EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 103 E OS SERVIDORES PÚBLICOS (ARTS. 37 A 40) 2ª PARTE

 EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 103 E OS SERVIDORES PÚBLICOS  (ARTS. 37 A 40)

 

Ivan Barbosa Rigolin

(nov/21)

 

Segunda parte

 

XIII – O § 6º é o remate absoluto, quase inacreditável, da inconsequência  jurídica.   Custa mesmo crer. Onde terá andado o reformador da Constituição para   descer a um tão baixo ponto de conhecimento do direito ?  Alterando o correto § 6º anterior, acrescentou uma verdadeira barbaridade que somente desmoraliza a já pouco valorizada Carta brasileira. 

Manteve a parte inicial, que proíbe cumulação de aposentadorias públicas salvo nas hipóteses de exercício ativo licitamente cumulado, algo absolutamente correto,  e a ela acrescentou  ‘aplicando-se outras vedações, regras e condições para a acumulação de benefícios previdenciários estabelecidas no Regime Geral de Previdência Social.’

Pergunta-se o que tem a ver o RGPS, a cargo do INSS, com as aposentadorias concedidas por regimes próprios de previdência. A resposta é – absolutamente nada. Nada tem um regime com outro, nem os benefícios e os critérios de um com os benefícios e os critérios de outro.

Tem-se a impressão de que a Constituição quer extinguir os regimes próprios – que saem caríssimos para os cofres públicos como todos sabem – mas não enxerga como fazê-lo.  Remete então ao impossível, ao inviável, ao ilógico, imaginando que o aplicador detenha uma ciência até então desconhecida. O problema passa a ser seu...

Mandar aplicar algo inaplicável é uma solução própria de jejunos do direito, ignorantes de lógica jurídica e por completo descomprometidos com a técnica mínima que orienta  a exequibilidade das instituições.

Como se poderiam aplicar ‘outras vedações, regras e condições’ relativas a acumulação de aposentadorias por um regime de previdência, o regime geral de previdência social, concebidas para esse regime, a outro que nada tem a ver com ele, seja algum regime próprio de previdência  ?  

Qual a objetividade dessa ordem estapafúrdia ?   Onde a Carta quis chegar ?    Cada agente público então aplica o que quiser do regime geral  ao  regime  próprio ao qual sirva ?   Cada Município aplica o que bem entender ?   Seria a festa do caqui na Constituição ?

Poucos conhecem previdência social no Brasil, e o constituinte não é um deles.   É   profundamente   desalentador.

 

XIV – O § 7º fixa que a pensão por morte, que não será inferior a um salário mínimo, quando constituir a única fonte de renda do beneficiário será concedida na forma da lei local, do ente concessor, sendo que essa lei  ‘tratará de forma diferenciada a hipótese de morte dos servidores de que trata o § 4º-B decorrente de agressão sofrida no exercício ou em razão da função.’

Não poderia ser pior o dispositivo. O constituinte não se entende consigo mesmo. Não cessa de alterar as regras das aposentadorias e das pensões estatutárias, em geral para pior.

Aqui dá a idéia de que a lei local tem amplos poderes, porém não é bem assim. Em primeiro lugar a pensão não pode ultrapassar os vencimentos de que se originou, porque o mantido  § 2º o proíbe.

Em segundo lugar não se entende a absolutamente enigmática  ordem para que a lei local a diferencie morte, que é um gênero, separando a espécie natural da espécie provocada  por agressão sofrida na função.  Onde e como juridicamente essa última morte será diferente da morte natural ?  Pode ser diferente ?  É mais digna, mais meritória, ou de outro modo menos digna, ou menos meritória e menos respeitável?

Não se pode crer que a lei local prejudique a pensão por morte provocada, e por outro lado não se atina com qualquer motivo para que seja mais aquinhoada que a por morte natural, de modo que o leitor fica sem saber a que se refere a ordem, que não poderia ser mais  desarrazoada. Lembra macaco em loja de louça, e ajuda a justificar a pecha de pior do mundo que com frequência se atribui à legislação previdenciária brasileira.

Este pálido escriba, fosse legislador local, não faria a menor idéia de como atender esta esdrúxula regra constitucional, parecendo aberrante tentar distinguir as duas espécies de morte para fim previdenciário, vez que ambas fazem merecem provento integral de pensão.

 

XV – O § 9º mantém a garantia da soma do tempo de serviço federal, estadual e municipal, civil e militar, para fim de aposentadoria. Mantém entretanto  as falas tempo de contribuição e tempo de serviço como se fossem diferentes para efeito previdenciário  - porque não são. 

Quando o trabalho não era contributivo a Carta manda contar esse tempo como se tivesse sido contributivo, daí porque já era tempo de o constituinte parar de tratar os dois tempos de modo separado. Se não contribuía  o segurado não era por má vontade nem por avarice, mas simplesmente porque a lei dele não exigia contribuição. O constituinte cria que dinheiro público cai do céu, e que não teria fim.

