LICITAÇÃO. PARTICIPANTES VINCULADOS ENTRE SI. FATO IRRELEVANTE

LICITAÇÃO. PARTICIPANTES VINCULADOS ENTRE SI. FATO IRRELEVANTE

 

Ivan Barbosa Rigolin

(set/21)

 

 

1) Não tem nenhuma relevância pra a plena legalidade da licitação o fato de que algumas empresas participantes do pregão pertençam ao mesmo proprietário, ou que diversas pessoas físicas, licitantes,  tenham parentesco. 2) Não se fala em conluio fraudatório, até porque é um direito do licitante abrir previamente seus preços a quem quiser. A garantia de sigilo das propostas é dada ao proponente contra a Administração, mas não constitui proibição de que o próprio autor da proposta a revele a quem quer que seja antes da abertura oficial. 3) Penalidades impostas a meros licitantes com base nos arts. 86 a 88 da Lei nº 8.666/93 são insanavelmente ilegais, já que as penas dessa lei se aplicam exclusivamente a contratados.

 

 

I - Enquanto a nova Lei nº 14.133, de 2.021, não for a única a ditar as normas gerais de licitações em nosso país – porque a velha Lei nº 8.666/93 tem sobrevida alternativa até 1ª de março de 2.023 – a grossa maioria das licitações que se realizam continua sendo regida por essa última.

O que se alega, apesar das imprecações e das maledicências que sempre foram opostas a essa lei de 1.993, é que ao menos é conhecida, e o estrago que pode causar está equacionado e constitui um risco calculado, diferentemente da nova e assustadora Lei nº 14.133/21. Diversamente da Lei nº 8.666/93 que apenas continua dando medo, a nova lei tem infligido pavor aos leitores.

Lei de muitas garatujas indecifráveis e de fauces aterradoras, a nova norma de licitações fez o direito evoluir sensivelmente em múltiplos pontos e temas, porém o seu conjunto inteiro atemoriza como um salto no desconhecido, uma incursão no escuro ou uma aventura em terra desconhecida, e incontáveis operadores prefeririam que a sua obrigatoriedade, ao invés de em abril de 2.023, fosse postergada até o dia de São... desnecessário prosseguir.

 

II – Recebemos recente consulta de um representante de duas empresas, pertencentes ao mesmo grupo econômico, que participaram de um pregão eletrônico para a contratação de serviços no Município de São Paulo.

Tão logo soube desse fato, o responsável pelo  pregão desclassificou ambas as empresas, alegando tentativa de conluio, e com isso simulação e fraude à competitividade.

Não contente o Município, foram as empresas também multadas pesadissimamente, apenadas com suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração por dois anos, e até mesmo com a rescisão dos contratos que já mantinham com  o  ente público.

O que juridicamente mais importa ter presente é que todas as penalidades foram aplicadas aos licitantes com fundamento nos arts. 86 a 88 da Lei nº 8.666/93.

Visto isso, indagou em síntese aquele consulente:

a) são legítimas as penalidades, ante a inexistência de qualquer contrato entre as partes ? Atende o  princípio da legalidade ?;

b) considerando-se a relação de parentesco entre os dois licitantes em questão, esse só fato constitui fraude ao certame ou a princípios de administração ?

c) as penalidades podem ter efeito retroativo para atingir outros contratos, já celebrados anteriormente a esta licitação e  em andamento entre a empresa e a Administração, para o fim de que agora sejam rescindidos ?

d) cabe pedido judicial de anulação da desclassificação e das penalidades impostas neste caso ? E, ainda,  de anulação do contrato com outra empresa  para substituir  a que teve o contrato rescindido ?

Assim foi a consulta, que se passa a responder segundo o roteiro aproximado dos quesitos.

 

III - Estamos diante de uma extraordinária reunião de irregularidades jurídicas praticadas contra  empresas licitantes, poucas vezes verificada com semelhante virulência.

A primeira grave irregularidade conduziu à prática das outras, numa cascata absolutamente inadmissível em direito e inaceitável sob qualquer análise.

Se a empresa consulente foi apenada com base em artigos da Lei nº 8.666/93 em face de  uma licitação que, pela informação,  foi declarada fracassada e que portanto não gerou nenhuma contratação, isso foi absolutamente irregular. Vejamos.

