CONCURSO PÚBLICO – CONTRATO DE RISCO COM A EMPRESA REALIZADORA

CONCURSO PÚBLICO – CONTRATO DE RISCO COM A EMPRESA REALIZADORA

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jul/22)

 

I – Este é um tema que acaso tem suscitado mais controvérsias, inquietações  e pruridos de moralismo e de farisaísmo jurídico que o de esperar num país onde as pessoas tenham mais o que fazer: pode a empresa contratada (ou a ser contratada) pelo poder público, para realizar um concurso público para admissão de servidores e preenchimento de cargos ou empregos, receber seus honorários diretamente das inscrições pagas pelos candidatos, sem participação ou ingerência do ente público ?

Não se indaga aqui sobre a licitabilidade da contratação, ou seja se precisa haver licitação nesse caso ou se essa é dispensável;  o assunto  é outro ([1]).

Indaga-se neste momento tão só se o poder público pode contratar uma empresa que execute os serviços de um concurso público sem receber diretamente do contratante por esse trabalho, mas do valor acumulado das inscrições dos candidatos.

 

II – Desde o início não se atina com o motivo da inquietação: se o poder público ainda que por terceiro realiza seu concurso, se aprova os candidatos que o mereçam e se com isso preenche seus cargos ou seus empregos regularmente – sem despender um tostão -, então onde estaria ou remanesceria alguma irregularidade ?

Se a finalidade pública foi alcançada, se o princípio da igualdade entre os candidatos foi observado, se a regra foi previamente anunciada e aceita pela empresa contratada – em licitação ou fora dela -, então que espécie de irregularidade, da natureza que fosse, se poderia vislumbrar nesse procedimento ?

Conhecem-se os contratos de risco que o poder público estadual celebrou na história recente, como os de prospecção de petróleo no interior paulista há cerca de cinquenta anos, cujo resultado não foi o planejado mas em seu lugar descobriram-se reservas de água quente. Que irregularidade jurídica acaso aconteceu ?  Nenhuma.

A nova lei de licitações – a Lei nº 14.133, de 2.021,  art. 22 e art. 103, contempla matriz de alocação de riscos como uma possibilidade para o edital e para o contrato preverem, e tal representa exatamente o fator aleatório a que os contratados podem se submeter, em querendo participar de certames de risco junto ao poder público. Onde alguma irregularidade ?

 

III - Observe-se que o risco financeiro é sempre do contratado, não do poder público; o que de pior pode ocorrer ao poder público é não obter o objeto pretendido, por desinteresse de particulares ou porque o resultado da empreita foi nulo, e com isso negativo ante a expectativa do contratado. É um risco portanto operacional, mas não financeiro.

Trata-se do mesmo frequentíssimo expediente praticado pela advocacia trabalhista, na qual os advogados do reclamante em geral recebem do cliente apenas em caso de êxito na demanda, e não se esta fracassar.

E não é somente a advocacia trabalhista que assim procede, pois que incontáveis causas de advocacia civil e comercial se dão nas mesmas bases de risco – por exemplo as de perseguir devolução de pagamentos tributários indevidos, ou repetição tributária, em cujas causas o advogado somente recebe se triunfar.

O contrato de risco é portanto bastante comum no mundo do direito e dos negócios, não existindo razão jurídica, institucional, lógica nem operacional para que a Administração  pública não os possa praticar como contratante.

 

IV – A doutrina sobre esta questão, estribada na firme jurisprudência superior, é decidida e de absoluta clareza.

Inicia-se com o artigo Cautelas na fixação de quantitativos e preços na contratação de instituições para a organização de concursos públicos. de Domingos Daniel Moutinho da Conceição Filho, que, citando acórdão do e. Tribunal de Contas da União, escreveu:

2. A POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DA SISTEMÁTICA DE “CONTRATOS DE RISCO”.

A forma mais comum que as instituições públicas têm encontrado para a consecução das contratações que objetivam a realização de concursos públicos se dá pela sistemática dos, assim designados, “contratos de risco”. Nesse modelo de contratação, não há repasse de recursos orçamentários pela instituição contratante, na medida em que a remuneração da contratada se dá mediante a transferência dos valores obtidos a partir da inscrição dos candidatos no certame.

