CONVERSAS VARIADAS : 1) INUNDAÇÃO GAÚCHA E O DIREITO; 2) TEMAS, SÚMULAS E ENUNCIADOS DOS TRIBUNAIS

CONVERSAS VARIADAS : 1) INUNDAÇÃO GAÚCHA E O DIREITO; 2) TEMAS, SÚMULAS E ENUNCIADOS DOS TRIBUNAIS


Ivan Barbosa Rigolin 

(jun/24)

 

 

RIO   GRANDE   DO   SUL

Primeiro o pampa seca, esturricado,

sem safra e sem colheita, em triste estado.

Agora vem o dilúvio indiferente

e arrasa a vida e a gente  e a terra  e o gado.

 

Quem ali não está presume mas não sente

a dimensão do insólito acidente.

A água da vida, em golpe inesperado,

trocou por morte o seu legado à gente.

 

Nada vislumbra o olhar pasmado e raso

que neste quadro explique o desatino

ou o faça crível, rude e de inopino.                                                                                         

Muitos  auguram que inexiste acaso

nas voltas insondáveis do destino -

o que é mais inquietante que imagino ...

                             

I – Trata-se de dois temas sem a mais remota correlação, escolhidos tão somente pela oportunidade nesta voragem de novidades e de acontecimentos que se atropelam sem cessar no mundo em que vivemos e no direito tupiniquim, nestes tempos horrivelmente convulsionados de um lado, e horríveis de outro. O mundo lembra um filme de horror.

Hoje em dia cada novidade precisa ser explorada no dia em que ocorre porque amanhã  será enevoada pela novidade de amanhã, e já meio esquecida.  As ocorrências,  por mais relevantes,  não têm tempo sequer de se firmarem na consciência das pessoas nem muito menos de serem assimiladas nem refletidas, porque um dia após já aconteceram outras, correlatas e tão relevantes quanto aquelas, que lhes roubaram o foco, o momento e a atenção.

Nunca o ser humano precisou ser tão lépido se quiser  registrar e tabular os acontecimentos mais sérios que a cada segundo desabam sobre toda a gente do planeta, seja no polo norte, seja nas ilhas Fiji, seja no Equador, seja na acolhedora e cálida península de Kamtchatka. Mas por mais rápido que seja não o conseguirá, e passará longe disso.

Ninguém se esquiva ao bombardeio  das atrocidades diárias e horárias. A realidade mundial é uma por dia – e o direito, é claro, precisa a isso acomodar-se como possa, acaso tentando evitar o ridículo universal e absoluto.

Apenas para au vol d’oiseau citar um exemplo do patetismo e da impotência do direito em nossos dias cite-se a notícia, veiculada no dia 27 de maio de 2.024, de que, mesmo a Corte de Haia tendo (segundo ela, como se pudesse proibir alguma coisa) proibido a Israel que continuasse os bombardeios antiterror sobre Rafah na Palestina, em 48 horas ocorreram 60 ataques sobre aquela  cidade, à razão portanto de 1,2 ataque por hora ...

Alguma coisa de infinito ridículo, por conseguinte, ocorre no direito internacional – se é que isso sequer existe.

 

II – Em nosso país -  que ao sul está afundando  na água, no centro está secando e calcinando, e no norte está sendo dizimado por incêndios que só crescem – evidentemente o mesmo fenômeno da perplexidade das pessoas e das autoridades, das instituições e do direito, ocorre de modo avassalador ante o episódio monumentalmente gigantesco e trágico das enchentes no Estado gaúcho.

O Rio Grande  Sul sempre  constituiu um grande orgulho a nosso  país, por toda a sua história e pelo que ao longo dela conquistou e hoje ostenta aos nacionais. Observar, então, esse Estado ex abrupto submergir numa insólita inundação que nada poupa nem preserva é de estiolar o espírito mais forte, ou de abalar o mais insensível.

Como nossa matéria entretanto é o direito e não a crônica social, então derivemos as considerações para essa província da atividade humana, totalmente artificial como é porém absolutamente imprescindível nos melhores e nos piores momentos da vida ([1]).

 

III – Quando hecatombes como aquela inundação acontecem, e quando como ela atingem nível estadual de calamidade, é natural que as categorias jurídicas sofram abalo e impacto       equivalente.

O direito existe para evitar que os homens se devorem uns aos outros, e para tanto se mune de instituições as mais amplas e variadas, ou de outro modo não teria ação. E todos esperam, no mínimo, que as instituições, cogentes como são,  funcionem.

