LEI COMPLEMENTAR Nº 173/2020. BREVE ANÁLISE (2ª PARTE E ÚLTIMA)

 

LEI COMPLEMENTAR Nº 173/2020. BREVE ANÁLISE

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jul/20)

  

Segunda parte

I – Na primeira parte deste artigo comentou-se brevemente o novo art. 21 da LRF, e nesta conclusão comentam-se o novo art. 65 da LRF, que é dela  uma disposição transitória,  e os arts. 8º a 11 da LC nº 173/20.

O novo art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, dado pelo art. 7º da LC nº 173/20, constitui um agigantamento inusitado do antigo texto, e resultou num tijolaço  quase intragável e bem à feição das últimas leis brasileiras.

Manteve o caput e seus  incs. I e II, e substituiu o antigo parágrafo único pelos §§ 1º a 3º.  Desses, o § 1º contém os incs. I a III, sendo que o inc. I contém as als. a até d.

O § 1º cuidou especificamente deste atual estado de calamidade pública decretado pelo Congresso em 20 de março de 2.020  (Decreto legislativo nª 6) em face da peste mundial denominada covid 19, numa disposição que é portanto tipicamente transitória – e oxalá transite, para a nona cornija do inferno, o mais breve possível. 

Então, referindo-se o § 1º à atual calamidade viral, prescreve que no estado de calamidade pública decretado pelo Congresso em 2.020, na parte do território nacional afetada valem as inúmeras regras que seguem, nos incs. I a III do § 1º.

O inc. I contém quatro alíneas, e prevê que nesta atual calamidade são dispensados limites, condições e demais restrições aplicáveis a todos os entes federados  em caso de a) contratação e aditamento de operações de crédito; b) concessão de garantias; c) contratação entre entes da Federação, e d) recebimento de transferências voluntárias.

Numa primeira mirada parece tratar-se da festa do caqui, ou de evento na casa da sogra, em ambos os quais pouco mais ou menos vale tudo. E com efeito assustador imaginar que quatro das mais complexas, delicadas e perigosas operações financeiras públicas agora, graças à pandemia, possam dar-se sem condições, sem restrições e sem limites. É o grande arrombamento das instituições.

A LRF veio ao mundo para restringir, condicionar, limitar, apertar, dificultar - todos o sabem -, e ela foi muito bem-vinda há vinte anos, e já chegara muito tarde ao nosso ordenamento. Dentre as leis que pegam e as leis que não pegam em nosso país esta deu certo, e pegou. Introduziu uma nova cultura do gasto público, e educou sensivelmente a autoridade brasileira quanto a esse crucial tema de administração.

Com quê, então, neste momento uma pandemia, por mais grave e alastrada que seja, logra arrebentar, estraçalhar e pulverizar  por completo toda aquela austeridade e aquela indispensável rigidez procedimental quanto às despesas públicas, em boa hora introduzidas em nosso direito pela Lei de Responsabilidade Fiscal em 2.000 ?

Não é à toa nem por acaso que os processos por improbidade administrativa em face de contratações sob esse novo regime do arrombamento já se multiplicam contra autoridades estaduais e municipais, como Prefeitos que compram respiradores de empresas de fundo  de quintal, pagam adiantado e não os recebem, ou até Governadores, como por excelência o do Estado do Rio de Janeiro que sofre processo de impeachment correndo na Assembleia Legislativa, em face de contratações milionárias ou bilionárias, realizadas rapidissimamente,  que resultaram ruinosas para o Estado.

 A festa do figo, do novo art. 65 da LRF, afinal lhes deu essa ensancha.  Dificilmente algum quadro institucional, em finanças públicas, pode ser pior, e esse remédio pode em pouco tempo revelar-se pior que a doença.

Recomenda-se à autoridade, podendo, não valer-se da irresponsável, leviana e pródiga autorização, de quatro naturezas, constante das als. a a d do inc. I do § 1º do novo art. 65 da LRF. Todas as facilidades agora são dadas, mas a cobrança, daqui a algum tempo e como sói acontecer quanto a benesses que caem do céu, será seguramente árdua para quem julgou levar vantagem com a libertinagem da lei.

