REGISTRO DE PREÇOS (1ª PARTE)

REGISTRO DE PREÇOS (1ª PARTE)

Ivan Barbosa Rigolin
(set/18)

 

I - Poucos assuntos em matéria de licitação e de contratos mantêm a atualidade  deste tradicional instituto do registro de preços. E desde logo o sistema do registro de preços passou a ser designado pela sigla SRP.

Esta excelente idéia remonta a um passado consideravelmente remoto, já existindo - para não exagerar no retrospecto - no art. 13 da Lei paulista nº 89, de 27 de dezembro de 1.972, muito importante norma licitatória de autoria intelectual de Hely Lopes Meirelles ([1]) e que, confessadamente na exposição de motivos, deu a base material para a elaboração do Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1.986, diploma esse que praticamente codificou  as licitações no Brasil, antes da lei atual.

Nunca é tarde para se falar do registro de preços. Daqui a dez anos o tema por certo continuará palpitante, e deverá sê-lo enquanto  o instituto existir.

Por mais praticado que seja, e por mais que  o  utilizem dia após dia todos os entes públicos brasileiros, e por mais contratos que gere  a todo tempo entre a Administração e fornecedores particulares, o seu  intrínseco dinamismo, e as facetas operacionais que muita vez esconde,  engendram surpresas procedimentais de toda ordem a quem processe aquele sistema. Por mais pisado que seja o terreno nem todos os seus escaninhos já foram trilhados, e  muitos efeitos do sistema parecem ainda desconhecidos.

E aquelas mesmas inéditas constatações, geralmente auspiciosas,   que casualmente espoucam cá e lá, justificam novos estudos e novas  reflexões sobre o contraste entre os mecanismos do registro de preços e os  das licitações usuais para aquisições.

De toda certeza sobre registro de preços, entretanto, a  primeira que vem à mente é a de que se trata de um imenso trabalho que  se realiza uma só vez, repleto de percalços e armadilhas, para poupar a realização, por vezes,  de incontáveis trabalhos menores, parciais e especializados em um só objeto por vez, mas cujo conjunto resulta num esforço muito maior e muito mais penoso que a realização de um só registro de preços. 

Sofre-se uma vez à grande para se evitar o sofrimento interminável das licitações sem fim, cada qual delas com seu sinistro cofre de surpresas, de amargores e de desilusões...  atuando-se à maneira de quem prefere um fim horroroso a um horror sem fim.  Com efeito, apenas a economia de tempo que um só registro de preços proporciona ante um vasto conjunto de licitações com o mesmo objeto final já recomenda amplamente o primeiro.

II - Ainda que existam hoje diversos mundos em matéria de licitações - como o da lei nacional das licitações; o das concessões de serviço; o das parcerias público-privadas; o dos pregões presenciais e  o dos pregões eletrônicos;  o dos consórcios públicos;  o do regime diferenciado  de contratações;  o das empresas estatais, e outros ainda nesta irrefreável mixórdia  de baixo nível que é a atual e descartável produção legislativa do Brasil -, cada qual desses mundos com particularidades licitatórias e variações operacionais com relação ao padrão referencial da Lei nº 8.666/93,  ainda assim o instituto do registro de preços é todo calcado, em qualquer desses  âmbitos, nas regras da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993.

Por mais que se espezinhe e se crucifique a lei nacional de licitações, o fato é que ela resulta absolutamente indispensável para instruir e orientar a maioria das mais diversas licitações que se realizam em nosso país, na espera que for e seja o assunto qual for, cada qual a serviço do respectivo mundo.

Nós mesmos nunca poupamos execrações e imprecações as mais acerbas e variadas à lei de licitações, porém a esta altura dos acontecimentos, passadas duas e meia décadas do seu advento,  somos forçados a confessar que, em  matéria de licitação, o que veio após aquela lei é ainda muito pior.

E obrigados a admitir: sem a lei de licitações, nas quais todas as demais se apóiam completamente,  quando o  assunto é licitação lei alguma disciplinadora  ou organizadora dos objetos acima elencados pararia de pé, nem daria um só passo firme na matéria. Ao lembrar como era o direito em 1.993 e nos anos imediatos, e ao observar como é hoje, dá-se conta o profissional de que era feliz e não sabia.