O Brasil e o mundo experimentaram recentemente uma ainda mais  trágica experiência, a da pandemia de coronavírus em 2.021/2, que ceifou alguns milhões de vidas no planeta.

Naquele episódio, como neste presente da inundação gaúcha, o direito se contorce miseravelmente, e  evidencia a sua limitação, a sua manietação ante as necessidades vitais dos atingidos, a sua quase impotência institucional para regular ou para disciplinar o que quer que seja.

E mesmo para coibir as amaldiçoadas criaturas que se aproveitam da catástrofe para furtar, roubar, pilhar casas e acampamentos, desviar doações, violentar pessoas, mesmo para impedir isso o pobre direito se vê premido pela dificuldade absoluta de ter alguma eficácia  dentro da hecatombe. O direito não deve ter sido criado para inundações.

 

IV – Um problema que imediatamente chama a atenção dos publicistas é a questão das licitações, mas antes disso, e mais importante,  as consequências da decretação de estado de calamidade em todo o Estado gaúcho, procedida através do Decreto nº 57.596, de 1º de maio de 2.024, do Governador do Estado.

Nas decretações semelhantes por ocasião da pandemia aconteceram desvios de verbas públicas, corrupção bem caracterizada, embustes. mentiras e falcatruas  de toda ordem, praticadas por alguns governantes estaduais e municipais – ratos humanos de esgoto, vermes da  espécie, cancros vivos da humanidade -,  e neste dilúvio riograndense também já se noticiam eventos criminosos similares.

É natural e imprescindível que se decrete a calamidade, porque infelizmente  é real e não inventada.

Nas calamidades decretadas pelo Executivo tanto a licitação se torna dispensável (Lei nº 14.133/21, art. 75, inc. VIII) quanto a abertura de créditos extraordinários por decreto do Executivo passa a ser lícita, sem lei específica autorizadora (lei nº 4.320/64, art. 41, inc. III e art. 44).

Aberto o crédito extraordinário pelo Governador ou pelo Prefeito,       passam a poder ser adquiridos diretamente, sem licitação, bens, serviços e       obras, supostamente destinadas ao atendimento da situação calamitosa do território abrangido pela decretação de calamidade.       

O controle da regularidade desses negócios – seleção do  que comprar ou contratar, destinação dos bens adquiridos, utilização conforme a necessidade excepcional acontecida     - tudo isso se revela          espantosamente difícil e temerário.   Não se trata apenas  de um controle trabalhoso, mas de um verdadeiro desafio à argúcia de administradores honestos, sérios de propósito e que nesta vida valham o ar que respiram.

A fiscalização das contratações para atender um tão gigantesco universo de necessidades desesperadas da população há de ser prévia, contemporânea e posterior às contratações.  Exercida pelos entes contratantes, os de fiscalização interna e os de fiscalização institucional externa, como os Legislativos, os Tribunais de Contas, o Ministério Público e quantos outros existam com função fiscalizadora.  

 

V - Tão relevante quanto fiscalizar a adequação das compras diretas às suas finalidades – ou talvez ainda mais importante   -      é controlar os seus preços. O flanco e a oportunidade que situações emergenciais e de calamidade abrem aos aproveitadores  do dinheiro público – chamemo-los assim – são únicos ...

Outro caso real, deste mesmo episódio diluviano: por volta de março/abril de 2.024 uma ponte que servia um Município gaúcho foi destruída pela água. Consultados os preços oficiais, estimou-se em 20 milhões de reais a reconstrução. Inconformada, a população local não aceitou a estimativa e ela mesma, com seus próprios recursos e auxílios igualmente privados, construiu, por cerca de um quarto daquele valor, referida ponte.

As chuvas prosseguiram, implacáveis como nunca, e muito mais obras públicas foram de roldão nas enxurradas, mas não a ponte construída pela população. Manteve-se firme, e lá ainda está, servindo bem. Ocorrências como essa nos fazem indagar crucialmente para que diabos existe o governo...

Então, os preços precisam ser implacavelmente controlados nas contratações diretas, uma vez que, ainda que alguém seja responsabilizado nos anos  futuros por contratos ditos superfaturados, essa responsabilização nem sempre dá resultados úteis às comunidades, quando dá algum resultado.

