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REGE-SE PELA CLT O PESSOAL DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS, DECIDIU O STF. PODERIA SER DIFERENTE?
REGE-SE PELA CLT O PESSOAL DOS CONSELHOS PROFISSIONAIS, DECIDIU O STF. PODERIA SER DIFERENTE ?
Ivan Barbosa Rigolin
(nov/20)
I – O Supremo Tribunal Federal vem de publicar, em 16 de novembro de 2.020, o acórdão que explicita a sua decisão de 8 de setembro de 2.020 pela qual decidiu a ADPF – ação de descumprimento de preceito fundamental – nº 367, proposta que fora pelo Procurador-Geral da República em 3 de setembro de 2.015.
O objeto daquela ação fora o de obter a declaração pelo Supremo Tribunal de que
(i) o art. 35 da Lei 5.766, de 20 de dezembro de 1971, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia; (ii) o art. 19 da Lei 5.905, de 12 de julho de 1973, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem; (iii) o art. 20 da Lei 6.316, de 17 de dezembro de 1975, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional; (iv) o art. 22 da Lei 6.530, de 12 de maio de 1978, que regulamenta a profissão de corretor de imóveis; (v) o art. 22 da Lei 6.583, de 20 de outubro de 1978, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Nutricionistas, e (vi) o art. 28 da Lei 6.684, de 3 de setembro de 1979, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Biologia
afrontavam a Constituição Federal, e não teriam sido por ela recepcionados.
Eis a enunciação do acórdão:
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Virtual do Plenário, sob a Presidência do Senhor Ministro DIAS TOFFOLI, em conformidade com a certidão de julgamento, por maioria, acordam em julgar improcedente o pedido formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental para declarar a recepção pela Constituição Federal do art. 35 da Lei 5.766/1971; do art. 19 da Lei 5.905/1973; do art. 20 da Lei 6.316/1975; do art. 22 da Lei 6.530/1978; do art. 22 da Lei 6.583/1978; e do art. 28 da Lei 6.684/1979, nos termos do voto do Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros CÁRMEN LÚCIA (Relatora), RICARDO LEWANDOWSKI, MARCO AURÉLIO e CELSO DE MELLO, que proferiu voto em assentada anterior, e parcialmente o Ministro EDSON FACHIN. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o Ministro CELSO DE MELLO.
Brasília, 8 de setembro de 2020
Ministro ALEXANDRE DE MORAES - Relator?
A questão diz respeito ao regime jurídico do pessoal das autarquias federais corporativas, fiscalizadoras do exercício profissional, que sempre tiveram, têm e pelo visto sempre terão seu pessoal contratado e regido pela Consolidação das Leis do Trabalho e restante legislação trabalhista aplicável, e nunca pelo regime funcional estatutário próprio da administração direta.
Os Conselhos que tiveram o regime celetista contestado pela ADPF foram os de (I) Fisioterapia e Terapia Ocupacional; (II) Corretores de Imóveis; (III) Nutricionistas, porém foram também atacadas três leis federais que informaram que a regência do pessoal dos Conselhos é a trabalhista, quais sejam a Lei nº 5.766, de 20/12/71; a Lei nº 5.905, de 12/7/73, e a Lei nº 6.684, de 3/9/79.
Com todo o respeito institucional que merece tanto o autor quanto os ministros do STF que votaram pela procedência da ação, entendemos que aquela ação, só em si, não era para ser levada a sério.
Levou cinco anos para ser julgada, mas em nosso entender deveria ter sido descartada com a brevidade e a fulminância de um raio. Vejamos.
II – Pergunta-se como, técnica e muito respeitosamente, levar a sério uma pretensão judicial que questiona, no ano 2.015 da graça, a constitucionalidade de uma lei de 1.971, uma de 1.973 e uma de 1.979 ?
Se os diplomas eram assim tão afrontadores da ordem constitucional, então por que cargas d´água a autoridade esperou respectivamente 44 anos, 42 anos e 39 anos para questioná-las na mais alta corte do Judiciário ?
Desconhecia o ilustre autor que as situações possivelmente irregulares – se é que eram irregulares - consolidam-se como regulares e rotineiras após três ou quatro décadas de tolerância, exercício e generalizada produção de efeitos ? Ignora que a pior injustiça é a tardança da justiça ? Ou que o direito não socorre aos que dormem ?
A Procuradoria-Geral da República é uma entidade essencial do Estado que como todo órgão público desempenha atribuição regida pelo princípio da continuidade do serviço que presta, e o da impessoalidade por parte de seus sucessivos dirigentes, não podendo ser diferente a sua conduta.
Dessa maneira a ofensiva da PGR não pode depender da cor política do seu mandatário, ou da sua relação com os Poderes do Estado, ou das infantilidades amadorísticas dos desocupados que povoam os meios informáticos de comunicação, a cada momento político nas questões de defesa da Constituição.
