CONTRATAÇÃO NÃO-EXCLUSIVA (ART. 49)

CONTRATAÇÃO NÃO-EXCLUSIVA (ART. 49)

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jun/2004)

 

I – Reza o art. 49 da Lei nº 14.133, de 2.021:

Art. 49. A Administração poderá, mediante justificativa expressa, contratar mais de uma empresa ou instituição para executar o mesmo serviço, desde que essa contratação não implique perda de economia de escala, quando:

I - o objeto da contratação puder ser executado de forma concorrente e simultânea por mais de um contratado; e

II - a múltipla execução for conveniente para atender à Administração.

Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, a Administração deverá manter o controle individualizado da execução do objeto contratual relativamente a cada um dos contratados.

É uma questão, digamos, marota, safada. Parece muito simples, quase óbvia, a possibilidade de o ente público contratar mais de uma pessoa, física ou jurídica, para em conjunto e concomitantemente executarem o único objeto do contrato, cada qual realizando uma parte. E não se fala de necessariamente apenas dois porque podem ser diversos, concorrentemente trabalhando.

A nova lei de licitações  trata com muita brevidade o assunto, mais ligeira do que seria lícito esperar porém já dando ensejo a comentários sobre o tema, que não é tão óbvio quanto parece.

 

II – Existem regras tácitas ou costumeiras, ou implícitas na lei e na prática diária, que muita vez não estão escritas mas cuja habitualidade cotidiana praticamente as confirma, ou mesmo consagra – por vezes sob a jocosa categorização de usos e costumes ([1]).

Um exemplo: se o edital não informa se o preço a ser cotado numa licitação, dentro de determinado item se houver vários compondo o objeto,  é unitário (por unidade de obra, de serviço ou de material dentro do item) ou se é global para todo o item, então a regra é entender que o preço a ser cotado é global para o item inteiro.

A explicação ou a lógica desse raciocínio é simplesmente a de que quem quer adquirir determinada coisa a quer inteira e não dividida em seus componentes, ainda que essa técnica de cotações unitárias possa ocasionalmente, conforme o objeto, ser coerente e ter sentido.  Mas não: se o edital não exige a cotação unitária, então apenas por essa inespecificação a cotação deve ser global, formulada para o item na sua integridade.

Voltamos ao nosso tema. Se o edital não especifica cuidadosa e inequivocamente que a contratação será obrigatoriamente dividida em dois, ou em três, diferentes pessoas, então ela não o será, e o objeto será adjudicado a um único proponente.

Era frequente – hoje a tecnologia evoluiu, e os bilhetes são papeizinhos de computador - que a cia. do Metrô de São Paulo dividisse a adjudicação da impressão de bilhetes a dois ou três proponentes, e a explicação daquilo era estratégica: se o vencedor único quebrasse, abrisse falência ou sofresse  sinistro de tal monta que o imobilizasse, então haveria risco de os bilhetes não serem fornecidos, e os trens não terem como circular com passageiros. Dividindo-se o objeto entre dois ou três contratados, entretanto, esse risco cai exponencialmente.   

Esse é um motivo estratégico e igualitário da operação portanto, jamais se podendo arguir que afrontasse  alguma regra ou algum princípio de licitação. A regra divisiva era, é e precisa sempre ser anunciada om absoluta clareza, e quem não a aceitar queira por gentileza manter-se longe do certame. 

Outro exemplo se dá nas complexas licitações, concorrências, para a concessão de serviço de transporte coletivo de passageiros por linhas de ônibus. Não convém, absolutamente, entregar todo o vasto cipoal de linhas de uma cidade grande a uma só empresa, exatamente pelo mesmo motivo de segurança: se uma empresa por qualquer motivo precisa cessar a prestação do imprescindível e indispensável serviço, sempre haverá outra(s) que, mediante rápidas adaptações,  o possa(m) manter.

 

III – Mas aquela regra da partição da adjudicação, já é possível concluir, era e é excepcional.

Apenas em caráter excepcional, adequadamente justificado nos atos convocatórios da licitação, se a admite. E o critério há de ser muito bem descrito, isento de dubiedades – que muita vez são traiçoeiras, e o ente acaba sendo obscuro quando se imaginava claríssimo.

Se não fosse excepcional a possibilidade, então o ente licitador jamais precisaria justificar a divisão do objeto entre mais de um proponente, como não precisa justificar especificamente porque compra mil toneladas de farinha ou um milhão de resmas de papel sulfite.     Deve ter planilhas de quantitativos de estimada necessidade, mas não precisa justificar nada além disso.

Mas separem-se as categorias: uma coisa é dividir o fornecimento de um  milhão de milheiros de tijolos por três ou quatro fornecedores – que entregam exatamente o mesmo tijolo.  Outra coisa, bem distinta, é dividir as 50 linhas de ônibus que cobrem 1.500 Km² de uma cidade em trajetos completamente diferentes, cada qual com suas características e suas dificuldades peculiares.