O Tribunal de Contas da União já, inclusive, chancelou o uso da referida sistemática, conforme se observa dos termos do Acórdão nº 2149/2006 – 2ª Câmara, cujos excertos pertinentes passamos a reproduzir:

“8. A sistemática acima indicada seria semelhante à de um contrato de risco. A contratada arca com os custos da realização do concurso público, sendo retribuída com a totalidade ou parte do produto da arrecadação das taxas de inscrição dos candidatos. Em princípio, a sistemática atende ao interesse público, haja vista que se alcança a execução do objeto a custo zero. ([2]).

Eis portanto o próprio e. TCU admitindo contrato de risco pelo poder público para obter o trabalho de uma empesa particular, o de realizar concurso público para admissão de servidores.

O pagamento se dá pelo valor acumulado das inscrições dos candidatos, sem qualquer  embaraço, assombro ou prurido de virginal indignação.

Se algumas regras publicísticas devem ser previstas e observadas – o que não se nega nem se questiona, mas não é a preocupação do momento -, isso entretanto jamais conturba nem muito menos impede o que se pretende enfatizar, que é a simples e mera legalidade desse procedimento remuneratório por risco do contratado.

 

V – Gina Copola publicou primoroso artigo sobre o mesmo assunto, denominado Dispensa de licitação para contratação de concurso público e valores pagos diretamente na conta da entidade contratada. Legalidade -, citado anteriormente nesta peça, e referenciado em nota de rodapé -  em que quase encerra a questão.

Transcrevemos por isso um longo excerto daquele artigo, com ampla citação jurisprudencial – como não é de nosso feitio em artigos, porém fazendo-o apenas para enfatizar e deixar consolidada a positiva tese de que pode existir o contrato de risco nessa espécie de contratação pública de serviços a particulares.

Ensinou a autora:

Quanto ao fato de os valores da inscrição serem depositados diretamente na conta da entidade – o que é comum em concursos públicos – também nenhuma ilegalidade pode ser arguida.

Isso porque os valores de inscrição em concurso público não são tributos, porque não se enquadram na definição de taxa contida no art. 145, da Constituição Federal, e, portanto, podem ser depositados diretamente na conta da instituto que realiza o concurso.

 Nesse exato diapasão, já decidiu o e. Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 14565-MG, relator Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, julgado em 27/8/02, com a seguinte ementa:

“EMENTA: (….) 3. Cobrança de taxa de inscrição não caracteriza exação ilegal, uma vez que os concursandos não são contribuintes nem a taxa de inscrição confunde-se com tributo, destinando-se esta apenas a custear os dispêndios da entidade responsável pela organização do concurso.” (Grifamos)

No mesmo sentido é o venerando acórdão do e. STJ, em Recurso em Manado de Segurança nº 13.858/MG, rel. Ministro Hamilton Carvalhido, da 6ª Turma, julgado em 21/08/2003, com a seguinte ementa:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO.  SERVIÇOS NOTARIAIS DE REGISTRO PÚBLICO. NULIDADES. INEXISTÊNCIA. EXCLUSÃO DE SERVENTIAS. VEDAÇÃO À ACUMULAÇÃO.

1. Dispensável a citação de concursandos como litisconsortes necessários, eis que os candidatos, mesmo aprovados, não titularizam direito líquido e certo à nomeação.

2. A participação da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, denotário e registrador indicado pela ANOREG não inclui a fase de elaboração do edital do concurso para ingresso na atividade notarial e de registro, porque constitui ato preparatório (artigo 15 da Lei 8.935/94).

3. Cobrança de taxa de inscrição não caracteriza exação ilegal, uma vez que os concursados não são contribuintes nem a taxa de inscrição confunde-se com tributo, destinando-se esta apenas a custear os dispêndios da entidade responsável pela organização do concurso. (....)

11. Recurso parcialmente provido. (Grifamos)

 

XII - Cite-se ainda no mesmo sentido o r. acórdão do e. STJ, em Embargos de Declaração em Recurso em Mandado de Segurança nº 14.146/MG, relator Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, julgado em 15/04/2003, com a seguinte ementa:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE REEXAME.

1. Os embargos de declaração são cabíveis quando "houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição;" ou "for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal." (artigo 535 do Código de Processo Civil).

2. Não é omissa a decisão que está fundamentada no sentido de que a taxa de inscrição paga em favor da FUMARC destina-se tão-somente a custear os gastos da entidade, responsável pela organização do concurso público, não havendo, por isso, qualquer violação da cláusula 5.1.1 do edital nº 002 à Lei Federal nº 4.320/64.

