A INCONSISTÊNCIA DA LEI DE LICITAÇÕES PARA OBTER O MELHOR NEGÓCIO

A INCONSISTÊNCIA DA LEI DE LICITAÇÕES PARA OBTER O  MELHOR NEGÓCIO


Ivan Barbosa Rigolin
(abr/19)



I – É compreensível que o poder público tente se armar de tantas regras e tantos mecanismos de proteção ao interesse público de quantas possa dispor, o que é, de resto e aliás, inegociável, porque o dinheiro em causa é público.  Acontece porém que aquele genérico e impreciso  interesse público é quase que  invariavelmente traduzido pela equação do  menor preço que se obtenham dos proponentes nas  licitações que se realizam, ou pelos fornecedores  em contratações diretas e  sem licitação.

Se lidamos com dirigentes sérios, honestos de propósitos e idôneos – ou sejam aquelas pessoas que, sic et simpliciter,  têm vergonha na cara  porque seus pais assim lhes ensinaram -, não deixa de ser em geral péssima a idéia de perseguir sempre o menor preço, na medida em que todos os operadores das licitações, e o Prefeito, e o Presidente da Câmara Municipal e o Governador do Estado com seus Secretários, e os Deputados estaduais e federais, e os Senadores da república, e o Presidente da mesma república, e os Ministros que nomeia, e o cidadão que trabalha e se esfalfa - se não for um dos miseráveis de Victor Hugo porventura no auge da sua penúria -,  nenhum desses compra nem utiliza as  coisas mais baratas do mercado.

E o motivo dessa natural seleção é bastante simples: os objetos baratos o são porque em geral são vagabundos, desprezíveis na sua concepção e ordinários na sua fatura; o pouco que custam já é muito em face do pouquíssimo que valem.

Assim é e ocorre  quanto a  qualquer pessoa minimamente provida de meios culturais dentro de  qualquer país e de qualquer lugar. Não é de hoje, aliás, que quem quiser algo bom deve pagar por isso.

E porventura o poder público, a ele acaso ocorre algo diferente ? As necessidades da Administração seriam eventualmente diversas daquelas de todo cidadão, ou dissociadas daquelas presentes no mundo em que todos vivem, ou ainda peculiares e exclusivas do ente público, a merecer cuidado especial, diferenciado ou todo próprio ?

Ora, que infantilidade !  Para o poder público por acaso o barato não sai caro,  como caro sai  para   todos os seres que povoam o planeta ?   Se para o cidadão o papel higiênico precisa ter qualidade mínima aceitável, acaso para o poder público não precisa ? 

O café que se bebe aos borbotões, então por causa do preço para a Administração precisará  ser aquela mescla de palha de milho, serragem e borra de fumo que para ele se costuma vender pelo menor preço, por vezes sabidamente inexeqüível ?   

Então sob o farisaico manto da proteção do erário graças ao menor preço o poder público pode ou deve consumir lixo ?  Quem concebeu essa idéia amebiana ?  O poder público se integra de pessoas ou de quê diverso ?

 II – Já deve estar claro que o propósito desta apresentação é alertar a autoridade -  antes de todas o legislador e o julgador de contas públicas – para a grave inadequação da atual lei nacional de licitações e contratos administrativos, a Lei nº 8.666, de 1.993, para um imenso número de negócios que a Administração realiza, sejam simples compras, sejam obras das mais simples às mais complexas, seja a infindável gama dos serviços que contrata.

Inadequação, sim, porque uma lei que praticamente obrigue, praticamente sempre, escolher o menor preço, e, ainda, uma lei que impede a fixação de preços mínimos classificáveis nas licitações será tudo, menos uma boa lei.  Servirá ao ideário que for, menos ao de uma boa política de negócios públicos. 

Menor preço deve ser uma meta gerencial, uma ampla diretiva, uma política permanente, mas não pode ser uma maníaca obsessão da autoridade que nada mais valorize em derredor, nem converter-se na doença do cego que não quer ver. Ponderação, austeridade  e sensatez negocial  são uma coisa, mas psicoses depreciativas da qualidade em função do preço são bem outra, que arruínam e comprometem administrações inteiras, e que no momento seguinte resultam muito mais caras que as soluções baratas.

