“Art. 92. (...)

VI - (VETADO); (...)

§ Para efeito do disposto nesta Lei, consideram-se como adimplemento da obrigação contratual a prestação do serviço, a realização da obra ou a entrega do bem, ou parcela destes, bem como qualquer outro evento contratual a cuja ocorrência esteja vinculada a emissão de documento de cobrança.” (...)

Comentário

Este novo § 7º do art. 92 poderia vir em qualquer momento da lei sobre contratos: inventou a roda, descobriu o fogo e calharia  perfeitamente à autoria do Conselheiro Acácio, aquela personagem de Eça de Queiroz que só diz o óbvio ululante.

Adimplemento de obrigação contratual sempre foi exatamente isto que a lei ora menciona, ou seja a entrega do objeto contratado, que pode ser total ou parcial na forma do que prescreva o contrato e que o contratado realize.

Equivale à liquidação contábil da despesa, prescrita nos arts.  62 e 63 da Lei nº 4.320, de 1.964, regedora do orçamento e da contabilidade pública brasileiros há 60 (sessenta) anos.

Só uma questão se formula ao legislador: se não tivesse sido editada esta Lei nº 14.770/23,  que pretendeu definir adimplemento de obrigação, então porventura o adimplemento seria alguma coisa diferente do que já é há mais de meio século em nosso país ? 

Temos outra pedra na sopa ? Sim, e das grandes,

“Art. 96. (...)

§ 1º  (...)

IV - título de capitalização custeado por pagamento único, com resgate pelo valor total.

Comentário

Apenas foi introduzida ao § 1º do art. 96 esta quarta modalidade de garantia da execução contratual, pela qual o contratado poderá optar ao invés de por alguma das três anteriores (caução em dinheiro, seguro-garantia, ou fiança bancária).

O contratado, nesta hipótese, presta garantia oferecendo à Administração contratante um título de capitalização que tenha contratado com alguma instituição financeira, o qual já tenha sido pago de uma só vez e que tenha prazo para resgate total.

Será utilizado pelo ente contratante se o contratado descumprir o contrato, e na medida do prejuízo que tenha ensejado.

Supõe-se que o valor do resgate seja suficiente para cobrir aquele  dano, ou de outro modo esta será uma garantia de pé quebrado, capenga, e o edital deve esclarecer esse requisito.

“Art. 105. (...)

Parágrafo único. (VETADO).” )...)

“Art. 184. (VETADO). 

§ 1º (VETADO).

§ 2º Quando, verificada qualquer das hipóteses da alínea d do inciso II do caput do art. 124 desta Lei, o valor global inicialmente pactuado demonstrar-se insuficiente para a execução do objeto, poderão ser:

I - utilizados saldos de recursos ou rendimentos de aplicação financeira;

II - aportados novos recursos pelo concedente;

III - reduzidas as metas e as etapas, desde que isso não comprometa a fruição ou a funcionalidade do objeto pactuado.

§ 3º São permitidos ajustes nos instrumentos celebrados com recursos de transferências voluntárias, para promover alterações em seu objeto, desde que:

I - isso não importe transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro;

II - seja apresentada justificativa objetiva pelo convenente; e

III - quando se tratar de obra, seja mantido o que foi pactuado quanto a suas características.

§ 4º (VETADO).” (...)

Comentário

Outro artigo que se não existisse faria tanta falta quanto uma epidemia de gafanhotos, uma tempestade de areia ou um horóscopo de jornal.  O legislador-emendador da lei principal quer parecer necessário ...  mas o pior não é esse.

Traduz providências naturais do ente contratante quando no decorrer da execução do contrato se dá conta de que o valor estimado foi insuficiente, e é preciso  restabelecer o equilíbrio financeiro do ajuste.

Para isso o contratante pode valer-se de (I) utilizar saldos financeiros, (II) aportar novos recursos, e/ou (III) reduzir coerentemente as metas. Ou seja: exatamente o que o ente concedente faria, com esta nova lei, sem ela ou apesar dela.