No primeiro caso o objeto é realmente um só, que apenas é dividido por ser muito volumoso para a entrega a um só fornecedor. No segundo caso a igualdade é apenas genérica – linhas de ônibus urbano – porém cada qual é um desafio autônomo, o que transforma o objeto em 50 partes genericamente semelhantes, mas nunca idênticas.

E essas duas grande categorias de objetos divisíveis entre  mais de  um adjudicatário implicam reflexão imediata sobre o talvez mais importante fator orientador do certame: o preço.

 

IV – A lei nada diz sobre a questão do preço no art. 49. Como ficamos, então ? Podem ser diferentes entre os proponentes    adjudicatários        ?  Precisam ser iguais ?

Ainda que a resposta seja quase instintiva, o art. 82 da lei de licitações, que cuida do registro de preços,  fornece subsídio ao raciocínio:

Art. 82. O edital de licitação para registro de preços observará as regras gerais desta Lei e deverá dispor sobre: (...)

III - a possibilidade de prever preços diferentes:

a) quando o objeto for realizado ou entregue em locais diferentes;
b) em razão da forma e do local de acondicionamento;
c) quando admitida cotação variável em razão do tamanho do lote;
d) por outros motivos justificados no processo;

IV - a possibilidade de o licitante oferecer ou não proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital, obrigando-se nos limites dela; (...)

VII - o registro de mais de um fornecedor ou prestador de serviço, desde que aceitem cotar o objeto em preço igual ao do licitante vencedor, assegurada a preferência de contratação de acordo com a ordem de classificação;

O legislador dedicou-se mais a detalhar as condições do registro de preços do que  no rápido artigo sobre contratações não-exclusivas, no art. 49.

É uma referência oficial portanto a do art. 82, e devem, pensamos, servir como parâmetro à questão dos não contratações não-exclusivas, do lacônico art. 49.

 

V – Se estamos diante de contratações do mesmo objeto dividido entre alguns proponentes,  utilizando-se emprestado o correto   critério do registro de preços – ainda que não se esteja em registro de preços mas em contratação imediata com os adjudicatários – temos:

- se mesmo que idênticos os objetos a serem entregues, se um entrega em Porto Alegre e outro entrega em Macapá resta natural que o de Macapá seja mais caro, pelo simples custo do transporte.  Nessa hipótese o edital deve indicar o critério de diferenciação dos preços para cada local de entrega, considerado algum local como referência de acréscimo 0;

- se em razão do local de entrega o produto deve ser acondicionado diferentemente (produtos de saúde, por exemplo, com os cuidados térmicos que exigem), então é justo no edital diferenciar-se o  preço conforme cada diferente circunstância;

- se outros fatores diferenciadores ocorrem, não previstos nas alíneas do inc. III do art. 82, então justo será que os preços variem conforme os custos do fornecedor, porém a justificativa deve ser cuidadosa e não daquelas que fazem arrepiar os cabelos até de calvos.

Não consideramos a hipótese ventilada na al. c do inc. III  porque não nos parece correta. Não se imagina como  por cotar um lote de mil unidades o preço unitário seja um, e por cotar um lote de um milhão de unidades o preço unitário possa ser outro, maior ou menor.

O único que parece razoável em hipótese assim é o edital fixar um preço-base para cada unidade, e indicar que em caso de cotação de um número gigantesco de unidades (o edital dirá o que é isso) o proponente precisará oferecer desconto sobre o  preço-base – mas mesmo assim é problemática a situação, se por acaso o proponente cotar abaixo do preço-base do edital, e a cotar apenas o lote gigantesco.

Recomenda-se desde logo, portanto, que o edital não se valha  do critério da al. c do inc. III do at. 82 da lei de licitações.

 

VII – O que foi visto acima se refere às exceções à regra consuetudinária e primitiva de que quem quiser ser adjudicatário de parte do objeto deverá reduzir seus preços até o menor preço obtido na licitação.

Se não houver circunstância diferenciadora entre os vários proponentes, então se torna evidente que todos deverão igualar seus preços ao menor obtido no certame - pena de serem desclassificados um a um, consultando-se-os pela ordem de classificação que se deu do preço mais baixo até o mais alto classificado.

Essa é a regra primitiva, instintiva e natural nas licitações, e tão óbvia que nem sequer foi escrita na lei ...

 

 

[1] O que não é tão estranho ao nosso direito consuetudinário e à nossa prática administrativa. Há juristas que, falando a sério  sob feição jocosa, cogitam sobre  revogação por desuso, incluindo mesmo a nossa tormentosa, sofrida, estrangulada e peripatética Constituição Federal ...  No momento em que ninguém sequer lembra  que a regra existe, não é o caso ?