O moralismo do menor preço a qualquer preço – sobretudo ao preço do sacrifício da qualidade -, é a pior e mais desastrada política de gestão que se possa imaginar.  Se é insuportável já dentro de nossa casa, que então dizer na esfera da Administração pública -   que neste país gestiona o interesse de mais de duas centenas de milhões de pessoas ?

 III - E nosso país parece condenado a suportar a sua lei de licitações por tempo indeterminado por mais que se a achincalhe, detrate e exorcize, porque as diversas tentativas de trocá-la por outras leis, dentre projetos melhores e piores, redundaram em absolutamente nada após decorrido mais de um quarto de século.  Talvez uma maldição bíblica, um anátema cósmico como teriam sido  as sete pragas da antiga civilização egípcia.

Muito  curioso é que, por mais que se deprecie, blasfeme e murmure contra  a lei de licitações, um grande número de outras leis sobre os negócios da Administração depende da lei de licitações como coluna-mestre ou como pedra angular: vejam-se a lei das PPPs – parcerias público-privadas; a dos consórcios públicos; a do RDC - regime diferenciado de contratações; a do pregão presencial (e o decreto do pregão eletrônico);  a das concessões de serviço público; a das micro e pequenas empresas, dentre outras que se anunciam e que, tais quais estas acima, não dão um passo se não amparado pela Lei nº 8.666, de 1.993. 

Por exercício de imaginação, se em dado momento se revogar a lei das licitações todas aquelas leis  perderão a maior parte de seu objeto e sua exeqüibilidade inteira, e esboroarão por terra como o Museu Nacional, os prédios construídos pelas milícias fluminenses,  os edifícios invadidos no centro de  São Paulo, as encostas dos morros e as ciclovias costeiras da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ou ainda, coroando este circo de horrores da incúria humana,  a parte superior da mais significativa catedral existente no mundo. 

A lei nacional das licitações e dos contratos administrativos já de um bom tempo vem contrariando a sabedoria  popular que prefere um fim horroroso a um horror sem fim:  é um horror que não tem fim.

 IV -  Insistimos num ponto: se se lida com autoridades sérias e com fornecedores sérios, então a licitação é o pior procedimento que alguém poderia imaginar para obter vantagem para o poder público que a promove.  É obrigatória pela Constituição e pela lei de modo enfático e peremptório, porém isso não afasta esta conclusão.  Explica-se.

Se a autoridade é honesta, precisando adquirir um veículo para o ente que administra conseguirá o melhor negócio possível se consultar o mercado fornecedor e pagar à vista e em dinheiro – sem licitação nem pesquisa de preço que só sirva para cumprir tabela e dar satisfação aos órgãos de controle das contas públicas.

No desespero de vender – um fato que ultimamente ocorre no mercado brasileiro, sobretudo desde 1.500 -, os comerciantes literalmente fazem qualquer negócio, dentre o conjunto dos quais está por certo o melhor negócio para quem quer que seja, poder público incluído.

Mas não. Todos sabem como são muitíssimas autoridades e como são muitíssimos fornecedores, muitos dos quais hoje passam os dias trancafiados em celas de presídios: simples bandidos, confiáveis como uma nota de 13 ou  um faminto jacaré na água.  Então, contra esses, licitação, na tentativa de conter os impulsos criminais.  Por isso, principalmente,  existe a licitação: combater preços excessivos e escolher a melhor proposta.

Muito bem. A autoridade, obrigada a licitar o automóvel quando sabe perfeitamente quanto custa, quanto vale, por quanto consegue obtê-lo e o que mais pode auferir de vantagem em qualquer negócio do ramo, na licitação recebe propostas com o preço integral das concessionárias, das sabidamente abusivas e artificiais tabelas de fábrica.

E não adianta pechinchar, pedir desconto, desclassificar todas as propostas e repetir o certame, nem coisa alguma: muita vez, combinados entre si, os comerciantes não arredam pé de preços oficiais de fábrica, que sabem excessivos e escorchantes, e que eles próprios e seus familiares jamais pagariam.