Rezam os capit dos arts. 86 a 88 da Lei nº 8.666/93:

Art. 86.  O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato. (...)

Art. 87.  Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (...)

Art. 88.  As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:  (Todos os destaques são nossos).

As palavras negritadas evidenciam que a principal e indispensável condição de alguém para poder sofrer as penas dos art. 86 a 88 da Lei nº 8.666/93 é a de  ser um  contratado da Administração.

A Lei nº 8.666/93 não previu penas para licitantes, mas apenas e exclusivamente para contratados. Examinando-se os seus arts. 86  a 88 verifica-se que se destinam tão somente aos contratados pelo ente público, jamais a quem não seja contratado.

Como a empresa apenas participou da licitação e foi desclassificada, então não chegou a ser contratada, portanto jamais poderia ter sofrido pena prescrita na lei apenas para quem é contratado.

 

IV - Falta tipicidade à conduta do agente, que neste caso é a empresa consulente, com relação ao tipo infracional previsto na lei, e portanto, faltando tipicidade, nenhuma irregularidade cometeu, se o tipo infracional não se refere a  licitantes mas apenas a contratados.

Tipicidade é o principal fundamento do direito penal, mesmo que seja aquele exercido dentro da Administração, e vem expresso na Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXIX, a rezar que

não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Esta é a base de todo o direito criminal e do direito penal administrativo.

É uma pilastra incontornável: ou a conduta do agente se enquadra como uma luva apertada na descrição legal do tipo penal ou infracional, ou crime não existe, e infração administrativa não existe.

V - Nem se alegue que a empresa apenada já detinha outro contrato com o ente apenador, porque isso em absoluto não interessa nem vem ao caso.

Se ela não estava contratada por força desta licitação de que participou recentemente, então a relação paralela com o ente, se existi ou se existia, não exerce a mínima influência sobre o fato de que os arts. 86 a 88 da lei de licitações não se aplicam a quem não é contratado.

Não se transportam para uma licitação penas próprias de contratados apenas porque,  por mero acaso, a empresa detém outro contrato com o ente, licitado no passado e que vinha sendo regularmente executado até ser absurdamente rescindido neste momento, sem nenhum motivo.

O mundo de uma licitação é fechado em si, não podendo sofrer  efeitos de outras licitações, outros contratos e outros negócios do passado, cada um dos quais a) foi um ato jurídico perfeito e b) também é um mundo fechado em si e protegido de invasões estranhas ao seu âmbito.

Aplicar a uma empresa não contratada penas exclusivas de quem é contratado afronta diretamente vários momentos dos arts. 86 a 88 da lei de licitações, e com isso viola frontalmente o princípio da legalidade, previsto no art. 37 da Constituição Federal.

E viola também a previsão do art. 5º inc. XXXIX, da mesma Constituição Federal, por aplicar pena sem lei anterior que o defina quanto a licitantes, como a consulente.

 

VI – Na sequência da consulta indagou-se se se a só relação de parentesco entre alguns participantes constituiu fraude ao certame, à competitividade ou ao sigilo das propostas.

Antes de focar o núcleo deste quesito convém citar a popular e quase vulgar expressão corrente nas ruas e na voz do povo,  que tem aplicação imensa na vida das pessoas: o buraco é mais embaixo. O problema se situa antes...

Nada justifica a aplicação das penas próprias de contratado para quem não é contratado mas  apenas licitante.

Se ao invés do que ocorreu neste caso a empresa consulente tivesse praticado, por exemplo, uma fraude eletrônica forjando falas do pregoeiro – o que seria fato gravíssimo – mesmo assim, só por não ser contratada,  não poderia sofrer as penas dos arts. 86 a 88 da Lei n º 8.666/93.

Poderia sofrer uma ação penal e se sujeitar a prisão, mas nunca sofrer as penas de contratado se não era contratada.

Nisso reside a questão da  tipicidade constitucional: ou a conduta do agente se enquadra no figurino legal apertadamente, sem folga, arranhão,  analogia ou mera similaridade, ou então não pode sofrer uma pena destinada a contratado, a qual ele não merecia simplesmente porque não era contratado.