O novo art. 65 da LRF, ainda que transitório, quase a converte em lei da irresponsabilidade fiscal.

II – O inc. II do § 1º do novo art. 65 dispensa os limites e afasta as vedações e as sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, assim como  dispensa o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º da LC nº 173/20, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública.

Os arts. 35 e 37 da LRF referem-se a operações de crédito e  à necessária solenidade que as precisa revestir.  O art. 42 proíbe ao chefe do Poder ou entidade celebrar, dentro dos dois últimos quadrimestres de seu mandato, obrigações que não possam ser cumpridas inteiramente dentro do mandato, ou que não consignem expressa dotação para tanto nos meses posteriores ao fim do mesmo mandato, seja quem for o seu sucessor.

Nada era e é mais prudente e recomendável que toda essa austeridade, a qual impede a cortesia e o ganho político e eleitoreiro com o chapéu alheio, porém enquanto durar a pandemia e a calamidade decorrente fica tudo suspenso – e seja o que Deus quiser quanto  ao rigor duramente aprendido e que já integrava a cultura administrativa e financeira das autoridades governantes.

III – O inc. III do mesmo § 1º dispensa “as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.”

A matéria destes artigos referidos é amplamente conhecida pelos brasileiros, tão importantes eles se revelaram e os quais tanta tinta fizeram gastar, e tanta saliva exigiram dos palestrantes, expositores e professores dedicados ao tema para explicá-los e esclarecê-los, durante anos. Tão conhecidas são aquelas regras (LRF, arts. 14. 16 e 17) que parece desnecessário reiterá-las neste momento.

Medidas que hoje se sabem indispensáveis com o ar que se respira – pois que delimitam o campo da legalidade das despesas públicas com pessoal relativamente  à receita corrente líquida dos entes públicos - estão todas suspensas enquanto perdurar o estado de calamidade pública, e em lugar do rigor entrou em cena o vale-tudo, a festa do caqui jurídica e financeira.

Tal leva a crer que a calamidade institucional que tudo isso pode acarretar talvez se  revele, afinal e em muitas localidades de nosso imenso país, bem mais grave que a própria pandemia. Será um calamidade sanitária gerando uma calamidade jurídica, financeira e institucional potencialmente muito séria e grave ([1]).

Causa arrepios a liberalidade, jamais imaginável anteriormente, que auxilia a temer pela institucionalidade do país, abalada como nunca antes na história.

IV – O § 2º informa que “o disposto no § 1º deste artigo, observados os termos estabelecidos no decreto legislativo que reconhecer o estado de calamidade pública: I - aplicar-se-á exclusivamente: a) às unidades da Federação atingidas e localizadas no território em que for reconhecido o estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional e enquanto perdurar o referido estado de calamidade; b) aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento de despesas relacionadas ao cumprimento do decreto legislativo” e que  “II - não afasta as disposições relativas a transparência, controle e fiscalização.”

Quanto à primeira parte transcrita, repete o que já estava estabelecido, seja de que apenas se pode valer do permissivo § 1º do novo art. 65 os entes federados onde existam casos do covid, objeto da decretação de calamidade.

O vale-tudo até aqui referido encontra neste momento um pequeno freio, sendo de temer entretanto que as autoridades governantes dos Municípios até agora livres da doença se esqueçam disso, e, em maior ou em menor medida, também mergulhem na farra do boi. Cuidado, pois que lhes será cobrada a demonstração de que se enquadravam na zona afetada.

A parte da al. b, acima transcrita, também reflete o óbvio, porque toda a preocupação financeira do novo art. 65 é liberar, facilitar, conceder, autorizar, escancarar porteiras  - dê lá isso no que der no futuro.

E o inc. II  tenta  emprestar moralidade e de controlabilidade a toda a liberalidade até aqui descrita, pretendendo que transparência, controle e fiscalização também imperem dentro destas novas regras, que literalmente afastam qualquer idéia de contenção e de limites.  Trata-se de algo semelhante a, antes de impedir, permitir que a bomba seja detonada, para então depois se procurarem controlar os seus efeitos, em meio aos estragos e ao pandemônio instaurado.