Em dado momento, sem alternativa á vista, quase em desespero de causa,  autoridade se vê compelida a comprar o veículo ao preço cheio; e o licitante vencedor sai do negócio rindo, debochando da autoridade e  da |Administração, e tripudiando sobre os procedimentos oficiais de competição,  que lhe propiciaram um grande negócio...

É necessária de fato a licitação ? Sim, claro, a resposta é afirmativa. Por defeituosíssima que seja a lei de licitação, é sempre imprescindível alguma seleção de propostas neste país de saqueadores de carga, de golpistas contra o ente de previdência, de falsos doentes e falsos mortos (!!),  de superfaturadores e de bilionários propineiros, de desviadores de doações...  ou, agora a última novidade: de falsos flagelados com o desastre de Brumadinho, inscrevendo-se em programas de reparação material e de indenizações sem terem estado nem perto da tragédia... (1)

Num acampamento de ciganos como tem sido nosso país, licitação é muito pouco para tentar prevenir a criminalidade inata e latente da gentalha que de um lado é eleita governante, e de outro lado compõe os mercados fornecedores de bens, serviços e obras.  Evidentemente não são todos nem de um lado nem de outro, porém são muito mais do que em sã consciência se poderia imaginar.  Se, pinçando um só exemplo,  o Rio de Janeiro hoje tem presos três ex-Governadores, e recentemente  presos outros dois, então algo de muito anormal decerto ocorre em nosso país.

 V – Onde ou em quê, afinal e então, reside a impropriedade da lei de licitações, ou a sua insuficiência e a sua inadequação para conduzir a Administração a bons e vantajosos negócios com particulares ?

A lei é tida como permitindo exclusivamente a escolha do vencedor que proponha o menor preço.  Com efeito, dentro dos quatro tipos de licitação, que correspondem aos quatro critérios de julgamento (art. 45, § 1º), logo à primeira leitura se observa e se conclui que a única preocupação real do diploma é eleger o menor preço (art. 45, §  1º, inc. I), porque as licitações de melhor técnica (inc. II) e de técnica e preço (inc. III) só carecem de um complemento na sua descrição: é proibido realizar.

São tantas as dificuldades, os artificialismos, as arbitrariedades e as incertezas que esses dois critérios estabelecem como parâmetros que desestimulam ao máximo a aventura  de se iniciar uma licitação de um desses dois tipos, cada qual com seu critério.

A mais simples, melhor técnica (art. 46, § 1º) exige três envelopes e desde logo informa que o edital precisa informar qual o preço máximo aceitável – ou seja, estamos diante de preço e não de técnica.  Uma licitação de técnica pode indicar sem dúvida alguns parâmetros de preço, mas não, simplesmente, estabelecer o preço máximo como pré-requisito de classificação. Ou seja: melhor técnica até x, como o passageiro do táxi que indica a direção para onde vai, mas apenas até o taxímetro atingir o valor tal.  Ou como a filha que pede ao pai informar seu namorado que nunca mais quer vê-lo, até o baile de sábado.  Ora, mas que grande técnica !..

 Semelhante canhestra manobra  pode conduzir, como freqüentemente conduz, à contratação da empresa de pior técnica dentre as classificadas, ou seja a única que aceitou contratar o objeto ao preço da de preço mais baixo, tudo dentro do preço que a Administração limitou...  e isso não é melhor técnica nem aqui nem no Império do Sol Nascente.  Não se fale em melhor técnica quando o que está em jogo, antes de tudo, é o  preço.

Depois, a lei exige que tanto a licitação de melhor técnica quanto a de técnica e preço (at. 46, § 2º) estabeleçam critérios de avaliação das  propostas técnicas, absolutamente arbitrários e subjetivos uma vez que  não há como disso fugir, para então permitir classificar tecnicamente  as propostas que atingiram avaliação técnica mínima, ou seja, é a instituição da tão combatida e amaldiçoada nota técnica, por mais que a lei se esquive desse nome.

Até este ponto já se contam inúmeras subjetividades na elaboração do edital e dos fatores de julgamento, que orientam a formulação das propostas. Aqueles fatores, em geral sem qualquer dificuldade,  poderiam  com a mesma simplicidade ter sido invertidos pelo edital sem que ninguém tivesse como opor qualquer resistência tecnicamente objetiva, porque tudo até então foi absolutamente pessoal da autoridade, de seu gosto particular e desvinculado por completo de qualquer objetividade material ou científica.