Então o quesito deve ser respondido desde logo negativamente:  o fato de serem parentes os donos das duas empresas jamais poderia ser  fundamento de uma pena ilegal, somente cabível a que fosse contratado.

Esse motivo, ou qualquer outro motivo existente no universo, todos juntos jamais seriam fundamento de uma pena aplicada com base nos arts. 86 a 88 da Lei nº 8.666/93 se o agente não era contratado.

 

VII - Mas não pararemos por aqui.

O cerne da questão  – que de resto já está mais ou menos respondido - é saber se o fato de serem parentes ou correlatos os proprietários de empresas participantes da mesma licitação constitui alguma irregularidade.

A resposta é não, jamais, nunca em tempo algum da história jurídica do Brasil, nem por um segundo.

Esse mito próprio de neófitos no assunto, evidentemente despreparados para a função de operadores de licitações e imbuídos  de um moralismo tão infantil quanto irritante, é uma crendice que jamais teve o menor fundamento.

A garantia legal de sigilo das propostas é um direito do proponente contra a Administração que licita, ou seja:  o ente licitador não pode devassar o sigilo das propostas antes da sua oficial abertura. Apenas isso, e ponto final.

É  direito do proponente, e sempre foi,  lançar de helicóptero sobre a cidade vias impressas da sua proposta na licitação x ou y, que se realizará amanhã ou depois de amanhã, ou daí a um ano.

Nada na lei nem na lógica obriga o proponente a manter o sigilo da sua proposta, e ele divulga o seu conteúdo para quem quiser quando quiser e como quiser.

Exatamente como o voto eleitoral, é secreto com relação aos entes públicos que não podem exigir que o eleitor o decline, mas isso não impede o mesmo eleitor de anunciar aos quatro ventos, e propagar a plenos pulmões, em quem votará.  Os cabos eleitorais, o que são, e o que fazem senão isso ?

Se a contratação não é secreta (envolvendo segurança nacional e tendo o segredo declarado no ato que anuncia o contrato)  – e esse não é o caso da consulta -, então numa licitação pública como são todas qualquer licitante pode informar  a quem quiser quanto irá propor ao ente licitador. Problema dele... e quem tiver condição, e quiser, que proponha condição melhor.

O que não pode acontecer, repita-se, é que o ente público informe o conteúdo das propostas de ninguém antes da sua oficial e solene abertura, ou permita a terceiro que devasse aquele conteúdo.  O direito legal é do licitante contra a Administração,  limitando a ação do ente licitador, e não constitui nenhuma proibição de que o licitante voluntariamente divulgue sua proposta para quem quiser.

No caso de pregão eletrônico, vale o mesmo direito de qualquer licitante, de dispor à vontade dos seus próprios preços e das suas próprias condições, que propõe ao ente licitador. Nada muda quanto a isso e quanto ao direito de fundo, mudando apenas a forma de realização do certame.

Quebrar o sigilo da sua própria proposta   é e sempre foi um direito de qualquer licitante no Brasil – e seguramente em qualquer nação institucionalizada. Devemos  combater os mitos e as lendas urbanas na Administração, porque não combinam com licitações, nem auxiliam o direito.

 

VIII - Publicamos um longo artigo denominado Empresas do mesmo grupo econômico, ou pertencentes a parentes entre si,  podem disputar a mesma licitação ([1]), que foi a versão atualizada até 2.013 de outro artigo de 2.002, e cuja ementa é a seguinte:

Licitação. Pessoas jurídicas e pessoas físicas. Empresas do mesmo grupo em uma licitação. Empresas pertencentes a parentes entre si.   1.  É princípio basilar de direito, consagrado há alguns séculos,  que pessoas jurídicas não se confundem com as pessoas físicas suas proprietárias. Assim era em nosso anterior Código Civil, e assim permanece sendo no atual. Fora de outro modo, não haveria razão alguma  para se instituírem empresas.   2.   Em uma licitação, aberta indiscriminadamente aos fornecedores do ramo pertinente ao objeto licitado,   podem regularmente participar quantas empresas desejarem, pertencentes ao mesmo  proprietário, ou ao mesmo  grupo, ou a proprietários vinculados por matrimônio, parentesco  ou outra relação familiar, sem qualquer possível obstaculização pelo poder público, porque juridicamente insustentável.

