MATRIZ DE RISCOS E DIÁLOGO COMPETITIVO – A PEDRA NA SOPA DAS LICITAÇÕES

MATRIZ  DE  RISCOS  E  DIÁLOGO  COMPETITIVO – A  PEDRA  NA  SOPA DAS LICITAÇÕES

 

Ivan Barbosa Rigolin

(abr/22)

 

 

I – Existe uma conhecida fala popular, originária possivelmente de algum conto ou alguma fábula  ao estilo de Esopo, sobre a pedra na sopa.

Visa expor ao ridículo o esnobismo de alguns, sempre dispostos a prestigiar fórmulas, receitas ou ‘segredos’ em preparações, com vista a se avantajarem ante seus ignaros semelhantes que não os conhecem.  Mas a lição moral consta ao final da própria narrativa, e não fica no ar para futura reflexão.

Trata-se de uma receita culinária, segundo a qual  uma riquíssima iguaria líquida, como uma ambrósia ou uma sopa dos deuses, deve conter os mais requintados ingredientes possíveis, muita vez indicados pelo narrador, porém ao final com a adição de uma pedrinha de quartzo ou algo semelhante, um seixo de rio por exemplo, de formato assim ou assado, perfeitamente higienizada e limpa.

Essa pedrinha deve ser solenemente incluída ao final  da preparação, e o resultado, asseguram,  é simplesmente maravilhoso.

Ocorre que, advertem os mesmos mestres-cucas, se por qualquer infortúnio inexistir à mão a pedrinha quando da finalização da iguaria ...  então que se a conclua mesmo sem ela, porque o resultado será rigorosamente o mesmo.

A expressão  pedra na sopa passou desde então a simbolizar o suprassumo da inutilidade, maliciosamente oferecido aos pretensiosos como importante.

E qual será a relação desta prosaica historieta com a nova lei de licitações, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021 ?

É o que se passa a auscultar.

 

II – A nova e muito polêmica lei de licitações - Lei nº 14.133, de 2.021 -, já em vigor alternativo à Lei nº 8.666/93 até 1º de abril de 2.023 quando passará a ser a única em vigor regedora de licitações, como sói acontecer em leis tão abrangentes contém dispositivos inquestionavelmente elogiáveis ao lado de outros francamente deploráveis. Dificilmente seria diferente num, cada vez mais  extenso e rebarbativo, estatuto nacional das licitações.

Dentre as disposições peripatéticas ou sesquipedais (v. Monteiro Lobato, conto O colocador de pronomes) figuram ao menos duas instituições bem delimitadas: a matriz de riscos e o diálogo competitivo.

Matriz de riscos

A matriz de riscos se rege pelos seguintes artigos:

Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se: (...)

XXVII - matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações: (...)

 

Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados.

§ 1º  A alocação de riscos de que trata o caput deste artigo considerará, em compatibilidade com as obrigações e os encargos atribuídos às partes no contrato, a natureza do risco, o beneficiário das prestações a que se vincula e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo.

§ 2º Os riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras serão preferencialmente transferidos ao contratado.

§ 3º A alocação dos riscos contratuais será quantificada para fins de projeção dos reflexos de seus custos no valor estimado da contratação.

§ 4º A matriz de alocação de riscos definirá o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em relação a eventos supervenientes e deverá ser observada na solução de eventuais pleitos das partes.

§ 5º Sempre que atendidas as condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, será considerado mantido o equilíbrio econômico-financeiro, renunciando as partes aos pedidos de restabelecimento do equilíbrio relacionados aos riscos assumidos, exceto no que se refere:

I - às alterações unilaterais determinadas pela Administração, nas hipóteses do inciso I do caput do art. 124 desta Lei;

II - ao aumento ou à redução, por legislação superveniente, dos tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato.

§ 6º Na alocação de que trata o caput deste artigo, poderão ser adotados métodos e padrões usualmente utilizados por entidades públicas e privadas, e os ministérios e secretarias supervisores dos órgãos e das entidades da Administração Pública poderão definir os parâmetros e o detalhamento dos procedimentos necessários a sua identificação, alocação e quantificação financeira.

 

O primeiro comentário ou observação a fazer, que de um golpe liquida toda e qualquer cogência do art. 103 e da matriz de riscos, é que a previsão de matriz de riscos é facultativa para o ente público licitador.

Querendo ele prever, prevê; não querendo, não prevê, e então na prática será  como se o art. 103 não existisse. Reza o art. 103:

O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, (...)   (Destaque nosso).

Se poderá prever, poderá não prever. Não existe nenhum dispoositivo no art. 103, nem na lei inteira, que obrigue a previsão contratual da matriz de riscos.  Fosse alguma coisa relevante ou essencial, então não estaria a lei no facultativo, e seria impositiva ao ente licitador.

Prosseguindo, o artigo lembra a passagem atribuída ao Barão de Itararé, referente a quando foi tirar carteira de habilitação para dirigir, no Rio de Janeiro nos idos de 40. Perguntado se se sentia capacitado para dirigir, respondeu ao examinador: - Mais ou menos. Vim guiando de Recife.