Ora, em sendo assim, pergunta-se: e o princípio do julgamento objetivo, previsto como obrigatório no art. 3º da mesma lei de licitações, onde fica e como pode ser exercido num semelhante pântano de subjetividade ?   Como ser objetivo aplicando-se um edital  fruto do humor ocasional  do autor do edital, o qual ciência, regramento ou método algum no universo explica, decifra  ou justifica ?  

Repita-se a pergunta: que raio de melhor técnica seria aquela ?   Melhor técnica de quê ?   Para quem ?

VI – A licitação de técnica e preço resulta um pouco pior, entretanto. Exatamente por quê, nem Nostradamus é garantido que vaticinaria.

Se na melhor técnica o preço máximo deve constar do edital, na técnica e preço não, pelo diferente mecanismo de realização.  Em ambas são exigidos três envelopes, sejam respectivamente os de documentos de habilitação, de propostas técnicas e de propostas de preço, imprescindíveis e sempre nessa ordem. Os habilitados na fase um passam à fase dois, e os classificados nessa passam à terceira, na qual podem ser desclassificados por vários motivos ou classificados, nesse caso  por ordem crescente de preços.

Acontece que a fase dois classifica as propostas técnicas segundo melhor atendam o edital, de acordo com os fatores e s pontuações  estabelecidos no edital – e aí começam os problemas -, atribuindo certo número de pontos a cada qual.  E, na seqüência, as que forem para a fase três serão também classificadas pela ordem crescente de preços,  cada qual em função disso também recebendo os pontos que lhe correspondam. (As depreciativamente denominadas notas técnicas  são exatamente essas pontuações).

A grande questão: de onde o autor do edital descobriu, extraiu, inventou, concebeu ou formulou as pontuações ? E de onde extraiu os fatores técnicos a serem atendidos pelas propostas ?  Quem ou o quê os instruiu ?  Como se os explicam com ao menos alguma objetividade ?  

Aqueles fatores, e aquelas pontuações, acaso não poderiam ser invertidas no edital ?  Não podiam algumas se suprimidas pura e simplesmente ?   Por que motivo a técnica vale  três e o preço dois ? Não deveria, ou não poderia, ser o inverso ?  Ou quatro e três ?   Ou dez e cinco ? Ou dois e um e meio, respectivamente ?

E por que motivo técnico os fatores foram aqueles do edital ? Não existiam outros aspectos das propostas a serem avaliados importantemente ?    Não é discriminatório este fator, que apenas poucas empresas detêm no país, enquanto se fosse outro o fator muitas empresas o poderiam atender ?   A escolha daqueles fatores não compromete  a competitividade, viciando o certame ?  Não seria muito mais técnico e potencialmente vantajoso incluir este outro fator, e aqueloutro ainda, ambos de notório domínio pelo mercado de fornecedores, ao invés dos especiosos que o edital estabeleceu   ?    Este edital não veicula um jogo de cartas marcadas ?  Não favorece a corrupção, ou não é fruto de propinas ?..

Francamente... alguém honesto de propósito merece sujeitar-se a uma suspeição como esta ?  A autoridade séria acaso merece responder pelo seu edital como se fora um ato criminal – se não o é ?

E quase todo edital de melhor técnica ou de técnica e preço desde que sai publicado já desperta essa maré de maledicências e de destrutivos comentários a espicaçá-lo, e a levantar todas as dúvidas possíveis sobre a honorabilidade do negócio pretendido.   

E o pior é que, neste pobre e desvalido país  absolutamente repleto de bandidos, quadrilheiros, velhacos e patifes sem a mínima honradez, gente fracamente alfabetizada e incapaz de escrever um recado para o filho ou de fazer um O na areia com um copo, essas reptantes criaturas muita vez justificam a maledicência...  que é tudo menos sem razão !

Imagine-se, apenas para breve ilustração, acreditar-se na seriedade de uma licitação de obra para a copa do mundo, neste país em que uma só empreiteira corrompeu as mais altas autoridades de doze países das Américas do Sul e Central ...    o que alguém pode esperar de um cenário assim ?