Por pior e mais combatida que seja a lei de licitações, repita-se, constitui o roteiro de todas as demais nesse tema, e neste momento jamais poderia ser revogada ou alterada em profundidade na parte operacional de licitações,  ou de outro modo toda uma aquela vasta e essencial legislação acima citada  - ainda que seja ruim de doer  - ruiria de chofre num só golpe, como um prédio cujos alicerces estourassem.

O legislador deve imaginar que licitação é a Lei nº 8.666/93 por desígnio da natureza, como a fonte de energia do planeta é o sol, ou como não se negocia com a substituição do ar e da água. O legislador não parece vislumbrar nada além da lei de licitações como apto a disciplinar esse assunto para todo o sempre, e para informar a parte de licitações de toda e qualquer outra lei que se possa produzir. 

E por mais que se anuncie de tempo em tempo a iminente alteração da Lei nº 8.666/93, nada acontece nunca. Produz-se bazófia em cima de bazófia, fofoca atrás de fofoca, e o tema já se tornou piada.

Consolida-se cada dia mais, desse modo,  o império da lei nacional de licitações e contratos, tornada mais sagrada e intocável a cada evento de lei que nela encosta  qual parasita.  Já é  talvez de aguardar que a próxima Constituição tente  se acomodar e se ajeitar entre os espaços da lei de licitações - pois imagine-se contrariá-la !...    

E o registro de preços,  no  contexto de uma tal lei ditada aos homens pela vontade divina, figura como peça bastante importante ([2]).

Previsão legal

III - Está previsto o sistema do registro de preços na Lei nº 8.666/93, com singeleza absoluta para um tema dessa magnitude, no art. 15, que reza apenas que

Art. 15  As compras, sempre que possível, deverão: (...)

II - ser processadas através de sistema de registro de preços (...)

§ 2º Os preços registrados serão publicados trimestralmente, para orientação da Administração, na imprensa oficial.

§ 4 A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações, sendo assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de condições.

§ o
6 Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.

Mas a lei menciona o SRP, tremendamente en passant ou au vol d'oiseau  como apraz aos galicistas, também, ao final do inc. VII do seu art. 24, assim:

VII - quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta Lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços. (destaque nosso).

São apenas essas as referências ao SRP na lei de licitações - mas os seus efeitos são inimagináveis na vida prática dos entes públicos.

 IV - De outra parte, e quanto a regulamentos, na forma do § 3º do art. 15, visto acima, apenas em 2.001 o Executivo  expediu o regulamento do SRP, o Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2.001 - oito anos portanto após o advento da lei e mais ou menos para cumprir a tabela, com muito pouco a dizer.

Atualmente aquele decreto foi substituído pelo Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2.013, bastante mais detalhado e minucioso que o primeiro, que revogou.  Muito se falará desse regulamento.

Ainda de extrema relevância na vida diária da Administração é a presença do SRP no caso de licitações realizadas por pregões, quer presenciais, quer eletrônicos.    Um tal racionalíssimo instituto jamais ficaria de fora da modalidade de licitação que foi criada em 2.000 por medida provisória para a União, e depois se consagrou nacionalmente na Lei nº 10.520, de 17 de junho de 2.002 ([3]).

Passemos a comentar, assim, o SRP na lei, depois no regulamento e por fim quando realizado por pregões.

 V - Pelo caput do art. 15, e seu inc. II,  desde logo se observa que licitar pelo SRP não é obrigação mas faculdade dada pela lei ao ente licitador, que o utiliza se quiser. sem justificar nem dever satisfação a ninguém.  Trata-se de uma excelente providência que a lei recomenda, porém de nenhuma obrigação.

O § 2º, além de dar uma ordem bastante subjetiva e que em 1.993 podia ser atual mas que hoje está francamente defasada pelo advento da internet  e do universo de informações sobre tudo que todos facilmente obtêm com rapidez assombrosa, e até por isso mesmo, não vem merecendo muito rigor fiscalizatório.