A ocasião, sabe-se bem, faz o ladrão; cumpre tentar coibir a sua ação nefasta, até porque a desgraça geral e absoluta da população não faz a menor diferença aos larápios, como inexiste limite à sua ambição e ao seu inescrúpulo.

O direito tenta equacionar situações de perigo e de calamidades, e nesse sentido faz o que pode nas suas diversas especialidades.  Mas não há como negar que a maior proteção com que pode contar o administrado, independentemente de sua crença, provém das potestades celestiais, dos anjos da guarda e dos espíritos benfazejos que seguramente existem. O direito, pobrezinho, ainda que precise ser observado sem hesitação, tem limitações muito curtas, e inimigos ferozes entronizados em postos-chaves.

Nas emergências e nas calamidades se o cidadão tiver juízo o direito é desnecessário, mas se não tiver ele é inútil. A imaginação humana é infinita, sobretudo para delinquir e o agente  extrair proveito ilícito do evento que for.

 

VI – Transita-se agora para a segunda parte dos temas deste breve artigo, estes de natureza iminentemente processual – o que é incomum dentro da longa série de artigos de direito administrativo que temos publicado. Acontece que pelas mais prosaicas razões estes assuntos tema, súmula, súmula vinculante, enunciado, repercussão geral,  e alguns outros ainda, de um momento para outro caíram na boca do povo.

Bem ou mal é comum se divisarem os mais diversos profissionais brandindo com grande galhardia estas palavras dentro das considerações também as mais variadas sobre a Constituição Federal, tal qual ocorreu  após a promulgação da Constituição em 1.988, quando entraram até em conversas de botequim as expressões eficácia plena, eficácia contida, autoexequibilidade e exequibilidade condicionada das leis e das outras normas jurídicas.

Bom que  assim aconteça, porque de toda essa cogitação alguma luz haverá de sair.  Melhor que expender árduas lucubrações sobre futebol ou sobre reality-shows, a mais indigente manifestação da história da comunicação humana.

Os assuntos processuais escolhidos são exatamente o tema, com repercussão geral e sem repercussão geral; a súmula de jurisprudência predominante, os enunciados e os recursos repetitivos.

 

VII – Registre-se em primeiro lugar que estes institutos de direito processual, como quase tudo em nosso país, estão confusamente definidos na legislação processual, e o seu prático baralhamento e a sua confusão se iniciam por aí.  

Em segundo lugar boa parte das inovações terminológicas que se observam, muita vez por simples nomes diferentes a velhas e consagradas instituições,  ocorrem por meros modismos,  como nas coleções de outono-inverno para 2.024 ou nas novas cores de automóveis, e se devem a quem precisa inventar coisas para se afirmar, ou manter o emprego,  e tentar deixar alguma marca na história do direito – para o quê contam com vasto e imediato séquito de acólitos, cordeirinhos obedientes e que nada questionam.

Em geral se trata de quem antes preza  o nome, a fachada e o rótulo do que o próprio instituto, e que – desculpe-se-nos - resolve os problemas da dogmática pela taxinomia, ou seja, que equaciona os problemas de essência ou de fundo apenas mudando o nome das coisas. Bem como quem não é servido pelo restaurante onde tenta almoçar às 17 horas, mas que é atendido imediatamente após converter seu pedido de almoço em de jantar. Mudando-se o nome, em nossa terra tudo se resolve num passe de mágica !

 

X- Comecemos por indicar algumas definições primárias e originárias:

- enunciado é a formulação genérica, de algum Tribunal, que resulta da compilação e da conclusão geral extraída de julgamentos similares sobre determinado assunto. Exemplo: se reiteradamente o Tribunal julga que não incide o imposto tal sobre a aquisição do produto qual, então para racionalizar futuros julgamentos do mesmo objeto esse Tribunal aprova e publica um enunciado, que resume aquela conclusão e com isso abrevia e objetiva os julgamentos futuros. Por vezes é designado pela palavra verbete;

- súmula é o conjunto ou a suma  dos enunciados de determinado Tribunal. Chama-se-a com frequência súmula da jurisprudência predominante, e sendo um amplo conjunto de enunciados abrange diversos temas, em geral sem nenhuma correlação;

- súmula vinculante é uma criação do art. 103-A da Constituição, a ela acrescido pela EC 45, de 2.004, que tem o seguinte caput e § 1º:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.  (Itálico nosso)

Observa-se que a súmula vinculante condiciona e sujeita a (I) todos os organismos do Poder Judiciário e também (II) a Administração pública (Executivos, governos) federal, estaduais e municipais, nesse conjunto incluído o Distrito Federal.