Tudo demonstra, inclusive este direito desastroso, quão despreparadas para enfrentar uma crise como esta pandêmica estavam as autoridades federais, sobretudo estaduais, municipais, distritais, paraestatais e as de tantas outras categorias quantas existam – ressaltando-se  que as autoridades municipais revelaram-se as menos despreparadas, por serem mais realistas que as demais, e manterem os pés no chão. O país enfim deverá sobreviver, apesar de ser governado por semelhantes autoridades, tecnicamente péssimas.

V – O § 3º, encerrando este unicamente desastroso novo art. 65 da LRF - que se perdurar ameaça arruinar duas décadas de contenção, responsabilidade e coerência institucional e financeira da administração pública -, informa que no caso de “aditamento de operações de crédito garantidas pela União com amparo no disposto no § 1º deste artigo, a garantia será mantida, não sendo necessária a alteração dos contratos de garantia e de contragarantia vigentes."

Era de esperar que a União mantivesse a garantia já dada a operações de crédito em favor dos entes federados, porém o que a regra não esclarece é se a garantia será de plano aumentada proporcionalmente ao percentual do aditamento, ou se permanece a mesma ainda que o valor do financiamento tenha, por exemplo,  triplicado.

Duvida-se de qualquer automatismo regendo alterações contratuais, porque isso simplesmente não existe em direito. O que a regra podia ter esclarecido não fez, talvez por temor de abuso por parte dos dirigentes beneficiários dos créditos.

Entendemos que a elevação proporcional da garantia está autorizada para a União por este § 3º, porém o que é certo é que enquanto a autoridade federal não assinar a elevação da garantia ela simplesmente permanecerá a mesma, como se inexistisse esta regra, e que o único papel do § é exatamente autorizar a União a aumentar a garantia, porque nenhuma lei é necessária para manter uma garantia que o poder público já dera de forma regular.

VI – Adentramos o enorme, rebarbativo, prolixo e tecnicamente horrível art. 8º da LC nº 173/20, tortura para quem teve de escrevê-lo mas muito pior para quem precisa lê-lo e, em sendo possível, aplicá-lo.  Espera-se razoavelmente que esta mil vezes amaldiçoada pandemia e sua correlativa calamidade termine bem logo, e por isso desde já o artigo  parece conter demasiada matéria para uma situação  tão transitória.

Matou-se tico-tico com canhão. O caput do artigo contém nove incisos e depois seguem cinco parágrafos, nem texto em que o legislador parece tentar conter o estrago, efetivo ou potencial, ensanchado pelo novo art. 65 da LRF.

Agora a técnica foi diferente: proibir. Se o novo art. 65 da LRF liberou absolutamente tudo à autoridade, este art. 8º, ao inverso, proíbe tudo de que o legislador se lembrou que existe. É o furor invertido: um libera tudo que estava contido e parametrado em finanças públicas genericamente consideradas, outro proíbe toda e qualquer ato oneroso relativo ao pessoal, a  maioria deles que jamais deve ter passado pela cabeça da autoridade local dentro do trauma social que o país atravessa... ([2])

Estão proibidos todos os entes federados, enquanto durar oficialmente a calamidade decretada pelo Congresso em março de 2.020, de:

 I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública”.

Tal regra, inspirada na legislação eleitoral, congela idéias de aumento de despesa com pessoal de todos os regimes e de todo nível, nos três Poderes do Estado. A exceção é a decisão judicial, que naturalmente não pode deixar de ser cumprida, e as medidas concessivas esgotadas ou determinadas antes da decretação de calamidade, na medida em que a lei nova não prejudica o ato jurídico perfeito.

II - criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

Grande bobagem, própria de quem não é do ramo do direito administrativo. Serviço  de amador, improvisado e medíocre.

Criar cargo ou emprego não aumenta despesa nem hoje nem nunca, pois o que gera despesa é o provimento, ou a contratação.  Criar um cargo para provê-lo daqui a um ano, muito após o fim da calamidade, é perfeitamente admissível.