E o dispositivo mantém ainda o inacreditável final, trabalho de pateta circense, que aventa a ideia de que o tempo de serviço não contributivo sirva – aparentemente apenas – para disponibilidade.  Então não contaria para aposentadoria ?..

Este dispositivo era, e continua sendo, uma humilhação para a inteligência nacional, sobretudo a jurídica. É inacreditável como a rematada estupidez, um dia infelizmente plasmada em texto jurídico, perpasse as décadas sem que jamais alguém perceba a aberração, e a corrija.

 

XVI – O § 12 mantém o tormento que precisar  ler e aplicar esta quadra previdenciária da Constituição.

Equivale a dizer que se aplicam aos sapatos as regras de confecção de calças ou de    chapéus – porém apenas no que couber !

E fique o aplicador dando tratos à bola para tentar adivinhar, intuir, vislumbrar  ou entrever quais seriam as regras do regime geral de previdência que se aplicam aos regimes próprios, além daquelas já escritas na Constituição...

Então em um Município se aplicariam talvez as regras a, b e c, e em outro apenas a e b, e num terceiro as regras x,y e z ?  Em todos os casos teriam sido extraídas as regras de cartola de mágico, ou democraticamente resolvidas no par ou ímpar.

E o servidor, que trabalhou nos três, para se aposentar poderá eventualmente ver-se compelido a provocar a corte dos direitos humanos de Haia, o Vaticano, a NASA, a OPEP   ou a Organização Mundial de Saúde.  Alguém precisa decidir o que é aplicável do RGPS a cada regime próprio de previdência social...

A técnica do constituinte é desprezível. Se assim é nossa Constituição, imagine alguém a qualidade da nossa legislação !

 

XVII – O § 13, pelo qual o constituinte demonstra continuar ignorando que cargos em comissão não são cargos temporários – simplesmente porque permanecem após a saída dos ocupantes, que neles apenas não desfrutam de estabilidade  - foi ampliado para incluir os detentores de mandatos políticos entre os agentes públicos fora de regimes próprios e dentro do regime geral de previdência, a cargo do INSS.

Por mandatos políticos devem ser inquestionavelmente entendidos os mandatos eletivos, porém já está consolidada a tese de que auxiliares diretos do chefe do Executivo também são políticos (Ministros de Estado, Secretários  de Estado e Secretários Municipais), de modo que a estes últimos, pelo atual andar da carruagem, também se aplica a regra.

Se o político entretanto também é funcionário efetivo mantém-se no regime próprio do seu respectivo ente, como se não se houvera afastado para o mandato.

 

XVIII – Em 1.988 a Constituição nada dizia sobre regime de previdência complementar para os funcionários públicos.

Em 1.998 a EC nº 20 informou que, caso cada ente federado institua o regime complementar, poderá fixar como limite das aposentadorias o teto do regime  geral, do INSS, e nessa hipótese apenas quem voluntariamente aderir ao sistema complementar, mediante o pagamento de nova alíquota de contribuição, fará jus à integralidade. 

Deu-se conta o constituinte, com meio século de atraso, que somente o regime próprio principal, com suas alíquotas reduzidas e instituídas apenas em 1.998, quebraria – estraçalhar-se-ia, pulverizar-se-ia – em pouco tempo.  Mas as autoridades locais, não estando obrigadas a instituir coisa alguma além do regime próprio, jamais pensaram em onerar os servidores com nova alíquota, porque isso lhe tiraria votos nas eleições subsequentes.  Se o ente arrebentasse... bem, isso  seria menos importante que vencer a eleição.

Essa absoluta irresponsabilidade e total leviandade para com os erários teve com esta EC 103, apenas em 2.019, seu fim decretado.

O novo § 14 do art. 40 mandou  os entes federados instituírem, por lei iniciada pelo  Executivo, o regime de previdência complementar para os servidores efetivos, para que pudessem auferir a totalidade dos vencimentos na inatividade, e o limite para o regime próprio ficou o do RGPS, do INSS. A integralidade dos proventos apenas estará assegurada se o servidor aderir ao regime complementar.

Mesmo assim entretanto a adesão do servidor ao regime complementar é facultativa, na forma  do § 16; apenas é de ver que quem não optar terá seus proventos limitados ao teto do INSS. Para quem percebe menos que aquele  teto não existe vantagem em se filiar, mas quem percebe acima é o caso de fazer as contas, e geralmente a adesão é favorável.

Com o regime complementar é certo que a previdência  própria dos efetivos de todo nível terá sobrevida maior do que sem esse regime.  E essa própria sobrevida até o dia de hoje representa uma realidade  como  o voo do besouro: algo cientificamente muito pouco provável, mas que acontece.