VII – Por tudo isso e por mais um pouco não é sem razão que como regra os Tribunais de Contas vejam com muito maus olhos essas duas espécies de licitações da melhor técnica e da técnica e preço, e que mesmo o Poder Judiciário  já tenha invalidade inúmeros daqueles certames.

Foi comum até pouco tempo empresas que vendiam radares de trânsito – equipamentos esses destinados tão-somente a arrancar dinheiro do cidadão para o poder público pagar suas contas, e  cuja inutilidade o Presidente de República está conseguindo demonstrar... – tentar empurrar goela abaixo das autoridades que a sua licitação precisaria ser de técnica e preço, já que, alegavam,  se trata de equipamentos de informática,   tendo-se em vista o § 4º do art. 45 da lei de licitações.  

Picaretagens e calhordices desse matiz são freqüentes, e todas elas vêm sendo, cedo ou tarde, rechaçadas e derrubadas decididamente pelos TCs e pelo Poder Judiciário – mas nunca faltarão pilantras que outras inventarão e as sacarão de cartolas de mágico. A teoria da geração espontânea em nosso país não está assim tão superada, pois que dia após dia geram-se espontaneamente as mais incríveis e imaginosas manobras delinqüenciais nos mais variados foros da sociedade e, infelizmente também, da Administração pública – por mais que se esforcem os entes e os órgãos de fiscalização e de controle, e o Judiciário,  para coibi-lo.

Apenas para evidenciar a má-fé que informava a ideia, hoje em dia as Prefeituras Municipais estão licitando radares de trânsito por pregão, que é sempre e por excelência uma licitação de menor preço. Basta verificar na internet e diversos editais assim ali aparecerão.

Somente até aqui, pode-se concluir que uma autoridade apenas escolherá realizar licitação de melhor técnica ou de técnica e preço se a tanto for judicialmente condenada.  Qualquer uma representa uma roleta russa jurídica  se o responsável for idôneo e respeitável. 

Ao montar o edital de qualquer uma das duas o ente público estará sendo necessariamente arbitrário, subjetivo,  personalístico, tendencioso – queira ou não – e aleatório, dificilmente tendo como justificar porque escolheu estes fatores e não o seu inverso, e aqueles pesos, e aquelas valorações e não outras diametralmente opostas. Um edital de licitação de melhor técnica, ou um de técnica e preço, é a festa do caqui, a casa da sogra ou de Irene, um circo romano em que literalmente vale tudo...

Ou seja: vamos ao menor preço, com todas as suas adequações e as suas inadequações...

 VIII – Mas será apenas por isto relatado – o que não é pouco – que   o  menor preço resulta quase sempre a regra única da licitação no Brasil ?   Não.

Iniciemos pelo fim, o pregão.  Todo pregão no Brasil é de menor preço, e ponto final. Assim manda a lei do pregão presencial, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2.002, art. 4º, inc. X, e assim manda o decreto do pregão eletrônico, o Decreto nº 5.450, de 31 de maio de 2.005, art. 2º.  Ou seja: inexiste pregão que não de menor preço – e o pregão está tomando conta de tudo...   A lei de licitações acaso teria poder, ou teria vocação,  ou teria licença,  para  reverter a regra do menor preço, que de resto, como existente hoje,  é uma invenção sua  ?...  Não parece.

Prosseguindo,  na lei de licitações além dos três tipos de licitação já mencionados existe o quarto, maior lance ou oferta (art. 45, § 1º, inc. IV). porém esse somente serve para leilões e outras formas de alienação de bens, e não  para sua aquisição, de modo que não serve ao ema deste artigo.

Então, cessem as preocupações paralelas e, realisticamente,  vejamos como tentar  tirar proveito do menor preço de modo inteligente e útil ao interesse público.  Quando não se tem alternativa a uma situação, ao menos o problema da escolha já estará resolvido, na medida em que o que não tem remédio remediado está.

IX – O art. 3º da lei elenca alguns princípios de administração aplicáveis à licitação - e poderia em verdade terçar diversos outros -, porém os que demandam maior atenção e cuidado na elaboração do edital são o da igualdade (entre os licitantes) e o da impessoalidade, que conduzem diretamente à regra do § 1º do artigo, que veda ao edital estabelecer condições restritivas à competitividade, e que estabeleçam preferências entre licitantes. 