Ampla pesquisa de preços é algo que para cada pessoa significa uma coisa, e a própria idéia, como se disse, perdeu relevância na medida em que qualquer pessoa obtém as informações que quiser bastando consultar sites de pesquisa como, por excelência antes de qualquer outro, o google. É virtualmente infinito o número e a variedade de informações que dali brotam num jorro até então inacreditável - e nós mesmos por vezes custamos a crer no que os olhos veem...

O que não mais podem os entes de fiscalização das contas públicas, portanto, neste estágio da evolução tecnológica dos meios de informação, é ater-se a dizeres da lei que há duas décadas e meia podiam ter significado, mas que hoje em dia o perderam por completo. 

Assim, pesquisas muito mais amplas e abrangentes que aquelas viáveis em 1.993 são realizadas diariamente neste 2.018, com muito mais informações disponíveis, que todos podem comprovar e afiançar em poucos minutos se tanto, e o resultado impresso dessas investigações pode e deve ser anexado aos expedientes da licitação como prova do cuidado precificador pela  autoridade. 

E constituem o demonstrativo de uma  pesquisa muito mais idônea, transparente, confiável e insuspeita que  aquelas  d'antanho, que apenas a fórceps e na unha eram obtidas nos  proterozóicos   idos  de 1.993.

 VI - O § 2º do art. 15 não está propriamente desatualizado, mas sempre foi ligeiramente patético, anacrônico, antieconômico, e (I) aparentemente contrário ao interesse público, e (II) alienado da realidade.

É, com todo motivo do mundo, muito pouco cumprido pela Administração, sem que fiscalização alguma de órgão nenhum jamais se preocupe com comprovar a sua aplicação -  a uma porque tem mais o que fazer, e aduas porque não se deve estimular que os entes públicos joguem dinheiro fora. O dispositivo nos parece conter desvio de finalidade, algo que se não fosse lei mereceria o popularíssimo epíteto de sem-vergonha.  Dispositivo safado, dir-se-ia.

Com todo efeito, por  que motivo algum ente público deveria gastar sua sempre curta verba orçamentária para indicar a quem quer que fosse quais foram os preços que conseguiu registrar ?   A quem  interessa semelhante  dispêndio de verba pública ?    "Orientar a Administração:" ? - ora, mas que conversa...

Se não já tinha razão de ser em 1.993, atualmente muito menos tem se os preços podem figurar na internet, no site do respectivo ente público, sem gasto algum.  A lei, que ao seu tempo era apenas ruim, nos dias que passam se torna patética.

Observa-se por tudo isso que a lei de licitações está velha, carcomida, enrugada como certas pessoas que insistem em negar a natureza, algo como pêssegos de gaveta.  E se torna bastante difícil ao fiscal público ter de prestigiar uma lei assim, que antes fala a múmias que a agentes atuantes.

Resulta efetivamente muito difícil que leis rígidas, produzidas num ordenamento pouco flexível como o nosso, mantenham-se aplicáveis e significativas por muito tempo. O desgaste das instituições ensejado pela  evolução tecnológica é uma prova a que poucas na prática resistem...

Com isso o § 2º do art. 15 se afigura  como uma pobre peça de museu - porém que mesmo quando foi engendrada já não ostentava  muita utilidade.  Tem na prática tanta serventia quanto uma faca sem lâmina da qual alguém extraiu o cabo, e parece um daqueles dispositivos que, em resumo, já nascem mortos. O legislador atual, bem se percebe, precisa ser um homem diferente dos tradicionais, pois o mundo em que vivemos pouco tem com o que existia há duas décadas...

VII - O § 3º remete o SRP ao decreto  regulamentador. Como se disse, o governo federal estava em 1.993 tão interessado nesse decreto quanto devia estar na cotação da soja na Tailândia em 1.830. E o primeiro decreto que publicou, oito anos após a lei, o Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2.001, traduziu esse desinteresse, e o regulamento resultou como a pedra na sopa da narrativa popular, com a qual ou sem a qual a sopa resta tal e qual.  O diploma era absolutamente desprezível.

Apenas em 2.013, doze anos após aquele evento,  o mesmo Executivo federal parece ter acordado para o problema, ao editar o Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2.013, muito mais atento ao papel de regulamento do que quer que fosse, e que merece considerações.