A matéria, ademais, não é suscetível de disciplinamento federal sob o argumento que for, porque é assunto de interesse local ou regional e não federal.  Não pode uma lei revogar a Constituição (art. 25 para Estados, e art. 30 para os Municípios). As finanças públicas locais, consequentes da organização do serviço público local, não podem ser subvertidas por lei federal como esta metralhadora giratória da LC nº 173/20, que atira em toda direção sem se concentrar no autorizativo da Constituição Federal, art. 163 e 169, como ocorre com a LRF.

Sim, porque enquanto a LC altera a LRF, é uma coisa; outra coisa é  uma lei da pandemia, no seu corpo próprio e sem alterar lei nenhuma de finanças públicas, passar a  ditar normas para Estados e Municípios – isso é o que não desce pela goela.

Augura-se que os Tribunais de Contas pensem sobre isso ao fiscalizar eventuais descumprimentos do art. 8º da LC nº 173/20, obra totalmente esdrúxula do amador e improvisado legislador federal da pandemia, absolutamente perdido na sua insciência;

III - alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

Os mesmos comentários ao inciso anterior aqui se plicam. A matéria não é federal senão em leis como a da responsabilidade fiscal, autorizada pela Constituição.

A par disso, quanto a alterações de estrutura de carreiras sabe-se que as existem que não implicam aumento de despesa porque constituem mera reorganização do que já existe, ou mera redenominação, ao lado de outras que são onerosas. Mas o dispositivo não resiste a um perfunctório exame de constitucionalidade;

IV - admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do  caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares;

Quanto a Estados e, no que tem de aplicável, aos Municípios, o mesmo comentário sobre inconstitucionalidade aqui se repetem.

De resto, sendo uma variação do inciso anterior, contém mais exceções que regras, e libera mais do que proíbe. Moralismo de fachada e austeridade de fancaria, favorece nitidamente admissões para a ala militar do serviço público, o que tecnicamente é permitido. O que não passa, repita-se, é a invasão das competências constitucionalmente privativas dos Estados e dos Municípios;

V - realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV;

Bobagem financeira tanto quanto o inc. II, e inconstitucionalidade técnica tanto quanto os demais incisos, não se imagina o que passou pela cabeça do autor no redigir esta infantilidade.

Não pode lei federal proibir que Estados e Municípios realizem os concursos que quiserem, porque pela Constituição não é a União que organiza os entes federados senão ela própria. Até aqui, inconstitucional, contrariando os arts. 25 e 30 da Carta.

E bobagem sem nexo, porque realizar concurso público, tanto quanto simplesmente criar cargo ou emprego, não aumentam despesa. Só se gera despesa com o provimento do cargo ou a contratação para o emprego, não com a mera criação do posto ou com a realização do concurso público, para nomeações que podem esperar até dois anos, ou mais...  o legislador  não sabe disso ?

Será que o legislador imagina que está salvando o mundo, por alguns meses ?;

VI - criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade;

Mero desmembramento de incisos anteriores, merece os mesmos comentários. A União que segure o aumento de sua própria despesa com seus próprios servidores, mas que não  pretenda fazê-lo quanto a Estados e Municípios, ou estará, outra vez na triste história dos nossos dias,  rasgando a Constituição sem a menor cerimônia.

A pandemia afetou de tal forma a mente das pessoas e dos cidadãos que poucos se dão conta das barbaridades que  a lei tenta lhes  impor;

VII - criar despesa obrigatória de caráter continuado, ressalvado o disposto nos §§ 1º e 2º;

Os comentários são os mesmos. A LC não tem a menor noção de divisão das competências normativas reservadas a cada ente federado pela Constituição.  Com estes incisos a LC parece ter suspendido temporariamente, até quando não se sabe, a federação brasileira;

VIII - adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º da Constituição Federal;

Ficou monótono. Os comentários são os mesmos anteriores.  A União pretende administrar a casa alheia, olvidando-se apenas que temos uma Constituição que o proíbe.

