SUBSTITUIÇÕES EM CONTRATOS: I – DE MARCAS; II – DE ÍNDICES; III – DO CONTRATADO

SUBSTITUIÇÕES EM CONTRATOS: I – DE MARCAS; II – DE ÍNDICES; III – DO CONTRATADO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(ago/22)

 

I – Os três temas, ou subtemas, que compõem o título, todos de interesse do campo de estudo dos contratos administrativos licitados no enfoque das leis de licitações e contratos que se sucedem em nossa legislação, merecem uma consideração inicial importante: o denominador comum que detêm os temas é o de que, referindo-se antes a princípios de direito, não mudaram da Lei nº 8.666/93 para esta Lei nº 14.133/21.

E por essa essencial razão  dificilmente, mesmo, algum dia terão configuração diversa da de ontem e de hoje, uma vez que se existe estabilidade jurídica ela se dá nos, e quanto aos, princípios de direito, se se vive num estado de direito.

Fala-se sobretudo e entes de mais nada do princípio da igualdade entre os licitantes, e quando entra em cena esse - que é de longe o mais importante princípio regedor da licitação – então os modismos, a tendências e as novas ondas que se sucedem também no mundo jurídico ficam relegadas a segundo plano, porque um princípio de direito é sempre o avesso de um modismo.

São realidades tão semelhantes quanto um avião e uma horta de beterrabas. Se pela porta entra em cena um princípio o modismo sai espirrado pela janela – antes mesmo de o ser pela própria evolução dos fatos e do direito, porque se é modismo inevitavelmente o será.

E por isso é que a obra dos autores principiologistas é eterna, enquanto  a dos modistas do direito dura até o fim da semana. Assim como cada biografado tem o biógrafo que merece, também em direito isso se dá, e cada tema tem o comentarista que merece.

Os três subtemas do título realmente não transitariam de concepção nem de configuração com a substituição de uma lei, de normas gerais de licitação e contrato, por outra, como está ocorrendo neste momento no Brasil. Em 1º de abril de 2.023  a substituição estará completada.

 

Substituição de marcas


II - O primeiro deles, substituição de marcas, na Lei nª 8.666/93 como na Lei nº 14.133/21, tem a mesma solução.

Reza a Lei nº 14.133/21:

Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:

I - indicar uma ou mais marcas ou modelos, desde que formalmente justificado, nas seguintes hipóteses:

a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;

b) em decorrência da necessidade de manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração;

c) quando determinada marca ou modelo comercializados por mais de um fornecedor forem os únicos capazes de atender às necessidades do contratante;

d) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação de determinada marca ou determinado modelo aptos a servir apenas como referência;

Pode parecer novidade, mas hoje, e já há muito tempo, ocorre exatamente assim nas compras da Administração.

A marca pode ser indicada quando houver  um motivo determinante, ou essencial, para a preferência. Dentre esses motivos a lei elenca alguns como acima se lê – mas tenha certeza o legislador de que estes  não são os únicos.

Um exemplo, uma figura, uma ilustração vale mais que mil palavras como se afirma, de modo que a indicação de uma marca ou um modelo pode substituir com vantagem o emprego de mil palavras. Quem sabe descrever sabe escrever, mas essa habilidade, num povo que pouco lê algo que preste, parece cada vez mais difícil de localizar.

Indicam-se, assim sendo as marcas e/ou os modelos que atendem a demanda do ente público naquela licitação que realize; sempre que existentes e sempre que viável indiquem-se diversas marcas, de modo a se evitar a pecha de dirigismo pelo edital; se não existirem duas marcas servíveis então seja indicada a única que atende, e que  será ipso facto a única classificável.

 

III – Até esse ponto muito bem, e não é o fato de o comprador ser a Administração pública que altera o mercado das coisas à venda, e a sua disponibilidade nos fornecedores.

Se entretanto acontecer de a marca já comprada num contrato de fornecimento – a única que à ocasião atendia a necessidade – por qualquer  motivo simplesmente desaparece do mercado, então o que fazer ?  Para-se tudo e se cessa aquela atividade estatal, como se isso fosse possível ?

Ou por outro lado, e ainda que a contragosto, se substitui a marca desaparecida por outra, não tão perfeita para os seus fins ?   É claro que é isto último o único que se tem a fazer, uma vez que nem sempre o ente público consegue obter o que entende o melhor para seus propósitos.