E de todo o episódio resulta somente uma certeza: se muitas vezes em nosso país a própria lei pouco serve e de pouco vale, os decretos costumam ser a quinta-essência, da inutilidade e da superfluidade. O registro de preços é praticado vigorosamente - para não ir muito longe - desde 1.972, com a lei estadual (SP) nº 89, sem decreto, com este decreto, com aquele decreto ou apesar de qualquer decreto.  Em nosso país alguém de vez em quando se recorda de que existem decretos, e razão assistia ao finado Geraldo Ataliba ao asseverar que decreto só obriga funcionário ([4]).

Mas o atual regulamento do SRP, que absolutamente não é inútil como a maioria dos regulamentos brasileiros é, será comentado adiante.

O que não é muito possível compreender, ainda do § 3º, é a ordem para que o decreto atenda às peculiaridades regionais. Que pretende a lei com essa ordem ? Que a União para si mesma, que cada Estado e cada Município para si mesmos, cada um edite um decreto, no qual possam ser obedecidas as peculiaridades a cada caso ?  Ou que só um decreto federal deve obedecer as peculiaridades regionais ?

Nada disso faz sentido algum. Nenhum Estado editará decreto sobre esse assunto se a União já o fez, nem Município algum o fará. Então um tema como registro de preços permite "peculiaridades locais"?  Como? Em quê?   O legislador perde excelentes oportunidades de não dizer nada. 

VIII - Seguindo, o  § 3º tem três incisos, o primeiro dos quais indicando que o registro de preços se dê em concorrências e não em outras modalidades. Esta regra foi observada até o advento do pregão, ocasião em que passou a ser descaradamente descumprida pela realização de registros de preços por pregões presenciais e eletrônicos, na mais absoluta cara de pau.  A lei, ora, a lei...  A lei no Brasil é cumprida até quando convém;  deixando de convir é deixada de lado sem a menor cerimônia, neste país que juridicamente é um teatro de comédia.

O inc. II do § 3º manda que o futuro decreto estabeleça regras de estipulação prévia do sistema de controle e atualização s dos preços registrados. Faz todo sentido, porque esse assunto não pode ficar à margem do edital da licitação para SRP, uma vez que tanto a inflação quanto a variação sazonal de preços, devida a inumeráveis fatores, são bastante importantes na aferição do preço justo para o fornecedor e adequado para o poder público.

O inc. III do § 3º fixa uma regra que jamais foi contestada ou questionada: uma vez homologado o resultado da licitação para SRP, a partir desse dia o documento que daí resultar, que atribui ao vencedor de cada item de preço registrado o direito de fornecer esse item antes que ninguém mais ao ente que licitou, terá validade de até um ano, não mais, o que o edital deverá ter estabelecido. Pode ser menos, porém seria muito pouco inteligente ao ente licitador, podendo ter por um ano essa possibilidade, reduzir esse tempo.

Ver-se-á adiante como são ao menos dois os documentos que podem advir do SRP, e seja ele qual for sua validade máxima é de um ano, improrrogável.

Não se confunde a validade do documento (ata de registro de preço ou contrato de expectativa de fornecimento) com a duração do contrato que desse documento pode advir,  a qual pode ultrapassar em muito aquele ano, como adiante se examinará.

IX - Antes de ingressar no regulamento do SRP uma palavra  deve ser proferida sobre a finalidade do SRP, na sua origem e na imediata evolução que teve.

O art. 15 da lei de licitações está inserido na Seção V - Das compras -, do Capítulo I da lei de licitações. Essa Seção relativa às compras, separada daquela relativa a obras e serviços porque compras são contratos civis e não administrativos (como administrativos são os contratos de obras e de serviços, objetos esses que mereceram a Seção IV), tem apenas três artigos, do 14 ao 16, sendo que o art. 15 é diversas vezes mais importante do que a soma dos outros dois.

Se o SRP visa facilitar apenas compras, então como se fala, como a todo tempo se fala e se pratica, em registro de preços de serviços ?   Na seqüência, outra indagação: serviços se prestam a ter seus preços registrados, como se fossem resmas de papel sulfite ou barris de óleo cru ?