Resolvidos esses desafios, então tudo se facilita à grande, porém a tarefa mais difícil é compatibilizar tais regras, que são corretas e necessárias, como a necessidade de eleger a proposta de menor preço, dentre as apresentadas e classificadas, sem comprometer a qualidade do que seja proposto.  Saber conduzir o edital a ser sedutor a propostas boas e baratas, eis o grande busílis de toda a questão.  Adquirir ótimo produto a preço alto qualquer um consegue, mas o poder público dificilmente pode dar-se esse luxo.  E dentro dessa limitação muita vez acaba adquirindo lixo, e, o que é pior,  muita vez por preço não tão baixo.

A principal matéria das impugnações a editais – longe a principal – é exatamente a alegação de discriminação dos impugnantes, que sempre se alegam prejudicados por indicações ¨especiosas¨ ou preciosísticas dos editais,  ou especificações do termo de referência que maliciosamente favoreceriam concorrentes, sem interesse público nenhum a justificá-las. 

Para todo licitante o único interesse público é o de adquirir o seu produto ou o seu serviço, e todos os produtos e todos os serviços da concorrência são inadequados, e o edital ao prestigiá-los está viciado e comprometido...  Ainda que muita vez assista razão total ou parcial aos impugnantes, por outro lado o número de picaretagens  e de vigarices veiculadas nas impugnações que se conhecem é avassalador, a caracterizar verdadeira indústria, com industriais especializados... (2)

O que está por trás dessa indústria é a lei de licitação e a excessivamente larga e complacente leitura que se costuma fazer dos princípios e das regras do art. 3º.  Com todo efeito, é preciso haver bastante rigor por parte da autoridade que aprecie a impugnação, sobretudo os entes de fiscalização, porque no mínimo, mesmo a pior irá provocar paralisação do certame, perda de tempo, trabalho ingente de técnicos e, no que for provida, refazimento de toda a parte a ser modificada do edital, com devolução de todo o prazo de publicidade, integral e nesse caso a ordem é da própria lei, e tremendamente nociva ao interesse que tutela.

Sim, deficiência da lei (art. 24, § 4º), porque se apenas uma pequena parte do edital – por vezes ínfima – é que merecerá modificação, então por que motivo devolver todo o prazo de publicidade, dentro do qual os licitantes precisam providenciar toda a habilitação e elaborar toda a sua proposta ?   O legislador não está minimamente preocupado com a celeridade dos negócios públicos, e mesmo quando a inflação brasileira chegou a 84% em um mês, em fevereiro de 1.990, o seu comportamento era idêntico.  De um legislador assim sai uma lei assim.

Já está muitíssimo atrasada a reforma da lei, que após ensejar diversos projetos que simplesmente desapareceram nos escaninhos congressuais e que ninguém mais no planeta sabem onde foram parar, continua o mesmo paquiderme legislativo que sempre foi, sem a mais remota perspectiva de ser atualizada.

Os problemas atuais permanecem portanto, tornando ainda mais premente uma interpretação da lei que seja mais elástica e consentânea com os dias de hoje, e que enfim reconheça que o poder público tem as mesmas necessidades de qualidade que todas as pessoas, e que não pode ser reduzido à condição de morto de fome que somente compra o pior do pior, em nome de austeridade e economia.

Essa atitude de perseguir o mais barato a todo custo menos resulta a menos econômica, a menos razoável e a menos civilizada dentre todas as possíveis: uma criança de oito anos o sabe, e rejeita sistematicamente produtos ruins, por mais que o pai invariavelmente relembre o precário equilíbrio das finanças domésticas.  Se a lei não sai do lugar, então que mude a sua leitura e sua interpretação.

X – Um edital pode alinhar três características do produto em licitação; pode elencar vinte e sete, ou duzentas e dezessete – querendo, o autor as encontra.