 

Permitimo-nos transcrever um longo excerto daquele artigo, porque esta investigação o exige:

I - Temos recebido, ininterruptamente desde longa data, freqüentes consultas e indagações, quase invariáveis em seu teor, sobre a possibilidade jurídica de mais de uma empresa integrante do mesmo grupo econômico, ou da mesma família de proprietários, ou da mesma pessoa natural, ou pertencentes a pessoas casadas ou aparentadas entre si, participar como licitantes distintas de um mesmo procedimento licitatório instaurado pelo poder público.

Inquire-se nessas consultas, em suma, se  sob o ponto de vista jurídico é legal ou regular, ou por outro lado seria irregular ou ilegal, a participação, em uma dada licitação, de empresas - pessoas jurídicas distintas - cujos quadros societários  incluam pessoas unidas por vínculo familiar, ou econômico. Uma específica indagação foi sobre se poderiam concorrer entre si empresas sendo   sócio  de uma o marido da sócia de outra, porém variam as situações dentro desse sintetizado quadro. 

Informa-se  ainda – e isso é importante - que os certames em questão são concorrências,  tomadas de preços e pregões, presenciais e eletrônicos, e não convites.

A preocupação demonstrada em todas as consultas revela-se evidente, e é a seguinte: em participando do mesmo certame  empresas do mesmo grupo, ou empresas a cujas propostas a(s) mesma(s) pessoa(s) teria(m) garantido acesso, esse fato  porventura não afrontaria o princípio e a regra do sigilo das propostas, sabido e conhecido direito dos participantes de toda e qualquer licitação ?

Não favoreceria o conluio e os arranjos de toda ordem entre os participantes ?   Não afrontaria tanto a regra da igualdade entre os licitantes quanto, por isso mesmo, à da competitividade ?

Antes de prosseguir seja reiterado que não se fala neste momento de convites, mas apenas de concorrências, tomadas e de preços e pregões.

II - Não, é a resposta. Respondamos desde logo, para a seguir justificar.

Esse fato de empresas que concorram às mesmas licitações pertencerem ao mesmo grupo econômico, ou à mesma família, ou a sócios comuns, ou a amigos, associados  ou colaboradores entre si, ou casados entre si, é bastante freqüente em licitações  - e não apenas em nosso país -, e nada contém de irregular, antijurídico, condenável ou ilegal, e pelas mais variadas razões, como as seguintes:

1ª) quem, hoje no Brasil,  tem a suficiente coragem pessoal de constituir uma média empresa comercial assume, desde logo,  sérios compromissos financeiros relativos a investimentos necessários, que são mais seguros ou menos seguros; pesadíssimas obrigações tributárias e fiscais; pesadíssimas obrigações trabalhistas; pesadíssimos  encargos previdenciários relativos aos empregados; grandes riscos comerciais frente  à concorrência e às instabilidades do mercado, sem falar dos  graves riscos de condenações judiciais em face de tudo aquilo, em diversas Justiças e variadas esferas judiciais.  Somente para ilustrar com fato sabido, mais da metade das micro e das pequenas empresas instituídas no Brasil se encerram entre o primeiro e o segundo ano de existência.

O chamado “custo Brasil”, que é próprio do terceiro mundo e de nações subdesenvolvidas; que em nosso país obriga as pessoas a trabalharem mais de cinco meses a cada ano antes de ganharem para além de pagar tributos, e que no mais resume todos aqueles compromissos e riscos, constitui uma permanente  espada de Dâmocles pendente sobre todo e qualquer intrepidismo empresarial, e sobre a cabeça e o pescoço de todo empresário nacional, desde o dia em que constitui a empresa até, quiçá, muitos anos após dissolvê-la;

2ª) se alguém ou se algum grupo familiar ou econômico, inobstante todo o risco e o complexo obrigacional mencionados, além de instituir uma empresa institui mais de uma com o mesmo objeto comercial, então além de se sujeitar mais de uma vez ao “custo Brasil” e a todas as vicissitudes acima apontadas, concorre consigo mesmo, e se uma de suas empresas ganhar a licitação outra estará perdendo, e precisará arcar com o preço disso;