O que não se compreende é a menção a concedente, no inc. II. Então estamos em alguma concessão de serviço ou de obra ?  Mas o art. 144 não menciona concessões.  De onde o, neste ponto péssimo, legislador tirou, então, essa palavra ?

O § 3º segue na maré das inutilidades ao informar que são permitidas alterações nos instrumentos de concessão, convênios, acordos desde que sem alteração da categoria de programação, ou de um órgão para outro (I), seja justificada a alteração (II), e se for obra, seja mantida a sua característica (III) – seja lá isso o que for que o legislador tenha querido significar, porque o quantitativo nas obras se for alterado em  profundidade alterará completamente a obra.

Mas o pior é o seguinte: esta alteração ao art. 184 prestigia e auxilia a convalidar este péssimo artigo, que declara aplicável a Lei nº 14.133/21 no que couber  a acordos, convênios e outros ajustes.

Ora, a lei de licitações simplesmente não se aplica em nada em convênios, ajustes, consórcios ou outros instrumentos de colaboração que não sejam contratos.

A prestigiar o horrível art. 184, herança da lei anterior, o legislador soma erro a erro, impropriedade a impropriedade, e repisa como válido algo que jamais deveria existir porque não tem nenhuma lógica: o art. 184.

“Art. 184-A. À celebração, à execução, ao acompanhamento e à prestação de contas dos convênios, contratos de repasse e instrumentos congêneres em que for parte a União, com valor global de até R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), aplicar-se-á o seguinte regime simplificado:

I - o plano de trabalho aprovado conterá parâmetros objetivos para caracterizar o cumprimento do objeto;

II - a minuta dos instrumentos deverá ser simplificada;

III - (VETADO);

IV - a verificação da execução do objeto ocorrerá mediante visita de constatação da compatibilidade com o plano de trabalho.

§ 1º O acompanhamento pela concedente ou mandatária será realizado pela verificação dos boletins de medição e fotos georreferenciadas registradas pela empresa executora e pelo convenente do Transferegov e por vistorias in loco, realizadas considerando o marco de execução de 100% (cem por cento) do cronograma físico, podendo ocorrer outras vistorias, quando necessárias.

§ 2º (VETADO).

§ 3º (VETADO).

§ 4º O regime simplificado de que trata este artigo aplica-se aos convênios, contratos de repasse e instrumentos congêneres celebrados após a publicação desta Lei.” 

Comentário

Na esteira do inadequado, errado, torto, inaplicável e insciente art. 184 o legislador ainda criou um seu filhote, este alfanumérico art. 184-A. Como de árvore podre não podem resultar frutos bons, a qualidade deste artigo é abaixo da crítica  e do comentário civilizado.

Jamais regras sobre prestação de contas de convênios deveria figurar na lei de licitações e contratos, porque um assunto nada a ver tem com o outro !

Será que o legislador federal, aparentemente com tanta vontade de trabalhar, não se dispõe a escrever uma lei específica sobre convênios, sem empestear a lei de licitações e contratos como faz aqui ?

Resumindo esta ópera de horror temos então que quando a União aportar até um milhão e meio de reais em convênios poderá adotar um regime simplificado de prestação de contas, que incluirá objetivo plano de trabalho, minuta simplificada dos instrumentos envolvidos e atestação da compatibilidade da execução com o plano de trabalho – como se em algum dia da história isso tivesse sido diferente !

O § 1º se refere a um casuísmo tão particular e ocasional que, o que se imagina, um dia pode ser aplicável a algum convênio federal. Será que todo convênio demanda fotos georreferenciadas ?

 

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 

Brasília, 22 de  dezembro  de 2023; 202o da Independência e 135o da República. (seguem assinaturas)

Comentário

O nível técnico desta Lei nº 14.770/23 é macabro, bem de acordo com o da lei que ela modifica.

Fica-se a imaginar, sem os onze vetos, qual seria a dimensão do estrago; somente se lamenta que o veto não tenha sido integral ao texto aprovado. Mas sobreviveremos, com a providência divina.