Mas precisa o mesmo autor ter presente sempre que cada característica indicada do objeto precisa ter uma explicação, preferentemente na ponta da língua, para poder justificar a descrição em caso de inquirição, pedido de esclarecimento, impugnação,  requerimento do Tribunal de Contas, inquérito da polícia ou do Ministério Público ou já, em caso de ação, do Poder Judiciário.  Cada exigência do edital tem de ter um motivo de ordem pública.

Nem tudo o que o poder público quer ou pretende precisa ser justificado antes, previamente; mas tudo precisa ter uma justificativa plausível, lógica e suficiente, para ser sacada com a rapidez  do revólver do duelista, em caso de necessidade administrativa, inquisitorial ou judicial.  Insistimos: rapidamente, pois o que demora para ser explicado já não cheira bem...

Então, se é assim pense bem o autor do edital no descrever o objeto em vista, pois que poderá ser instado a explicar cada exigência, seja lá do que for: eficiência, tamanho, cor, cheiro, fluidez, consumo, voltagem, gramatura, abundância de peças de reposição, valor de revenda, assistência técnica, garantia, segurança, localização ou compensações pela localização distante, material, permeabilidade, duração mínima, peso, revestimento, forração, idioma, tiragem e circulação, conteúdos mínimos, vedações de qualquer natureza... ou mais umas dez ou vinte mil características, variáveis na medida em que varie o objeto.

Coloque-as quantas quiser o edital, mas prepare-se o seu autor, e os setores técnicos que informaram a descrição, que cada qual delas precisa ter uma explicação.

O autor do edital nem sempre – ou quase nunca – é o reunidor ou o compilador das características do objeto. Trate então de informar àquele compilador que cada característica precisa poder  ser explicada em caso de requerimento, pena, sugere-se, de que simplesmente seja excluída. Não existe o produto necessário apenas porque a autoridade o quer. 

Se quer aquele ou aqueloutro, então descreva-o de modo que isso fique claro, porém sempre municiado da explicação técnica sobre a preferência – e  mesmo assim na maioria das vezes o ente público não estará livre de que surjam produtos com tais características do objeto desejado, sem que o seja.

Existe, como se percebe, um sutil limite entre o que é permitido e necessário descrever sem discriminar produtos similares, e uma tênue linha divisória entre o exigível exatamente e o que, por similaridade, precisa ser aceito dentro da mesma descrição.

Alei não favorece nem um pouco, em absolutamente nada, o deslinde desse problema, ou o encaminhamento da solução. Apela-se,  desse modo, ao bom senso e à noção de razoabilidade da autoridade para, sem abrir mão do que sabe que precisa, conseguir elaborar edital sem vício de dirigismo, ao menos que resulte visível ou injustificável.

Para efeito de simplificar esta idéia, pode-se ter como razoável o que for tecnicamente justificável, e não-razoável aquilo cuja explicação for difícil.

Sabe-se da essencial subjetividade de todas  essas considerações  quando colocadas em prática no momento em que se elabora um edital e se tenta descrever um objeto, porém essa dificuldade, que conduz a crescentes superações dos aparentes limites que a fria lei parece impor aos seus utilizadores,  empresta a final toda beleza ao tirocínio humano, e aprimora a capacidade de raciocínio e de enquadramento das categorias e das coisas nas formas que o direito prescreve.

A lei não ajuda; que nosso discernimento supra a sua deficiência.

 

 

(1) A cada alusão a esse infausto tema elencamos novos exemplos da selvageria cavernícola que assola o  povo brasileiro. Em artigo recente referimos as notícias de 1) as falsificações de produtos químicos usados para adulterar gasolina, ensejando adulterações de segundo grau; 2) falsificações do selo holográfico que os cartórios paulistas instituíram para combater as falsificações documentais; 3) falsificação de edição de 700 livros, com a copiada estampa  de uma grande editora,  que foram licitados; e, para nós a mais fantástica, ocorrida há cerca de uma década e noticiada por toda a imprensa, 4) delegacia de polícia fake, na alameda Glete, no centro de São Paulo, com “delegados”, “policiais”, celas e um bom aparato de segurança.  A realidade supera a mais delirante ficção.

(2) A tal ponto que se conhece um incidente havido em uma sessão de julgamento do Tribunal de Contas do Estado na qual o impugnante profissional foi admoestado pública e oficialmente.