Ninguém aqui fala em política, nem em modismos nem em tendências, mas da fria defesa de um assunto técnico e distante da Constituição, para nós muito relevante porém que desperta poucas emoções nas pessoas não diretamente envolvidas, e pouco interesse dos veículos de comunicação. O tema é para técnicos, não para participantes de passeatas nem para fracamente alfabetizados agitadores de redes sociais.
Como então se justificar o silêncio dos detentores da ação de inconstitucionalidade ou de descumprimento de preceito fundamental, por várias décadas, se o tema era constitucionalmente tão sério ?
Começou mal a história desta ação.
III – A ADPF se voltou contra três ou quatro Conselhos de fiscalização profissional, como se o problema nas dezenas dos outros Conselhos não existisse, ou como se não fosse o mesmo. Todos os Conselhos têm seu pessoal regido pela CLT, desde que cada qual foi instituído. Nunca se restringiu apenas aos Conselhos visados por esta ação.
Por que verter energia apenas contra a organização funcional de poucos Conselhos, se a questão do regime jurídico pela CLT existe em todos, que somam mais de cinqüenta e não param de se avolumar na medida em que se disciplinam legalmente as profissões?
Caso, por exercício de uma imaginação juridicamente macabra, fosse provida a ação, então alguém concebe que três ou quatro Conselhos pudessem ter servidores estatutários, regidos pelo regime único federal, enquanto em todos os demais o regime fosse mantido o da CLT ? Faria sentido uma semelhante discrepância entre iguais ? Ora, que precedente desastroso o direito brasileiro sofreria !
IV – Faz algum senso imaginar – a idéia ? O pesadelo ? A hecatombe ? A ficção científica ? – de se considerarem nulos todos os contratos de trabalho dos servidores dos Conselhos que fossem atingidos pela procedência da ação ?
Quarenta anos, ou mais, de trabalho formal pela CLT então seriam declarados... nulos ?..
Então o que foram ? Não-contratos, de não-trabalho ? Anulam-se dezenas ou centenas de milhares de contratos, e seus efeitos ? Apaga-se a história e suas conseqüências ? Lembrar-se-ia então a antiga União Soviética ou a China, que ao cair em desgraça um antigo herói do povo era sumariamente raspado da enciclopédia e dos registros fotográficos e históricos ?
As décadas de contribuição ao regime geral da previdência social, hoje a cargo do INSS, seriam então inexistentes, apagadas da história, desconsideradas ? Passariam a ser não-contribuições ?
Ou seria o respectivo e gigantesco valor revertido para o sistema próprio federal, em favor dos contribuintes para o regime geral ? Se assim se pretendesse, então para calcular esses valores e os critérios de compensação entre os regimes, no ritmo brasileiro, deveriam ser necessários outros cinqüenta anos – com pífio resultado de esperar.
E a previdência dos servidores dos Conselhos, em que pé estacionaria ?
Quem sempre esperou aposentar-se pelo INSS - para infelizmente ingressar no mundo dos candidatos à sobrevivência -, esse trabalhador agora seria então contemplado com a aposentadoria integral ? Faz algum sentido uma cogitação delirante como esta, num país que não suporta nem mesmo pagar a previdência dos funcionários que se aposentam, e que vai ter de virar as atuais regras de ponta-cabeça se não quiser ver o sistema se esfacelar ?
O FGTS dos mesmos servidores, que os estatutários não têm, como ficaria ? Ser-lhes-ia liberado ? Talvez, com a mesma científica viabilidade de papai Noel ou do bicho-papão.
Mas seriam possíveis – necessários :? - efeitos do provimento da ADPF, os quais efeitos parecem ter passado ao largo da análise do autor.
V – O que precisa exsurgir como impactante reflexo desta decisão em comento, entretanto, é o fundamento e o pressuposto da mesma decisão segundo o qual as autarquias corporativas de fiscalização profissional não integram a administração pública.
Isto constitui o basilar e essencial alicerce de toda a separação de regimes jurídicos para este caso, tanto o regime daquelas próprias autarquias como instituições peculiares quanto o regime do seu pessoal, ambos com relação aos pressupostos da administração pública – que passam longe.
Se a administração pública se compõe dos Poderes e seus órgãos, das autarquias comuns e indiferenciadas, e das fundações públicas que tenha instituído, entretanto as autarquias corporativas – repita-se pela bilionésima vez – não se localizam nessa província.
Constituem, elas, quistos de especialidade dentro da generalidade das autarquias indiferenciadas, que são entes públicos criados pelo poder público para prestar serviço público com dinheiro particular e /ou público, como longa manus do próprio estado.
Nada disso se dá com as autarquias especiais corporativas, que são sui generis: simplesmente não são órgãos públicos, apesar de criados por lei.
Não prestam direta nem exatamente serviço público, porque apenas fiscalizam profissionais para verificar suas condições de atuar no mercado. Apenas depois na análise, indiretamente e por reflexo, isso passa a ser de utilidade pública, mas não, absolutamente não, na essência e na origem desses serviços, que são eminentemente particulares. O ente fiscaliza se o profissional formado na carreira está ou não está apto a exercer sua profissão – essa é a base, tão pública quanto uma banca de jornal ou uma oficina de bicicletas.