Se o objeto é por exemplo  de saúde, como um item hospitalar, então alguém imaginaria – ou alguma lei imaginaria – proibir a substituição desse item essencial ao interesse da população ? As necessidades da população não se compadecem das regras e das alternâncias do mercado.

Se se trata  um componente de equipamento importantíssimo no serviço público, então pela falta da peça ideal de reposição esse equipamento deveria simplesmente ser lançado num depósito e ser esquecido ? Mesmo com a população em desespero a clamar pelo serviço, como no caso do fornecimento de água, energia elétrica ou transporte coletivo ?

É óbvio ululante que não, e com lei, sem lei ou apesar da lei a necessidade pública precisa ser atendida, e algo tem de ser feito para ontem, como se costuma ironizar. Então, ainda no elevado linguajar das gentes,  se não tem tu, vai tu mesmo com relação ao componente faltante que não pode ser reposto com outro idêntico.

O direito – como o casamento – não foi criado para atrapalhar o homem ou a sociedade, mas muito ao oposto para auxiliá-los, ampará-los e dotá-los de algo que de outro modo inexistiria, com isso fazendo mais difícil a existência no planeta.

Se algo deu errado no processo conserte-se-o, mas nunca se imagine simplesmente cessar a  atividade, o serviço, o atendimento, o fornecimento ou a utilidade pública seja qual for.

Então e para rematar, se acaso algum dia alguma lei proibir a substituição de uma peça licitada e contratada por outra nem licitada nem contratada – mas que seja a única existente no mercado, ou então porque, dentre outras e não tão bem quanto a que fora contratada, ainda serve – dessa inimaginável lei somente se pode rir, e trocá-la por outra menos estúpida tão logo seja possível.

O estado de necessidade não admite negociação demorada, nem hesitação, nem formalismos outrora necessários: atira-se primeiro e se pergunta depois. Ou então não se configura nenhum estado de necessidade.

 

Substituição de índices

IV – O segundo subtema é a substituição de índices  econômicos previstos no contrato para basear o reajuste de preços, no momento adequado.

O Brasil deve ser o campeão mundial vitalício dos índices econômicos. Duvida-se que exista outro país com semelhante apego a índices econômicos da mais variada natureza e relevância. 

Até há alguns anos o país parecia descrer da estabilidade dos preços do que quer que fosse, em qualquer contrato ou negociação, e com isso os índices de reajustes se multiplicavam ao infinito.

Com efeito, na fase histórica em que os juros e as correções monetárias chegaram a ser – muito – mais importantes que o principal  ([1]), eram imprescindíveis os índices de atualização do poder aquisitivo da moeda, e eles abundavam. E se nosso país ainda existe é porque essa fase passou.

Em licitação e em contratos de longa duração  ou maior que um ano,  período esse que - observada a redação do § 3º do art. 92 da Lei nº 14.133/21, que admite reajuste até em contratos de menor duração - continua orientando o reajustamento dos contratos de qualquer natureza no Brasil, os índices de reajuste são imprescindíveis para o contratado, e para o equilíbrio econômico-financeiro, digamos inercial - dos pactos celebrados.

Menciona-se equilíbrio inercial porque é o pressuposto como necessário após um ano de execução contratual - ou o período inferior a isso conforme L. 14.133, art. 92, § 3º -, uma vez que inflação sempre existe, por menor que seja em dados períodos da história, e não é justo nem razoável ignorar esse fato nos contratos, e em especial naqueles de longa duração.

 

V - Reajuste é a variação programada para o preço do contrato, prevista necessariamente no contrato, e se dará nas ocasiões e pelos índices também ali previstos, independentemente de pedido do contratado.

Não altera o contrato – como a revisão, cuja dimensão nunca é prevista -  altera, nem demanda termo aditivo mas mera averbação ou anotação no contrato.

Não precisa ser autorizado por autoridade nenhuma, sendo apenas averbável pelo gestor do contrato;  é por isso quase uma variação automática do preço, variando apenas o percentual de reajuste, na forma do índice contratado.

 

VI - Acontece que, sendo a economia um interminável exercício de futurologia - que antes lembra horóscopo de jornal ou previsão de papagaio de realejo -, sem a menor confiabilidade científica e que vive de observar experiências e ocorrências passadas para tentar formular teorias para o futuro, por evidente não pode responder pela estabilidade dos índices que ela própria, economia, inventou, inventa e inventará.

Assim, inventa-se hoje um índice, que amanhã se revela razoável e veraz, enquanto que outro índice se revela inadequado para espelhar a alta de preços, sejam gerais, sejam locais, regionais ou especializados por segmentos da vida econômica.