3ª) visto isso, acusar de cartelização ou “lobby” a empresas de um mesmo grupo que concorram em um mesmo certame é repetir o episódio do ovo de Colombo: se é tão fácil, tão seguro, tão barato, tão simples e tão descomplicado constituir várias empresas, e as pôr para entre si concorrerem em certames licitatórios, então por que motivo mais empresários não o fazem? Se essa “mina de ouro” é tão acessível e cômoda, por que mais gente não constitui grandes redes empresariais e  comerciais, para com isso ampliar as possibilidades de vencer concorrências abertas pelo poder público? 

Se manter diversas empresas, com dezenas,  centenas ou milhares de empregados sustentados por  atividades comerciais cujo mercado  varia de a a z a cada dia que passa é mesmo algo tão confortável e prazenteiro, por que razão muito mais brasileiros não desfrutam de tais delícias ?

III - Fora irregular que empresas de um mesmo proprietário comparecessem às mesmas licitações, então uma empresa do grupo econômico Votorantim, durante muitos anos o maior do  país, não poderia concorrer, em uma concorrência aberta a todas as empresas  fornecedoras daquele mesmo objeto, com mais de uma empresa do grupo.  Um banco, de um grupo econômico, não poderia concorrer com outro banco do mesmo grupo, em uma licitação aberta pelo poder público - e isto, em direito,  é simplesmente ridículo.  Ou do grupo Matsushita, ou do grupo GM, cujo orçamento mundial é maior que o do Brasil, ou do grupo Nestlé, ou do grupo Dupont, ou de tantos outros.

Ou de outro modo uma empresa não poderia propor um produto seu, e outra empresa do grupo propor outro produto, ambos que atendam o edital, como aliás é extremamente comum e usual em nosso país a cada dia que passa.

(...)

Fora aquilo irregular, então a fábrica Audi, que pertence à Volkswagen, estaria impedida de concorrer com a VW numa licitação para compra de veículos !   E, ao tempo em que existia a Autolatina, consórcio ou associação entre Ford e VW, ambas estariam proibidas de concorrer na mesma licitação

Numa licitação para a compra ou o fornecimento de passagens aéreas, a empresa Rio-Sul, que pertencia à extinta Varig,  não poderia participar, cotando seus preços, se a Varig também participasse.  Nem a empresa Nordeste, que ao mesmo grupo pertencia em idos tempos.  Nem alguma menor empresa do grupo TAM,  se a própria TAM participasse. Ou da GOL.

Uma empresa do grupo empresarial Pão de Açúcar estaria impedida de concorrer com outra do grupo, no mesmo certame.  Cada conglomerado econômico - desses gigantescos e quase indimensionáveis como o são o grupo Bradesco ou o Itaú - apenas poderia permitir que uma de suas empresas , dentre por  vezes as centenas que o integram,  participasse de cada licitação !   A fiscalização interna necessária haveria de ser então, e  somente ela,  fantástica !..

A Microsoft não poderia propor contra a Apple, porque o principal acionista da primeira detém 30% da segunda...

Um canal integrante da Rede Globo não poderia propor em uma licitação da qual participasse outro, dentre as dezenas que a organização possui. E o mesmo se diga da Rede Bandeirantes de televisão, ou da rádio Jovem Pan. Uma faculdade do grupo X não poderia participar de um certame de que participasse outra do mesmo grupo. Se a matéria é apenas para dar risada, então valem aquelas proibições.

Atualizando-se os fatos comerciais mencionados, ou em se substituindo aquelas empresas citadas por outras eventualmente em associações ou parcerias similares, todo o raciocínio continua rigorosamente válido, e não se imagina como possa ser outro.

 

IX – A quem trouxer a visão de fraude ao que quer que seja em caso semelhante, pergunta-se: que fraude ? Uma empresa concorrer com outra do mesmo grupo é fraude ? Onde, como e por que ? 

Se uma concorrência ou pregão for aberto e vinte empresas do mesmo proprietário disputarem entre si o contrato, cada qual propondo preço menor para a Administração, e se todos esses preços forem aceitos pelo pregoeiro, e se todos forem exequíveis, e se o interesse público estiver plenamente atendido no episódio, então que fraude existe nisso ?