Não arrecadam dinheiro público, e com isso não gastam nem empregam dinheiro público mas apenas contribuições particulares, que são compulsórias sob pena de exclusão do afiliado inadimplente ([1]).
VI - Foi nesse sentido decididamente privatístico a resposta que o Presidente do Senado Federal, instado a falar na ação sobre a alegada inconstitucionalidade das leis federais que determinaram o regime da CLT para os Conselhos, e como consta do próprio acórdão, aduziu:
Repise-se que como as autarquias corporativas não integram a Administração pública, não se aplicam as exigências constitucionais estabelecidas no Capítulo VII (“Da Administração Pública”) relativas a autarquias que compõem a Administração.” (Negrito nosso, da p. 6/60 do acórdão STF).
De nossa parte já disséramos na primeira edição dos Comentários ao regime único dos servidores públicos civis:
Também não se confundem as ordens ou conselhos de profissões, muito menos ainda, com simples associações de classes, que possuem “oficialidade” ainda menor que a do sindicato.
Nenhuma dessas entidades, entretanto, pode ser considerada órgão ou entidade pública, para efeito de que o seu empregado possa pretender enquadrar-se no regime da L. 8.112. Ordens, Conselhos Federais ou Conselhos Regionais de profissão, bem como sindicatos ou associações de profissão, são sempre entidades particulares para esse efeito, voltadas à atenção dos interesses de uma categoria profissional, o que em hipótese alguma pode ser confundido com serviço público.
Não existe qualquer injunção importante do Poder Público federal sobre quaisquer das ordens representativas de profissões, que sempre tiveram seus servidores contratados pela CLT, e devem continuar a tê-los. (Ed. Saraiva, SP, 1.992, p. 15).
Os conselhos, ou as ordens profissionais, nunca foram, não são e jamais se imagina que possam vir a ser órgãos públicos. Ou de outro modo cada advogado, cada engenheiro, cada arquiteto, cada médico, cada químico, cada enfermeiro, cada fonoaudiólogo inscrito no seu conselho ou na sua ordem é um servidor público, o que humoristicamente até que passa.
VII – Não se compreende exatamente, em os Conselhos e as Ordens profissionais não integrando a administração pública nem utilizando dinheiro público mas apenas particular dos seus afiliados em prol desses mesmos afiliados - e afora quanto à OAB por decisão do Supremo Tribunal -, a razão de serem fiscalizados pelo Tribunal de Contas da União.
A competência do Tribunal de Contas da União, reza o art. 71 da Constituição Federal em seus onze incisos e quatro parágrafos, é a de fiscalizar as contas dos administradores públicos. Se os conselhos e as ordens profissionais (I) não são entes públicos, e se (II) não recebem nem utilizam dinheiro público, então se indaga onde reside a competência do mesmo TCU para fiscalizar as contas dos responsáveis por aquelas entidades de fiscalização profissional.
Enquanto o egrégio Tribunal o fizer este humílimo escriba permanecerá, quanto a isso, irresolvido, sempre, entretanto, contando com a benevolência prometida ao destino dos que têm dúvidas.
VIII - Parabéns, enfim, ao Supremo Tribunal Federal por ter dado este desfecho a esta, data venia, esdrúxula ação, desprovida da mais remota sensibilidade institucional e também, data maxima venia, da mínima plausibilidade lógica e jurídica.
Apenas se lamenta que a mais alta corte tenha consumido cinco anos de árduo trabalho judiciário em algo como tal, e que o placar, já em um mês após protocolada a demanda, não haja sido de onze a zero.
[1] O grande interesse dos Conselhos e das Ordens profissionais em serem autarquias é o de que sob essa natureza jurídica podem cobrar contribuição compulsória dos profissionais da respectiva carreira que queiram exercer a profissão, e a contribuição se dá a título de fiscalização do exercício profissional, em prol da categoria e, num segundo momento do público usuário dos serviços. Este é um forte argumento em favor de que as autarquias especiais integram a administração pública: não fora autarquia, sua natureza de mera associação profissional não lhe permitiria impor a filiação e a contribuição. Daí se atribuir com freqüência a natureza de tributo à contribuição associativa aos entes de fiscalização profissional. Não é desprezível o argumento, mas não convence para o fim a que se predispõe. A contribuição compulsória só em si não pode ter o condão de transformar um ente criado para realizar trabalho corporativo privado, que trabalha sem nenhum dinheiro público e sem prestar diretamente serviço público nenhum, em entidade da administração pública. As características operacionais das autarquias corporativas são as de uma empresa, voltadas apenas aos aspectos profissionais e privados da categaria abrangida, e não são as de um ente público. O Supemo Tribunal Federal, com esta decisão em comento e como se isso ainda fosse necessário, prestigiou definitivamente este entendimento privatístico das autarquias especiais.