Se a súmula não for vinculante – ou seja se não for aprovada e publicada com esse título – então formalmente não condiciona a vontade daqueles mencionados organismos públicos, que em suas decisões poderão fundamentadamente divergir da súmula, ainda que isso em geral tenha pouco efeito prático, como seria nadar contra a torrente;

- tema – no vulgo significa simplesmente um assunto, seja qual ou do que for.  Na matéria processual significa o recurso julgado na forma do CPC em que o  Tribunal estabelece uma tese a ser aplicada aos futuros processos em que se venha a discutir a mesma questão. É também tratado como recurso repetitivo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (matéria do art. 1.036 do CPC).

É a decisão tribunalícia sintetizada em fórmula apta a nortear futuros julgamentos sobre a mesma causa algo muito similar ao enunciado.

Pode ter, como pode não ter, repercussão geral;

- repercussão geral – é a qualidade da decisão do Supremo Tribunal Federal ‘que ultrapasse os interesses subjetivos da causa’ quando envolvidas discussões econômicas, políticas,  sociais ou jurídicas, qualidade essa que precisará ser demonstrada como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário.

Foi referida no § 3º do art.   102 da Constituição, redação da EC 45/2004, dispositivo esse de seguinte redação:

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Itálico nosso)

O Supremo Tribunal Federal em seu site assim define essa qualidade, pretendendo  guindá-la à condição de instituto jurídico:

1. Repercussão Geral

Instituto processual pelo qual se reserva ao STF o julgamento de temas trazidos em recursos extraordinários que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Foi incluído no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentado pelos arts. 322 a 329 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e pelos arts. 1.035 a 1.041 do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015).

Em rigorosa verdade  a repercussão geral não constitui nenhum instituto ou instituição jurídica, porque é uma simples qualidade, atributo ou característica de uma decisão judicial, do Supremo Tribunal sobre determinado tema, pela qual qualidade aquela decisão ultrapassa os lindes dos interesses discutidos no processo e se espraia por interesses econômicos, sociais, políticos e/ou jurídicos que envolvem um número indefinido de interessados.

Repercussão geral é o reflexo de uma decisão do STF não apenas para as partes no processo, mas que pela sua ‘grandiosidade’ é dotada de ampla aplicabilidade aos cidadãos generalizadamente considerados,  naqueles mencionados  aspectos econômico, político, social e jurídico.

Por essa qualidade de repercussão geral a decisão sobre o tema extravasa os limites do(s) processo(s) de que se originou para se impor como diretriz de futuros julgamentos sobre o mesmo tema em sede de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal.

E algo assim, por muito importante que seja,  não pode ser classificado como um instituto jurídico, porque não dispõe de característica específica e descritível com individualidade. É uma qualidade de alguma coisa, não uma instituição.

 

XI – Mencionou-se ao início da frequente confusão ou baralhamento das definições.

Com efeito, quando alguém imagina ter aprendido o que é súmula e o que é enunciado surge um enunciado com título de súmula, como por vezes  a súmula de jurisprudência predominante perde esse sentido coletivo e se refere a apenas um tema.

Na Justiça do Trabalho o problema é similar. Houve o tempo das súmulas, ali pelos anos 80 e 90; depois eclodiram os prejulgados – que são diferentes, pois que indicam apenas uma tendência para as futuras possíveis súmulas. Mas entraram na moda em lugar daquelas, e tiveram seus anos de glória. 

A seguir vieram os enunciados, assumindo as luzes da ribalta naquele carnaval taxonômico.  Nada como um dia atrás do outro, na moda e nos modismos que se sucedem mesmo no terreno judicial.  Entendemos humildemente que é melhor não contrariar  as autoridades taxonômicas das Justiças, e do próprio direito.

Mas o recado  a  dar em meio a   este panorama - respeitosamente - circense é tranquilizador: se a questão é apenas de nome, e se o direito de fundo não se ressente dessa farra-do-boi  justerminológica, então nada há a temer. Quem não tem a informar da essência, então que altere os nomes.  Já descobriu  algo a fazer.

 

[1] O direito lembra quanto a isso o maravilhoso Central Park, de New York: é totalmente artificial. Mas ai dos homens não fosse ele, e ai dos novaiorquinos sem o seu inigualável logradouro.