 

XIX – Pelo § 15 a previdência complementar, uma vez localmente instituída, oferecerá benefícios sob contribuição definida, o que exclui a contribuição variável, e o ente gestor será uma entidade de fechada de previdência, restrita aos beneficiários, ou aberta, não restrita apenas a eles mas aberta a outros contribuintes.

Essa entidade, sendo aberta ou sendo fechada,  juridicamente poderá ser pública, ou seja criada por algum  ente público, ou particular, de administração privada.

O assunto ainda não foi integralmente deglutido e metabolizado  pelas pessoas públicas, mas é de esperar a sua rápida e necessária familiarização dentro da Administração.

 

XX – O § 19, inspirado no regime geral de previdência,  cuida do pecúlio do servidor que preencha as condições para se aposentar mas permanece em serviço ativo. A lei local pode  estabelecer esse benefício – porque se não o fizer ele simplesmente inexistirá -, assim como critérios para a sua concessão.

O valor máximo do pecúlio será a soma das contribuições efetuadas pelo servidor a partir do momento em que passou a ter direito a aposentar-se, e não se aposentou mas permaneceu trabalhando.

A instituição desse benefício pelo ente local constitui só em si um marco de honestidade institucional e financeira, pois que não existe contribuição previdenciária sem contrapartida ao contribuinte.

Então, se de nada mais servem ao segurado  as contribuições em tempo que ultrapassa o requisito para sua aposentação, então nada mais justo que ou isentar o servidor de contribuir ou, na impossibilidade disto,  devolver-lhe o total das contribuições realizadas nesse período, quando vier a desligar-se por qualquer motivo. Não se cogita, entretanto, em qualquer correção daquelas importâncias, até porque o ente público não é caderneta de poupança ou entidade financeira.

A inexistência do pecúlio aproveitará apenas  ao regime previdenciário local, porque o servidor que poderia estar aposentado, se não contar com o  pecúlio à frente  contribuirá tão só para o regime, não para seu proveito próprio.

Autoridades locais, refleti.

 

XXI – O § 20, reformulando ligeiramente a regra do seu antecessor, proíbe a existência de mais de um regime próprio em cada ente federado, assim como a existência de mais de uma entidade gestora do regime.

O regime local, próprio e único, abrange a Administração direta (Executivo e Legislativo sempre, e também Judiciário, Tribunal de Contas e Ministério Público quando houver),  as autarquias e as fundações públicas locais, de modo igualitário e sem distinções.

Em qualquer caso devem ser observadas as regras da lei complementar federal referida no seguinte § 22.

 

XXII – Revogado o § 21, o § 22, que se destina exclusivamente ao legislador (complementar) federal,  inicia estranhamente ao ‘proibir’ a instituição de novos regimes próprios de previdência social. Ora, pergunta-se: e quanto aos entes que, pouco zelosos, ainda não instituíram seus regimes próprios, ainda  que por incúria ou desídia ?

Mesmo se a causa da omissão for essa, o fato é que todos os entes federados terão de manter regimes próprios  caso tenham servidores estatutários efetivos e/ou seus pensionistas.

Deve-se entender a regra constitucional como sendo: a quem já tem regime próprio é proibido instituir outro(s), porém o ente que, tendo servidores efetivos, ainda não instituiu regime próprio precisa institui-lo inapelavelmente. Só assim fará sentido a sistemática constitucional, vista do alto e não apenas fragmentariamente de um novo parágrafo criado pela EC 103.

Partindo desse pressuposto, segue o parágrafo estabelecendo que a lei complementar federal a que se refere, quando vier a ser promulgada,  dentre outras possíveis fixará diversas regras de organização e funcionamento, a saber, literalmente: I - requisitos para sua extinção e consequente migração para o Regime Geral de Previdência Social; II - modelo de arrecadação, de aplicação e de utilização dos recursos; III - fiscalização pela União e controle externo e social;  IV - definição de equilíbrio financeiro e atuarial; V - condições para instituição do fundo com finalidade previdenciária de que trata o art. 249 e para vinculação a ele dos recursos provenientes de contribuições e dos bens, direitos e ativos de qualquer natureza; VI - mecanismos de equacionamento do deficit atuarial;  VII - estruturação do órgão ou entidade gestora do regime, observados os princípios relacionados com governança, controle interno e transparência; VIII - condições e hipóteses para responsabilização daqueles que desempenhem atribuições relacionadas, direta ou indiretamente, com a gestão do regime;  IX - condições para adesão a consórcio público; X - parâmetros para apuração da base de cálculo e definição de alíquota de contribuições ordinárias e extraordinárias.

São previsões claras e objetivas, que nortearão a LC anunciada; apenas se augura que não demore a sua edição, o que, se ocorrer,  somente fará prejudicar as previdências locais por falta de parâmetros e de informação essencial.