Apela-se por isso, uma vez mais, ao tirocínio das autoridades de fiscalização e de controle, para nas suas inspeções  suprir o tirocínio que faltou ao legislador virtual do improviso, e

IX - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.

Desta vez a lei se excedeu !  A criatividade do legislador atingiu sua culminância neste triste e lamentável episódio da legislação pandêmica de improviso virtual, expelida a toque de caixa pelo Congresso e sem a menor noção do direito constitucional !

O legislador deu três exemplos de períodos aquisitivos de vantagens e se esqueceu de outros como biênios e decênios... pela sua técnica deveria citá-los, além de quatriênios, sexênios, setênios, octênios...

Os mesmos comentários sobre a inconstitucionalidade desta regra para Estados e Municípios se reiteram, mas mesmo quanto ao mérito o dispositivo revela-se embaraçoso.  Se o cidadão está em casa não é por vontade própria, e se seu tempo de serviço é contado para todos os efeitos mesmo com ele estando forçadamente em casa, então resulta péssima a idéia  de excluir essa contagem apenas para o efeito de aquisição de adicionais por tempo de serviço !

Trata-se do que em direito do trabalho se chama interrupção do contrato, que se dá por ordem do empregador e não por ato ou por vontade do empregado. E nesse caso nenhuma perda pode ser imposta ao trabalhador, que não contribuiu para aquele estado de coisas.

O mesmo se dá aqui, sabendo-se que o único requisito para a aquisição do adicional por tempo de serviço é exatamente a decorrência do tempo de serviço do servidor.  Muito mais razoável, pensamos, seria extinguir os adicionais por tempo de serviço pura e simplesmente como já dissemos inúmeras vezes, instituídos como são apenas para premiar o servidor que cumpre sua obrigação de trabalhar, algo que na empresa privada causa escárnios e repugnância.

Mas enquanto existirem os adicionais por tempo de serviço o  requinte da idéia, em sentido pejorativo, é único. Casuísmo dos casuísmos, picuinha dentre as picuinhas, merece registro na história como operação a evitar.  Se parágrafos tivessem nome, este seria o mesquinhão.

VII – Os parágrafos que seguem tentam suavizar os efeitos das inconstitucionais – para Estados e Municípios - e quase patéticas restrições pretendidamente impostas pelos incisos.

O § 1º informa que um sem-número de restrições previstas nos incs. II, IV, VII e VIII não se aplica a medidas de combate à pandemia. Aperta, restringe, proíbe, impede, e no passo seguinte libera tudo o que estava proibido, se é pela pandemia. Ora, para quê foi editada esta lei, se não para auxiliar a combater a pandemia ? Acaso a lei falou de alguma coisa além disso ?

O § 2º repete a LRF, inventando a roda por informar que se houver compensação do aumento de despesa pelo inc. VII com o correspondente aumento da receita ou da redução de outras despesas, então nenhuma proibição vigora.  Desde 2.000 a regra é essa, e o legislador deve felicitar-se por haver descoberto o fogo.

O § 3º, neste festival do  non-sense informa que a LDO e a LOA pode conter autorização sobre as vedações desta LC, desde que seus efeitos se dêem apenas após o fim da calamidade. Calamidade mesmo, em verdade, é termos uma lei como esta. 

Ela lembra o soprador de verruma de Monteiro Lobato, do conto A vingança da peroba,  cuja essencial missão era soprar as verrumas que furavam a peroba na construção do monjolo, para que esfriassem mais depressa. Imagine-se o que seria do mundo se inexistisse um encarregado dessa função !...

Os §§ 4º e 5º apresentam nível similar de mendicância ou de indigência legislativa. O primeiro inaplica as restrições dos incisos a uma opção de extinção dos quadros militares – que talvez nem os militares saibam que existe -, e o segundo inaplica as restrições do inc. VI a profissionais de saúde atuando no combate à pandemia, como se a lei falasse de algo diverso.

O § 6º foi vetado. Acabou sendo o melhor de todos.