Materialmente, ter ou não ter a carteira era o que menos importava, como é neste caso prever ou não prever a matriz de risco. A pedra na sopa...

Um demonstrativo da nenhuma importância da matriz se revela em dispositivos como o § 2º, segundo o qual ‘Os riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras serão preferencialmente transferidos ao contratado.’   Então a lei se presta a dar conselhos ? Alguém precisa de uma lei que indique as suas preferências ?..

Seguindo, o  legislador outra vez deu vazão ao seu impulso de autorizar o que sempre foi possível, legal, jurídico e esperável. Quem quiser licitar hoje pela Lei nº 8.666 e prever amtriz de risco... qual o problema ? Qual a ilegalidade, ou qual a irregularidade ? Isso simplesmente sempre foi possível !   O que o legislador imagina que nesta passo está criando, uma vez que sempre existiu ?

O § 1º ensina a ave-maria ao padre. Uma matriz de riscos jamais teria conteúdo diverso do aqui previsto. Quem inventa uma inutilidade sempre cria outras ao redor na tentativa de demonstrar que a inutilidade é útil.  Trabalho quase sempre perdido – e inútil.

Os §§ 3º e 4º rezam o óbvio ululante, e servem tanto quanto um espantalho de duendes. Repete-se o escrito acima.

O § 5º tenta equacionar, planilhar e estabilizar o que seja o equilíbrio econômico-finaneiro dos contratos, com se uma mutabilíssimna realidade econômica como essa pudesse ser fixada e congelada no papel. Irrealístico, fantasioso e ilusório momento da lei, como seria fantasioso o ato que determinasse qual seria a inflação neste ano e no próximo.

Por fim, o § 6º é também de uma bisonhice sesquipedal, e merece o epíteto de acaciano como poucos outros na lei ([1]). Tem a relevância de um horóscopo de jornal de supermercado.

 

III – A matriz de riscos, inobstante toda a execração supra,  pode ter utilidade em contratos que envolvam sérios, pesados e fundamentais riscos financeiros e/ou operacionais de parte a parte.

São exemplos daquilo os contratos de concessão de grandes serviços, ou de obras, ou da combinação de ambos esses objetos, ou ainda os contratos cuja remuneração ao contratado depende do seu desempenho na execução, e no qual contrato estejam envolvidos interesses públicos urgentes e de difícil atendimento.

Em casos assim uma matriz de riscos, ou uma cláusula de alocação de riscos, é plenamente justificável, porém tal matéria não precisaria vir ‘instituída’ pela nova lei de licitações, porque já é e já pode ser praticada a qualquer tempo pela Administração, considerando-se que, obviamente, jamais foi proibida.

Marriz de riscos, ou tenha o rótulo que tiver, pode parecer ideia nova, mas não é.  Não é porque um mecanismo operacional não figura na lei que é proibido para o poder público. A lei nunca pôde nem jamais poderá prever todas as hipóteses de interesses e de mecanismos adequados à satisfação da necessidade pública, como é evidente.

O que não se pode aplaudir é o enorme encompridamento da lei para conter instituições que de fato e na prática já existiam, e que sempre puderam ser exercitadas.

 

Diálogo competitivo

IV – O diálogo competitivo deve observar os seguintes dispositivos:

Art. 6º (...)

XLII - diálogo competitivo: modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos; (...)

Art. 28. São modalidades de licitação: (...)

V - diálogo competitivo.  (...)

 

Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contratações em que a Administração:

I - vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições:

a) inovação tecnológica ou técnica;

b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e

c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração;

II - verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com destaque para os seguintes aspectos:

a) a solução técnica mais adequada;

b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida;

c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato;

III - (VETADO).

§ 1º Na modalidade diálogo competitivo, serão observadas as seguintes disposições:

I - a Administração apresentará, por ocasião da divulgação do edital em sítio eletrônico oficial, suas necessidades e as exigências já definidas e estabelecerá prazo mínimo de 25 (vinte e cinco) dias úteis para manifestação de interesse na participação da licitação;

II - os critérios empregados para pré-seleção dos licitantes deverão ser previstos em edital, e serão admitidos todos os interessados que preencherem os requisitos objetivos estabelecidos;

III - a divulgação de informações de modo discriminatório que possa implicar vantagem para algum licitante será vedada;

IV - a Administração não poderá revelar a outros licitantes as soluções propostas ou as informações sigilosas comunicadas por um licitante sem o seu consentimento;

V - a fase de diálogo poderá ser mantida até que a Administração, em decisão fundamentada, identifique a solução ou as soluções que atendam às suas necessidades;

VI - as reuniões com os licitantes pré-selecionados serão registradas em ata e gravadas mediante utilização de recursos tecnológicos de áudio e vídeo;

VII - o edital poderá prever a realização de fases sucessivas, caso em que cada fase poderá restringir as soluções ou as propostas a serem discutidas;

