PREGÃO ELETRÔNICO

PREGÃO ELETRÔNICO NÃO ADMITE AS PENAS DA LEI Nº 8.666/93

Ivan Barbosa Rigolin


I – Espanta-nos profundamente, nestes dias que correm céleres e só em si já muito pesados, um assunto que pouco tem a ver com as crises e as mazelas do mundo, e que chama à atenção, que é a sanha sangüinária  que tem acometido os pregoeiros eletrônicos na sua perseguição a licitantes que falham ou na habilitação ou em questões relativas à proposta comercial.   Quererão com isso os pregoeiros oferecer sua contribuição à maré de violências que prostra o planeta ?  Já não bastam aquelas ?

Com efeito, o muito freqüente relato de apenações as mais implacáveis, aplicadas ou ameaçadas de aplicação contra participantes de pregões eletrônicos – em aberto disparate com a regra penal do diploma regedor do pregão eletrônico – revela-se assustador, a uma pela latente antijuridicidade que fato encerra e a duas pela evidente imoderação e desmedida inequivalência ao fato gerador.

Aparentemente o princípio da proporcionalidade das penas, sinônimo da imprescindível dosimetria das sanções, anda cada vez mais esquecido e distante da consciência profissional não apenas daqueles como de um crescente número de agentes públicos, que de um para outro momento viram-se providos de grande poder sobre a vida e o destino de particulares candidatos a contratar com a Administração pública, e para tanto participam de pregões eletrônicos.

Vejamos por que a preocupação, e este alerta.

 II – O Decreto federal nº 5.450, de 31 de maio de 2.005, por força da delegação expressa que consta do § 1º do art. 2º da lei do pregão presencial, que a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2.002,  é o único diploma regedor do funcionamento do pregão eletrônico no país, e por força daquilo tem aplicação nacional.

Enfeixa, congrega e resume todas as regras originariamente aplicáveis ao pregão eletrônico, e admite a aplicação subsidiária de outras regras, constantes de outras leis ou normas, apenas quando expressamente admite, e quando essas outras regras existem.

E reza o Decreto nº 5.450/05, que é, repita-se,  a única  norma nacional disciplinadora  do pregão eletrônico no país:

“Art. 28. Aquele que, convocado dentro do prazo de validade de sua proposta, não assinar o contrato ou ata de registro de preços, deixar de entregar documentação exigida no edital, apresentar documentação falsa, ensejar o retardamento da execução de sua objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo, fizer declaração falsa ou cometer fraude fiscal, garantindo o direito à ampla defesa, ficará impedido de licitar e de contratar com a União, e será descredenciado no SICAF, pelo prazo de até cinco anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.” (Grifamos)

III – É sabido e certo que o  direito penal, seja o criminal propriamente dito, seja o exercido dentro da Administração pública com suas sanções administrativas, rege-se por alguns princípios que de tão basilares informam a sua aplicação e a sua eficácia do início ao fim dos processos, e sem os quais hoje em dia não se concebe nenhum direito penal.

Dentre esses os mais essenciais e estruturalmente monumentais são o princípio da tipicidade ou da legalidade estrita, que significa a apertadíssima adequação da conduta do agente a algum dos tipos penais descritos na norma, e o outro é o da dosimetria ou proporcionalidade da pena àquele conduta, a significar grandes penas para grandes delitos, penas médias para delitos medianamente graves e pequenas penas para delitos leves.  Apenas com estes dois princípios, corretamente plasmados na lei e adequadamente aplicados e exercitados pelas autoridades, todo o direito penal já se sustentaria.

No caso de normas penais não existe,  nem pode existir jamais em nosso direito, nenhuma interpretação ou leitura analógica, extensiva, ampliativa, sistemática, histórica, teleológica ou de outra natureza que não a rigorosamente apertada aplicação literal do que está escrito na norma, sem lugar para intermediações ou lucubrações sobre o que está escrito.  A regra penal não tem entrelinhas nem espírito oculto a sugerir comportamentos, mas apenas comandos objetivos como um tiro, ao alcance de quem apenas conheça o idioma em que está escrita.