VIII – O art. 9º da LC nº 173/20, absolutamente patético, suspende, “nos termos do regulamento”, os pagamentos dos refinanciamentos de dívidas dos Municípios com a previdência social vencíveis de 1º de março a 31 de dezembro de 2.020.  Não se compreende a previsão sobre o regulamento. Então o regulamento pode deixar de suspender ? Ou a previdência editará um novo regulamento ?  A lei suspende os pagamentos ou não suspende ?  Deve ter suspendido, e a previsão sobre o regulamento provavelmente não será sequer considerada.

Vetado o § 1º, o incompreensível, estapafúrdio, histriônico e destrambelhado § 2º estende aquela suspensão ao recolhimento das contribuições previdenciárias patronais pelos Municípios devidas as os seus regimes próprios municipais,  “desde que autorizada por lei municipal específica” !!

Por tudo que é sagrado, será que ninguém avisa aos congressistas o ridículo de algo assim ?

Se uma lei municipal suspender excepcional e temporariamente as contribuições, então elas estão suspensas; se nenhuma lei municipal as suspender, então elas são exigíveis, independentemente do que diga alguma lei federal, que ingressa no episódio como a pedra na sopa ou como Pilatos no credo !   Ninguém em Brasília se dá conta do absurdo da idéia, como se os Municípios dependessem de uma lei federal para poderem legislar sobre assunto de seu exclusivo interesse ?

Vetado o § 1º, o § 2º informa que os prazos suspensos voltam a correr a partir do fim oficial da calamidade, s como se isto já não estivesse mais claro que a água que desce das montanhas. 

IX – O art. 10 da LC, de modo absoluta e incontornavelmente inconstitucional para Estados e Municípios, pretende suspender prazos de validade dos concursos públicos já homologados em 20 de março de 2.020 até o fim da vigência do Decreto legislativo nº 6, de 2020, que decretou a calamidade.

O mérito é bom, porque protege os candidatos aprovados em concursos e que esperam ser chamados, porém a forma é inconstitucional, porque desrespeita os arts, 25 e 30 da Carta, interferindo em assuntos locais e com violando a autonomia dos entes federados. Jamais, entretanto, alguém questionará a constitucionalidade do dispositivo, porque no Brasil existe a cultura de que inconstitucionalidades úteis devem ser mantidas vigentes.

Vetado o § 1º, os §§ 2º e 3º informam que os prazos voltam a correr quando oficialmente se encerrar a calamidade – o que todos já sabiam ad nauseam -, e que a suspensão dos prazos de validade dos concursos deverá ser publicada na imprensa anunciada nos editais.  Pergunta-se: e se não for publicada, o que acontece ?  Os prazos vencem nas datas originárias ?

Lei que manda fazer mas exige o implemento de uma condição pelo destinatário está sujeita a bater na água, e dar em nada.

Se o legislador federal confiasse no seu taco, então não mandaria a autoridade local publicar nada, e determinaria simplesmente que os prazos de validade dos concursos públicos estão suspensos desde 20 de março de 2.020 até o fim da pandemia, e ponto final. 

X – O art. 11 fixa que a LC entra em vigor na data da sua publicação, que foi 20 de março do ano em curso, sem vacatio legis implícita nem explícita.

E assim termina a lei, sabendo-se que não há mal que sempre dure.

 

 

 

 

 

 

 

[1]  Não somos arautos do apocalipse nem afeitos a profecias sinistras, mas para ser pessimista basta examinar no noticiário diário o que já está acontecendo em termos de descalabro administrativo, irresponsabilidade, corrupção e improbidade, tanto nas administrações estaduais quanto nas municipais. Afinal vale tudo, não é verdade ?..  Quem arromba a porta institucional não pode esperar austeridade dos beneficiários.

[2] Mas ninguém fique seriamente preocupado. Este momento lembra aquele episódio que se relata de Simone Signoret quando lhe informaram que seu marido Yves Montand estaria mantendo um caso com Marilyn Monroe. Sem minimamente se abalar, respondeu ao informante: - Isso passa.  Aqui também. Ninguém se preocupe muito seriamente com o novo art. 65 da LRF.