Se um do grupo ganha outros dezenove perdem... esse é o jogo da livre concorrência no capitalismo...

Se o preço proposto for inexequível, será desclassificado pelo pregoeiro.  Se o preço for excessivo, será desclassificado pelo pregoeiro.

O pregoeiro tem obrigação de somente aceitar propostas razoáveis, exequíveis dentro do mercado do respectivo  objeto, prevaricando aquele agente público se aceitar o inexequível ou o excessivo ..

Onde sequer um vestígio ou uma sombra de fraude na livre competição entre empresas legalmente constituídas e existentes, pertençam elas a quem for – seja ao Arcanjo Gabriel, seja ao Satanás de Sete Barbas ?

Vamos além, porque este assunto não comporta meias verdades.

As empresas ofertantes podem estar sentadas  lado a lado,  tomando cerveja e se divertindo à larga com o pregão... apenas precisam seguir as regras do jogo: propor de acordo com a lei e com o edital – nada mais. Todas estão no seu mais legítimo e absoluto direito.

Para a Administração é indiferente saber de que grupo econômico ou conglomerado comercial venha a proposta, se estiver correta, se for aceitável e se se contiver dentro do requisito formal: a melhor será contratada, apenas isso. As demais foram derrotadas, conforme a regra do jogo.

Imoral, fraudatório, desonesto e inidôneo  é preço excessivo e contrato superfaturado, não propostas, uma melhor que a outra,  que venham do mesmo grupo econômico, neste mundo de cartéis onde quem tem mais dinheiro vence sempre – o que é natural no capitalismo e na livre concorrência, garantida pela Constituição Federal.

E mesmo que a proposta seja excessiva, esse é um direito do proponente. Pelas regras e sobretudo pela economicidade essa proposta deverá obrigatoriamente ser desclassificada, ou se for o caso reduzir-se até  nível aceitável. É direito da empresa propor o que quiser, e é dever do ente público desclassificar as propostas excessivas, apenas isso.

 

O Superior Tribunal de Justiça, Primeira Turma, REsp. nº 51.540-8-RS, relator Min. Demócrito Reinaldo, j. em 15/12/97, assim já tem decidido:

“Restaria então ser apreciada a alegação de maltrato ao art. 20 do Código Civil, este sim prequestionado, e que, segundo sustenta o recorrente, restou violado, pois o acórdão hostilizado “considerou, de forma equivocada, não ter havido a competitividade na licitação, pelo fato das empresas que participaram do certame terem um sócio em comum. Ora, o fato das empresas que participaram da licitação terem um sócio comum é irrelevante, porquanto as pessoas jurídicas têm existência distinta dos seus membros” (fl. 276). (...)

É certo que o sistema e a lei cuidam da distinção da personalidade jurídica da sociedade daquela atinente aos que a compõem (v.g., Código Civil, art. 20; Dec.-lei nº 7.661, art. 5º) sendo correto que isto é produto do desenvolvimento do direito e com vistas a permitir-se a constituição de sociedades com limitação da responsabilidade dos sócios, para que empreendimentos alcancem vulto que a pessoa natural, isolada, não alcançaria.” (In BLC - Boletim de licitações e contratos,  ed. NDJ, SP, junho/98, p. 328/9, com grifo nosso no primeiro parágrafo).  

 

X – Quanto ase saber se as penalidades podem ter efeito retroativo para atingir contratos outros, em curso entre o ente apenador e a empresa agora apenada indevidamente numa licitação e sem ser contratada, essa ideia não faz o menor sentido.

Sim, porque as penalidades não poderiam ter sido aplicadas, porque são destinadas na lei a contratados e a empresa consulente não estava contratada por força deste pregão eletrônico a que se refere a consulta.

Jamais poderiam ter sido aplicadas as penalidades por rigorosa falta de tipicidade: penas escritas na lei para contratados somente podem ser aplicadas a contratados. Quem não é contratado não pode merecer tais penas, porque não se enquadra no descritivo legal. É um raciocínio acessível a uma criança de cinco anos de idade, e não das mais aquinhoadas.