3. Os embargos de declaração não se prestam ao reexame de matéria já decidida, sendo certo que a pretensão de ver a rediscussão do tema à luz dos argumentos reinvocados, alegadamente relevantes para a solução da quaestio juris, na busca de decisão que lhe seja favorável, apresenta-se manifestamente incabível em sede de embargos declaratórios, cujos limites encontram-se previstos no artigo 535 do Código de Processo Civil.

4. Embargos rejeitados.”

XIII - E ainda no mesmo exato sentido decidiu o e. STJ, em Inquérito nº 152/DF, relator Ministro Garcia Vieira, em sessão da Corte Especial, realizada em 28/09/1995, com a seguinte ementa:

PROCESSUAL PENAL - CRIME PREVISTO NO ARTIGO 89 DA LEI N. 8.666/93 – EXECUÇÃO DE CONCURSOS PÚBLICOS – TAXA DE INSCRIÇÃO – RECURSOS PÚBLICOS -  LICITAÇÃO. O FATO NARRADO NA DENÚNCIA NÃO CONSTITUI O CRIME PREVISTO NO ARTIGO 89 DA LEI N. 8.666/93. NENHUM DINHEIRO PÚBLICO ESTEVE EM JOGO, PORTANTO, DISPENSADA A LICITAÇÃO, CONFORME ARTIGO 24, INCISO II, C/C O ARTIGO 23, INCISO II, ALINEA "A" DA LEI N.8.666/93. ACUSAÇÃO IMPROCEDENTE.”

E consta, ainda, do v. voto condutor:

“Como se vê, a contratada, como pagamento pelos seus serviços, recebeu, diretamente dos candidatos ao concurso, as taxas de inscrição. Não houve nenhum gasto dos recursos públicos.”

Em tal r. acórdão o egrégio STJ ainda decidiu ser absolutamente possível a contratação direta, por dispensa de licitação, de entidade particular para a realização de concurso público.

Vejamos:

“(...) deve ela ser dispensada no caso vertente, onde a empresa contratada recebeu, por seus serviços, apenas a importância correspondente às taxas de inscrição e diretamente dos próprios candidatos aos certames. É a contratada uma empresa altamente especializada em realização de concursos públicos, já realizou vários em quase todo o Brasil”

Na mesma esteira já decidiu o e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na supracitada Apelação nº 0352205-21.2009.8.26.0000 (994.09.352205-9), rel. Desembargador Ricardo Feitosa, da 4ª Câmara de Direito Público, que manteve a veneranda sentença de primeiro grau, que, a seu turno, decidiu que o valor da inscrição em concurso público não se trata de rendas públicas, nem de valores que integram o orçamento municipal, e, portanto, pode ser depositada diretamente na conta da entidade que realiza o concurso público.

A única ilação possível, portanto, é a no sentido de que o valor da inscrição em concurso público pode perfeitamente ser paga diretamente à empresa contratada para a realização do certame, não existindo, de tal sorte, qualquer exigência legal de que tais valores sejam depositados diretamente na conta oficial do ente público envolvido.

 

VI  - Dizer mais, ou insistir ainda mais sobre a questão e a sua necessária conclusão, constituiria um inútil exercício de prolixidade.

O contrato de risco na hipótese de que se cuida – algo que de resto é bastante praticado e correntio na Adminsitração pública brasileira – é um procedimento absolutamente regular, desprovido de qualquer vestígio de antijuridicidade, antieconomicidade ou contrariedade ao interesse público, muito ao oposto. 

Pode ser livremente exercitado pelos entes integrantes da federação, bem como por entidades da administração indireta e por empresas estatais, sem qualquer embargo ou embaraço.

É evidente que ao lado do contrato de risco o edital e o processo administrativo preverão regras de conduta bilateral, e parâmeros de exequibilidade da operação e dos trabalhos.

Tais previsões porém em nada interferem na conclusão de que é rigorosamente legal e regular o contrato de risco para pagamento de empresas contratadas pelo poder público para realizar concursos públicos visando a admissão de servidores.

 

 

[1] Quem tenha interesse por esse tema consulte o excelente artigo de Gina Copola Dispensa de licitação para contratação de concurso público e valores pagos diretamente na conta da entidade contratada. Legalidade., publ. in Boletim de licitações e contratos  ago/20, p. 727, ed. Governet, Curitiba.; Boletim de administração pública municipal, Fiorilli, jun/20, assunto 406.

[2] In Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, nº  4083, 5 set/14..