Respondendo a primeira pergunta, deve-se a "instituição" - meio no tapa, no puro entusiasmo interpretativo - a uma menção da lei, art. 24, inc. VII, in fine, a

"valor não superior ao registro de preços, ou dos serviços".

Ter-se-ia referido a lei a registro de preços de serviços ?  Se sim, de onde tirou isso ?  O art. 15, repete-se, se refere apenas a compras.

Ou se teria referido a lei a registro de preços de itens de compras, e a preços de serviços ? Não está clara a redação da lei, porém o que todos os aplicadores desde logo e imediatamente entenderam é que a lei mencionava, sim, registro de preços de serviços. Bastou aquela dúbia menção, e a nação brasileira considerou instituído o SRP de serviços.

E, vinte e cinco anos após a edição da lei, o registro de preços de serviços é uma realidade absoluta, tão utilizada e exercitada quanto o de compras. Estas observações acima, aliás, devem provocar riso à maioria dos aplicadores e dos operadores de licitação no Brasil, que supostamente hesitariam em crer que alguém ainda hoje externe esta inquietação, tão superado está na prática o problema - e seja qual tenha sido a real intenção do legislador.

Mas não é apenas histórica a preocupação, e sim também técnica.  Não hesitamos em manifestar que detestamos a idéia de registrar preços de serviços. Parece-nos uma péssima idéia, que deve favorecer o indolente, o preguiçoso, o improdutivo, ou o profissional que, como se sói afirmar,  gostaria que o mundo acabasse num barranco, para morrer encostado.

É a típica idéia do generalizador que quer poupar-se de trabalho, pouco importando se o resultado dessa economia será antitécnico ao extremo, infame ou indigno, e que ao invés de ajudar atrapalhe o ente público a que serve.

Registrar preços de serviços lembra algo como  tentar generalizar o individual, estandardizar o particular, renegar o peculiar, igualar o pessoal - ou mesmo até o personalíssimo -, tudo que a técnica mais primitiva de trabalho repugna com toda razão.

Parece francamente indigno alinhar ou padronizar prestadores de serviços em trilhas uniformes de produção, como se os serviços de todos fossem iguais e se distinguissem entre si apenas pelo preço.  O trabalho e o esforço pessoal de cada prestador seria ignorado na sua particularidade e tratado como produtos saídos de fábrica em grandes quantidades, em prol do comodismo de alguns agentes públicos a quem o trabalho  civilizado e racional, e que separa o joio do trigo,  provoca intenso mal-estar.

Assim, manter juntos no mesmo balaio o pior e o mais ordinário serviço ao lado do mais distinto e apurado - em nome de um princípio da economicidade levado aos mais ruinosos extremos e que sempre desconsidera que o barato sai caro -, deve ser o propósito basilar do SRP aplicado a serviços. 

E não deixa de ser curioso, porque a generalidade das pessoas - agentes públicos de qualquer nível ou particulares - evitam ao máximo comprar para si mesmos e utilizar os artigos mais baratos existentes no mercado, porque bem sabem o desastre que virá;  mas para a Administração pública parecem ver as coisas diferentemente,  e só o preço importa, seja do produto parisiense da melhor qualidade, seja  do lixo asiático de qualidade inexistente ([5]).

X - É bem certo, entretanto,  que não é qualquer serviço que tem sido licitado por SRP. 

O sistema tem servido quase que inteiramente para alinhar preços de serviços tidos como de pouca indagação intelectual, algo mais mecânico ou uniforme,  e menos individualizado. Ocorre  porém que uma tal classificação é muito subjetiva e com isso perigosa, e os seus limites "tácitos" se vêm ampliando dia a dia, sem nenhuma resistência eficaz pelos interessados - a quem, em verdade, somente interessa abocanhar  os contratos, sem muita teorização.

Muitos licitantes, efetivamente,  apenas pensam em questionar as regras do jogo após entrar no jogo e esse, na seqüência, não os favorecer. Nesse caso as regras eram péssimas, mas, se tivessem vencido o certame, então  as mesmas regras seriam as melhores do planeta....