Isto nada mais é que o princípio da tipicidade, que se extrai do inc. XXXIX, do art. 5º, da Constituição, o qual também, em ouras palavras,  materializa nada menos que o art. 1º do Código Penal brasileiro. O primeiro constitui  uma cláusula pétrea da Constituição, um direito e uma garantia individual da mais absoluta solidez, e o segundo, apenas, abre o mais importante diploma do direito penal.

IV – Não existe tipicidade em nenhuma conduta de nenhum agente, para fim da aplicação de determinada pena, se essa pena simplesmente não consta do texto penal.  Vale dizer: não é típica a conduta se algum tipo penal assim não a descreve, para o fim de que o agente mereça o apenamento.

Ora, se tal é certo, e se a norma que rege o pregão eletrônico não contém nem a pena de suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração, nem a pena de declaração de inidoneidade,  então tais penas simplesmente  não podem ser aplicadas, porque falta a legalidade indispensável ao apenamento, sabendo-se milenarmente que nullum crimen, nulla poena sine lege – ou, como expresso em nosso direito constitucional, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (Constituição, art. 5º, inc. XXXIX).

Alguém então dirá: mas neste caso o art. 28 do Decreto admite outras regras penais, e remete às “demais cominações legais”, e isto permite o apenamentoErrada a conclusão.

Sendo o Decreto nº 5.450/05 a única fonte de direito penal para participantes pregões eletrônicos, e não prevendo outras penas senão aquelas mencionadas no seu transcrito art. 28, então a forçada conclusão é a de que penalidade outra alguma, afora aquelas expressas no art. 28, constantes do diploma que for, poderão aplicar-se a licitantes em pregões eletrônicos.

Não existem no caso do pregão eletrônico “demais cominações legais” penais aplicáveis, porque o Decreto nº 5.450/05 não remete a subsidiariamente a outras normas em assunto algum, nem indica que demais normas penais seriam aquelas, de modo que adotar outros feixes normativos penais somente se poderia se também se pudesse interpretar analógica ou sistematicamente a norma penal, o que é rigorosa e definitivamente vedado.

V - Assim sendo, nem a pena de advertência, nem tampouco a de suspensão do direito de licitar e contratar com o poder público, nem muito menos a de declaração de inidoneidade, todas constantes da lei nacional de licitações e sem nenhuma repetição na norma do pregão eletrônico, repita-se, nenhuma delas pode ser aplicada em pregões eletrônicos, apenas e simplesmente porque nenhuma  consta do art. 28, do Decreto nº 5.450/05e isto parece de meridiana clareza.

 VI - Bem diferente é o que ocorre no caso do pregão presencial.

A lei do pregão presencial, a Lei nº 10.520/02, em seu art. 9º expressamente autoriza aplicar-se subsidiariamente ao pregão presencial a lei nacional das licitações, a Lei nº 8.666/93, de modo que tudo que dessa última couber material e juridicamente no pregão presencial, e tudo sobre que a Lei do pregão presencial não dispuser expressamente de outro modo – porque nesse caso vale a lei do pregão presencial e não a de licitações -, então tudo aquilo poderá ser aplicado da lei nacional de licitações ao pregão presencial.

Exemplificando, o edital do pregão presencial pode estabelecer uma pena que não conste da lei do pregão presencial, mas apenas da lei de licitações, como a de suspensão.  Pode, sim, porque o art. 9º da lei do pregão presencial expressamente o autorizou, na medida em que declarou aplicável subsidiariamente ao pregão presencial a lei nacional das licitações.