Então, se não podem ser aplicadas, muito menos poderiam ser aplicadas com efeito retroativo, e transportando-se a outros contratos que porventura mantenha a empresa com o ente apenador.

Todos os efeitos das penalidades, em caso assim,  são inadmissíveis em direito e juridicamente insuportáveis, pouco importando se representam a falência da empresa ou se não representam. Trata-se de uma questão de princípio e de aplicação das leis, nesta matéria penal.

Quando porém se sabe que a multa foi da ordem de quatro milhões de reais, e que outros contratos foram rescindidos por questão fora daqueles contratos, além da inscrição em dívida ativa e da proibição de contratar com o poder público, então o panorama se torna revoltante.

E não se trata apenas de aplicação retroativa de penalidade, o que era corriqueiro  no estado nazista de Hitler – quando aquele asqueroso e sanguinário ditador dava efeito retroativo á lei penal para prejudicar -, mas de aplicação de pena em uma licitação prejudicando um contrato, ou de vários contratos,  oriundo(s) de  outra(s)  licitação(ões), que até onde consta está(ão)  juridicamente perfeito(s) e vem(êm) sendo plenamente executados(s).

Esta atitude é de arrepiar o direito e a exegese jurídica, quer a geral, quer a penal.

Se não for revertida no plano administrativo, jamais se admite que não seja anulada pelo Poder Judiciário, que neste caso já foi provocado pela informação do ilustre consulente.

Não apenas precisam ser liminarmente suspensas todas as penas – inclusive a incompreensível rescisão de contratos – como no mérito  é imperioso que as ações sejam julgadas inteiramente procedentes para o fim de as anular todas as penalidades, da primeira à última, por grosseiramente aberrantes do ordenamento jurídico pátrio.

 

XI – Neste caso é  juridicamente aterrador saber que inclusive já foi contratada outra empresa pra substituir a consulente, que teve seu contrato rescindido sem a menor causação material ou lógica, muito menos jurídica.

Como se disse ao início, soma-se uma aberração jurídica a outra, encavalando-se diversas violações a regras as mais comezinhas de direito.

É mais do que evidente que os efeitos da liminar que, em nome do direito brasileiro e dos mais sagrados cânones jurídicos, precisa  ser concedida, deve estender seus efeitos para trás no tempo, ex tunc, e abranger  os contratos rescindidos, desfazendo aquela(s) contratação(ões), absolutamente antijurídica(s), de nova(s) empresa(s) em lugar da consulente.

Não existia como não existe motivo nenhum para a rescisão, que foi arbitrária e sem qualquer fundamento uma vez que jamais a lei autoriza esse procedimento – e dificilmente autorizaria  porque simplesmente não tem cabimento.

Não se misturam negócios; não se baralham procedimentos; não se confundem contratos, nem muito menos contratos já firmados, oriundos de ouras licitações, com outras e novas licitações,  em curso ou já concluídas.   São mundos incomunicáveis.

Cada negócio e cada procedimento administrativo é um plexo unitário, autônomo e incomunicável, de atos e de procedimentos, os quais nada, absolutamente nada, têm a ver com outros negócios e outros contratos ou procedimentos. 

Baralhá-los administrativamente seria o mesmo que o Poder Judiciário decidir uma ação pelo que acontece fora dos autos, em outra esfera da vida da parte, não plasmado no processo e desvinculado do seu corpo ...  isso simplesmente não faz sentido, e o direito repele com vigor.

A contratação da substituta sem qualquer sombra de dúvida deve ser anulada – naturalmente pagando-se o contratado pelo que executou – pois que apenas assim o direito será restaurado e reintegrado.

 

 

[1] Publicado em Boletim de Administração Pública Municipal, Fiorilli, out./13, assunto 237; L&C Revista de administração pública e política, ano nº. 182, ago./13, p. 24; Revista Fórum de contratação e gestão pública, ed. Fórum, ano 12, nº 141, p. 61; Revista Síntese Licitações, Contratos e Convênios, out-nov./13, p. 14; Boletim de Licitações e Contratos, Governet, jan/14, p. 12; BLC - Boletim de Licitações e Contratos, NDJ, fev./14, p.139; Revista JAM Jurídica de Administração Pública, Executivo e Legislativo, ago./14 p. 17.