Por essas razões, e no afã de prevenir os efeitos da entronização do império da grossura que a cada dia mais se assenhora do serviço público, e ante a dificuldade intrínseca em se saber em bom critério quais serviços poderiam razoavelmente admitir SRP, somos visceralmente contra o SRP aplicado a quaisquer serviços existentes no mercado.

Registro de preços não foi ideado nem concebido para precificar serviços. Utilizar esse sistema para serviços implica  desqualificar o serviço público, o agente que o conduz e a própria Administração pública brasileira amplamente considerada.

Os serviços que o poder público contrata não merecem ser vulgarizados nem banalizados a ponto de figurarem em tabelas de preços por ora, por dia ou por mês, o melhor ao lado do pior como se fossem uma só coisa, tal qual  mercadorias de variável qualidade numa tenda de feira.  Uma tal grosseria somente se concebe em estados semicivilizados, em que os valores são baralhados a ponto de favorecer o menos qualificado, o mais indigente, o menos desejável.

XI - O § 4º do art. 15 consigna um direito do ente promotor do SRP, o de não se obrigar a comprar coisa alguma do vencedor do certame. Caso o preço do vencedor, quando a Administração precisar do item, não esteja tão vantajoso quanto esteve quando da proclamação do resultado, ou ainda se o vencedor, convidado a baixar seu preço até o corrente do mercado no momento segundo a pesquisa, não o fizer, então o ente público poderá licitar esse item em separado, ignorando seu registro de preços. 

O SRP não implica no compromisso de comprar coisa alguma, mas apenas confere ao ente público o direito de adquirir do detentor da ata respectiva o item que aquele venceu na licitação. A quantidade mínima a ser adquirida pelo ente é sempre, portanto, zero.

O § 5º é dessas coisas tornadas patéticas na lei de licitações, ao recomendar a informatização do SRP, quando possível. Hoje em dia é impossível, isto sim, que algum sistema de alguma coisa não seja informatizado. O dispositivo, como se afirma, dá dó.

E o § 6º é ainda pior, não por desatualidade como no § 5º  mas por um misto de burrice simples com irrealismo quixotesco.

Compreende-se que todo cidadão pode impugnar preço constante do SRP de qualquer ente público - e a lei não precisaria dizê-lo ante o mesmo direito que a Constituição, no art. 5º, inc. XXXIV confere  muito mais amplamente ao cidadão, e aí a burrice -, porém como a lei não assegura ao impugnante direito sequer a ver processada =sua impugnação, então essa omissão da lei só por si já confere ao ente público impugnado o equivalente  direito de  enrolar a impugnação e treinar arremesso junto ao cesto de lixo mais próximo, sem que nada possa objetar o  cidadão impugnante - e aí o quixotismo infantil.

Quanto tempo se esperdiça lendo inúmeros trechos da lei nacional das licitações e dos contratos administrativos... 

XII - Agora se examinará o regulamento do SRP, racional e nacionalmente concentrado no Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2.013. Far-se-o-á com bom humor, eis que ridendo castigat mores, e que mieux est de rire que de larmes écrire  ([6]).

Mas outra razão do necessário bom humor é que positivamente não é possível tratar este decreto como se se estivesse diante de um primor jurídico, ou mesmo um diploma originário de elevada consciência profissional, porque ao fim e ao cabo não é. Contém bons e necessários momentos que esclarecem e bem orientam, mas esses excertos muito bem se acomodariam em muito menos espaço, e com muito menos pompa.

Consta da primeira parte deste artigo que jamais atinamos com por quê a lei das licitações, art. 15, § 3º, nos proto-históricos idos de 1.993, manda que o decreto regulamentador do SRP obedeça as peculiaridades regionais - simplesmente porque tal idéia num assunto como este não faz nenhum sentido -, e agora se o reitera.

Por que motivo se descabelaria o Estado ou o Município em tentar disciplinar um assunto que o decreto federal já disciplinou de modo omniabarcante e que aparentemente a todos atende ? Por que o fariam, se em tema como o SRP resulta mais do que suficiente encostar no regulamento federal, que já estabeleceu muito mais que o necessário ?

Aliás e com efeito, o decreto federal é abundante e excessivo para Municípios e certamente mesmo para muitos Estados, com seus institutos hipertrofiados e francamente pretensiosos para este tema que, também francamente, não parece merecer tamanha pompa.