Diga-se mais ainda sobre esse assunto: pode o pregoeiro presencial deliberar aplicar alguma regra da Lei nº 8.666/93  no curso do pregão que realize, mesmo sem previsão no edital. Sim, porque norma alguma da lei do pregão manda que o edital informe quais dispositivos da lei de licitações poderão vir a ser aplicados no pregão presencial, de modo que o pregoeiro pode decidir ad hoc a respeito e nesse sentido, sem nenhum aviso editalício prévio.

Mas nada disso se estende ao pregão eletrônico, porque:

a norma do pregão eletrônico a essa modalidade licitatória, e

não existem “demais cominações legais” penais no Decreto nº 5.450/05, que pudessem ser aplicadas além daquelas penas elencadas no seu art. 28.

É fato,  porque a Lei nº 10.520/02, em seu art. 2º, § 1º, determina que o pregão eletrônico poderá ser realizado

“nos termos de legislação específica”,

e essa legislação específica é o Decreto nº 5.450/05, que jamais repete a lei do pregão presencial para autorizar qualquer aplicação subsidiária da lei de licitações ao pregão eletrônico.  Assim sendo, se para o pregão presencial regido pela Lei nº 10.520/02 pode-se aplicar subsidiariamente a lei de licitações que contém a pena de declaração de inidoneidade, o mesmo não ocorre no pregão eletrônico, que não se rege nem subsidiariamente pela lei de licitações e cuja norma regedora não contém essa pena.

VII – Mas é possível ir ainda além quanto à questão da inaplicabilidade da pena por ausência de  tipicidade.

Este é um excerto acórdão no  Agravo de Instrumento nº 778.017-5/5-00, da 8ª Câmara de Direito Público do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator o ilustre Des. Paulo Dimas Mascaretti, que, citando Celso Antônio,  por votação unânime manteve a r. decisão de primeiro grau que afastava a aplicação de penalidade em sede de pregão por ausência de previsão legal:

Como defende CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ‘(...) tanto a suspensão do direito de contratar quanto a declaração de inidoneidade, só podem ser aplicadas no caso dos atos tipificados na lei como crimes, pois não se admitiria seu cabimento em outras hipóteses sem que exista prévia descrição legal de outros casos de seu cabimento.’ (Curso de Direito Administrativo, 18ª ed. Malheiros Ed. 2.005, p. 600)

Nem se precisa ir tão longe quanto foi este louvável acórdão. O fato é que aplicar pena não prevista na norma disciplinadora do procedimento licitatório é abusar gravemente do direito penal e de seus princípios mais caros e indispensáveis, merecendo repulsa incontinenti de  todos quanto militem no direito.

VIII – Por outro lado e por fim, ainda na tentativa de aplacar a fúria penal que com freqüência acomete pregoeiros eletrônicos, muito importante é ter sempre presente que, mesmo que fosse possível aplicar as penas de suspensão ou de declaração de inidoneidade, ambas   da Lei nº 8.666/93, em pregões eletrônicos –  o que é terminantemente inadmissível -, então mesmo nessa fantasiosa hipótese   apenas poderia ser apenado  quem já tivesse sido contratado, jamais um licitante.

Sim, porque a lei de licitações reza:

“Art.  87 Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (...)

I – advertência;

II – multa (...);

III – suspensão (...);

IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar (...)” (Grifamos).

Examinando-se os arts. 86 e 88, o mesmo ali se verifica, de modo que a própria lei de licitações apenas admite pena a quem já detenha a condição de contratado, nunca a meros licitantes com expectativa de um eventual contrato.

Esta é mais uma prudencial advertência a quem se imagina livre para desimpedidamente aplicar toda a parte penal da lei de licitações em pregões eletrônicos, quando em verdade não pode aplicar nenhuma daquelas disposições.

E do Poder Judiciário, corolariamente,  nos mandados de segurança que já pululam em significativa quantidade se espera todo rigor para impedir quaisquer abusivas, ilegais e indevidas apenações a licitantes – eis que o mundo, mesmo sem isso, já se acha bastante mais violento que a imaginação faria supor.  Violências administrativas contra a lei  tornam-se hoje ainda mais repulsivas.