VIII - a Administração deverá, ao declarar que o diálogo foi concluído, juntar aos autos do processo licitatório os registros e as gravações da fase de diálogo, iniciar a fase competitiva com a divulgação de edital contendo a especificação da solução que atenda às suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa e abrir prazo, não inferior a 60 (sessenta) dias úteis, para todos os licitantes pré-selecionados na forma do inciso II deste parágrafo apresentarem suas propostas, que deverão conter os elementos necessários para a realização do projeto;

IX - a Administração poderá solicitar esclarecimentos ou ajustes às propostas apresentadas, desde que não impliquem discriminação nem distorçam a concorrência entre as propostas;

X - a Administração definirá a proposta vencedora de acordo com critérios divulgados no início da fase competitiva, assegurada a contratação mais vantajosa como resultado;

XI - o diálogo competitivo será conduzido por comissão de contratação composta de pelo menos 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração, admitida a contratação de profissionais para assessoramento técnico da comissão;

XII - (VETADO).

§ 2º Os profissionais contratados para os fins do inciso XI do § 1º deste artigo assinarão termo de confidencialidade e abster-se-ão de atividades que possam configurar conflito de interesses.

 

Agora a questão se apresenta mais patética: diálogo competitivo é algo da mais absurda e rematada despiciência – para não repetir inutilidade, assaz de vezes utilizada neste texto.

Não tem motivo de existir, nem razão nenhuma de ter sido escrita na lei. Lembra a ideia de quem deseja viajar de Brasília a Manaus e corta o caminho  por Porto Alegre... 

A impressão é a de que o legislador quis passar para a história do direito brasileiro como o criador de instituições unicamente originais.

Mais uma vez introduz a pedra na sopa, porque originalidade não significa boa qualidade, e uma lenda urbana legislativa  como esta  no máximo terá o condão de introduzir na cabeça do desavisado aplicador da lei a basófia de que algum diálogo competitivo seja,  um dia na sua vida e no seu ofício, necessária.  Não é e dificilmente será, mas o estrago aos desavisados e aos crédulos pode estar a caminho.

 

V – Escrevemos sobre este art. 32 em nosso livro Lei 14.133/2021 comentada. Uma visão crítica, ed. Forum, Belo Horizonte, 2.022, o seguinte:

Artigo que resume um vasto amontoado de futilidades, retiradas em geral de cartola de mágico e concebidas por alguém que se deve imaginar um prodígio de criatividade,  e que pela subjetividade inteira e absoluta desde já se recomenda que, se possível, jamais seja utilizado  por ente nenhum da Administração pública, porque jamais foi necessário até  o dia de hoje nada semelhante, e porque os negócios públicos jamais se ressentiram da falta de algo semelhante.

Quem tiver a infeliz idéia de tentar por em prática esta bisonha instituição do diálogo competitivo – o que se desaconselha com ênfase máxima – então leia o artigo, e veja se dele consegue extrair algo aproveitável.

Verifique se o objeto pretendido pode enquadrar-se nas als. b e c do inc. I, ou seja se parecer impossível tratar o objeto do modo tradicional, descrevendo-se-o adequadamente no edital. Para nós não existe objeto no universo que não possa ser descrito adequadamente. Desafiamos alguém a nos exibir algum.  

Se o homem foi capaz de chegar a uma tecnologia tão requintada que chegue de início a assustar, foi porque passou por diversos e penosos estágios de desenvolvimento, e nessa hipótese com muitíssimo maior  facilidade terá condição de simplesmente descrever aquelas fases, aquele progresso gradativo e o resultado final, com a indicação de toda a utilidade ou a serventia do que concebeu.  É sempre muito mais árduo inventar que descrever a invenção.

E a Administração, será que outra vez desconhece o de que precisa ?   Já não basta o concurso para sugerir objetos ao ente público que não sabe o que quer ?

Se o ente, entretanto,  tem apenas preguiça, e espera que os licitantes façam o trabalho que cabe apenas à autoridade licitadora – assessorada se necessário por um colégio de cientistas -, então a questão passa a ser  outra, e não à toa  se atribui à preguiça o status de ser o mais grave dos pecados mortais...

Não comentaremos o conteúdo do artigo, convencidos da absoluta perda de tempo que seria ao se considerar que, entendemos e repetimos,  jamais  será necessário utilizar esta artificial, estapafúrdia e patética instituição. O leitor, a autoridade e nós, todos felizmente temos bem mais o que fazer.  Se se dedicar tempo a comentar este artigo  talvez alguém imagine que seja para levá-lo a sério.

São palavras infelizmente amargas, porém o legislador precisa saber o que alguns profissionais pensam sobre o seu trabalho.

 

 

 

[1] O assunto não está na moda, porém eis como a Wikipédia, em síntese lapidar,  define a bisonha personagem: ‘Conselheiro Acácio é uma das personagens da obra O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Esta figura fictícia tornou-se célebre como representação da convencionalidade e mediocridades dos políticos e burocratas portugueses dos finais do século XIX, sendo até à actualidade utilizada para designar a pompa balofa e a postura de pseudo-intelectualidade utilizada por muitas das figuras públicas portuguesas. Deu origem ao termo acaciano, designação utilizada para tais figuras ou para os seus ditos.’