Nada ou quase nada de regional ou de local parece existir no assunto SRP, que ensejasse uma regulamentação local,  senão, repita-se, para filtrar e simplificar a regra federal. A matéria não é do peculiar interesse dos Municípios a que aludia a Carta de 1.969, nem de interesse local  como reza a atual Constituição, porque o assunto é tão particular dos Estados e dos Municípios quanto a própria licitação: nada.

Insista-se porém: um decreto local pode vantajosamente existir, sim, para cortar matéria  daquele regulamento federal, como numa suposta lipoaspiração legislativa, o que de resto tanto bem faria à própria lei das licitações, obesa mórbida que quase sucumbe mergulhada no seu excesso de matéria enxundiosa, rebarbativa, inútil e prejudicial em todo sentido ([7]).

 

O SRP no decreto federal

XIII - O Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2.013, que "regulamenta o Sistema de Registro de Preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666. de 21 de junho de 1.993", contém 29 artigos divididos em 10 Capítulos. O Executivo federal devia sentir-se o supremo organizador do planeta à ocasião, eis que mal caberia denominar seção  a cada capítulo, cujo conjunto final   vantajosamente  deveria ser menor.

Foi recentemente alterado pelo Decreto nº 9.488, de 30 de agosto de 2.018, com disposições cuja importância para o direito, à semelhança do decreto-mãe, é quase nenhuma.

O Cap. I, de disposições gerais, no art. 1º circunscreve o âmbito do diploma à administração federal, ou seja o Executivo, as autarquias, as fundações e as estatais federais, não incluindo os demais Poderes de União, o que está formalmente correto porém que não impede que aqueles Poderes e as entidades federias não vinculadas ao Executivo, bem como os Estados, o Distrito Federal e os Municípios se valham do decreto para realizar seus registros de preços.

Isso não significa, repita-se, aderir a todos os termos federais, podendo e, entendemos,  devendo existir franca simplificação de institutos e de procedimentos nos Estados e nos Municípios, e para tanto cada edital de RP dará as regras aplicáveis; a inspiração no decreto federal, e a sua utilização seletiva, são boas idéias, de modo que cada edital local de RP deve explicitar e indicar às claras quais são as regras válidas, e por oposição, as que a regra local omitir do decreto federal simplesmente não valerão. 

O mecanismo é similar ao que vale para as concessões de serviço, cuja Lei nº 8.987/95 vale para a União e não se impõe a Estados e Municípios, que podem e devem ter suas leis próprias sobre o tema, as quais, se o legislador local for inteligente, haurirão inspiração na lei  federal, mas que jamais precisarão observá-la à risca.

Não precisarão com efeito,  porque não existe na Constituição previsão de "normas gerais de concessão de serviço", e com isso remanesce competência aos entes federados para legislarem para seu âmbito sobre o tema, sem necessária observação de lei nacional  alguma.  O modelo federal pode ser ocasional e topicamente bom, mas nunca obrigatório.

 XIV - O art. 2º contém 7 definições, em geral tão necessárias quanto o ofício do  soprador de verrumas de Monteiro Lobato, do seu conto A vingança da peroba. Assim são as definições de sistema de registro de preços (inc. I) e de ata de registro de preços (inc. II), autênticas invenções da roda, e como se pudesse um decreto instituir algo assim, e como se essas realidades já não existissem exatamente assim há duas décadas.

As definições seguintes, entretanto, obviam que o decreto serve tão-só à União, e que sua adoção incondicionada por Estados e Municípios é virtualmente impossível.

São definidos (inc. III a VII do art. 2º) órgão gerenciador, órgão participante, órgão não participante (que fantástica engenhosidade !  Esta idéia talvez tenha concorrido ao Prêmio Nobel de física), compra nacional  e órgão participante de compra nacional.

O art. 3º, ao indicar para quê serve o SRP,  é outro compêndio de obviedades tal qual seria o de tentar ensinar a ave-maria ao padre, e que, para manter os chavões,  chove no molhado. Tudo o que estabelece já era praticado, exatamente igual, há vinte anos, desde a edição da lei de licitações. Contém uma normação que, com a qual ou sem a qual, o registro de preços segue tal e qual.

E o inc. II menciona registro de preços de serviços, o que auxilia a consolidar esse mal ajambrado e canhestro instituto, grande grosseria jurídica que somente atende à preguiça e à indolência da Administração.

Parece não ter começado muito bem o regulamento do sistema de registro de preços...


Continua...




[1] De quem se dizia em tempos idos que era o autor da lei, da doutrina e da jurisprudência de direito administrativo...

[2] Apenas para se recordar a realidade disso afirmado, um só exemplo do que vem ocorrendo. A lei de licitações preconiza antes a habilitação, e apenas depois o julgamento das propostas dos habilitados. Como essa fórmula é sabidamente ruim e inconveniente para todos, então primeiro um Estado, depois outro, e a seguir mais um, depois uma capital, seguida logo por outra, e enfim praticamente todos os entes integrantes da federação como em tácito acordo, editaram leis que, sic et simpliciter, inverteram aquelas fases do procedimento, de forma que hoje praticamente não mais se pratica aquela ordem tradicional das fases do certame. A lei de licitações, que é o conjunto de normas gerais de licitação e sujeita quanto a isso o país inteiro,  não foi alterada para contemplar aquela inversão, de modo que todas as leis locais, friamente,  são ilegais.  Ora, não seria mais lógico mudar a lei de normas gerais, para abrir ensanchas aos entes federados de inverter as fases sem tais macaquices e  malabarismos circenses - ao arrepio da lei maior de licitação e do ordenamento jurídico brasileiro ?  Por quê não se altera a lei de licitações ?    Isso dá choque ?    Desencadeia a cólera dos deuses e dizima o planeta ?   As autoridades de todos os Poderes, entretanto, fingem que o assunto não é com elas, e que nada de anormal está acontecendo. A lei nacional de licitações é o bíblico deus Moloch dos amonitas de Canaã, colérico intocável e inatingível, ainda que sabotado a mancheias.

[3] O pregão  eclodiu em nosso direito para, gradativamente e pelo que se percebe, varrer do mapa e acabar com todas as demais modalidade de licitação, sendo lícito imaginar que em futuro não muito afastado grandes obras e complexíssimos serviços serão objeto de pregões. O que hoje parece configurar um pesadelo técnico - uma grande obra por pregão - vem paulatinamente perdendo essa feia catadupa, para gozar de favor e simpatia cada vez maior por parte de licitantes, licitadores, fiscais,  autoridades de todos os Poderes, acadêmicos, estudiosos, e quantos mais se relacionem com o tema.

[4] Decretos a nós parecem, como no dizer dos maldosos, a filosofia, com a qual ou sem a qual o mundo resta tal e qual. E assim permanecerá, enquanto os chefes de Executivo não se derem conta de que o decreto não deve repetir a lei, mas apenas preencher os seus espaços e responder as perguntas que a lei incita.

[5] E nem todo produto asiático é assim  porque os há excelentes em todos os setores do mercado, bastando ao interessado pagar um pouco mais...

[6] Um dos segredos da longevidade sadia, informa a imemorial sabedoria das gentes -  e sobretudo em um lugar como o Brasil -, é não levar exageradamente a sério nada, coisa nenhuma, nem nós e nem mesmo os deuses. Levar as coisas e a vida a  sério é indispensável;  exageradamente a sério, por favor não, pois que é um erro sempre.

[7] A Lei nº 8.666/93 em sua origem era apenas muito ruim. Continha tópicos excelentes, porém em seu conjunto abarcava duas vezes mais matéria do que deveria, no afã de ser completa e exaustiva. Com o passar do tempo, a desatualização crescente e o anacronismo insuperável  que hoje a fulmina, e sendo desrespeitada a torto e a direito e somente observada quando e no quê convém diferentemente a cada momento por cada ente público, é penoso constatar que, a despeito de  tudo isso, ainda constitui  a base absoluta de toda uma vasta legislação na parte de licitação e de contratos.  Quem negar isso afirmado, e ainda vislumbrar grandes virtudes  na lei de licitações,  provavelmente estacionou na década de 90, e se recusa a enxergar  a realidade de cada dia.  O pior cego...