Existem índices gerais de reajustes, que cobrem enorme espectro de objetos a serem reajustados, os quais  com o tempo, e por algum motivo,   se revelam mais justos que outros específicos ou setoriais.

Por outro lado os índices setoriais existem apenas para tentar melhor equacionar, em favor dos contratados,  a reparação da alta dos custos em determinado setor da economia, porém pode acontecer de essas índices acabarem por distanciar de tal forma o setor que abrangem dos parâmetros da  economia geral que os torne francamente inconvenientes.

E os contratandos, diante de uma situação de impasse com a escolha do índice, ao invés de tentar impor algum índice setorial que supostamente os favoreça dentro do seu ramo, preferirão aderir a índice geral a simplesmente não serem contratados.

É que os diversos setores da economia se sujeitam às mil variáveis do mercado nacional e internacional do que quer que seja, e nem sempre o remédio específico e tecnicamente calculado dá certo, e por isso se o substitui por outro de maior espectro.

 

VII – Quando se está diante de um edital de licitação para um contrato longo o índice ali estará especificado, e quem não tiver interesse que se abstenha de licitar. Não é o que em geral ocorre, pois que a disputa entre por vezes centenas de licitantes costuma ser um guerra campal das mais cruentas. Antes um índice menos bom que nenhum índice e nenhum contrato, é o que generalizadamente se pensa.

 Pode acontecer, entretanto, de o índice licitado e contratado, ou contratado diretamente sem licitação, e seja esse índice setorial ou geral de preços, desatender visivelmente a necessidade econômica do contratado, ou então o necessário comedimento da Administração contratante e pagadora.

Que fazer ?  Sucumbir ao índice demonstradamente inadequado e suportar até o fim o contrato ? Alterar o índice no curso do contrato ? 

Não parece lógico que a lei obrigue as partes a suportarem um contrato que, firmado de boa-fé e sem irregularidade formal nenhuma, em dado momento se revele ruinoso a alguma das partes. O problema em geral se dá de um só lado, porque o que está economicamente bom para uma parte em geral está ruim para a outra. Mas não se deve descartar a improbabilíssima hipótese em que o índice consiga o prodígio de desagradar a ambas as partes.

 

VIII – A Lei nº 14.133/21 reza, no art. 92:

§3º Independentemente do prazo de duração, o contrato deverá conter cláusula que estabeleça o índice de reajustamento de preço, com data-base vinculada à data do orçamento estimado, e poderá ser estabelecido mais de um índice específico ou setorial, em conformidade com a realidade de mercado dos respectivos insumos.

Observa-se que a nova lei é bastante mais elástica e liberal que a Lei nº 8.666/93 quanto a este tema de reajuste.

Em primeiro por admitir reajustes antes de um ano de execução; em segundo por  vincular a data-base do reajuste à data do orçamento da Administração e não a outra data; em terceiro por admitir a previsão de mais de um índice específico ou setorial, e em quarto por mandar que se estabeleça o reajuste, e não simplesmente permitir que se o faça.

Como se disse ao início o princípio regedor da limitação à alteração desses fatores (marcas/modelos e índices de reajuste) não mudou de uma lei para outra, continuando a ser o princípio da igualdade – e nem poderia mudar.

O que a nova lei altera em profundidade é a capacidade de o edital estabelecer cláusulas antes impraticáveis para o contrato, como reajuste antes de um ano; data-base vinculada ao orçamento da Administração e não à data do contrato, e variedade de índices aplicáveis.

Como tudo isso será equacionado na prática é hoje um exercício de futurologia, e só a utilização das novas possibilidades indicará o melhor proveito que delas se poderá extrair.

O certo é que são novos instrumentos e aberturas inéditas para se programarem contratações, sendo de esperar execuções mais flexíveis e similares às do setor privado, livres do mofo, das teias de aranha e dos obsoletos arcaísmos dos contratos públicos – inapropriados aos alérgicos a ácaros – que na essência não se alteram há longas décadas.

 

VIII - A alusão inicial ao princípio da igualdade tem a ver com os dois primeiros temas, substituição de marcas ou modelos, e substituição de índices de reajuste.

Espera-se ter restado claro que apenas excepcionalmente ambos podem ser alterados durante a execução do contrato, sobretudo porque pelo princípio da igualdade não se alteram as regras do contrato após este já ter sido celebrado.

Alterada a regra com o contrato em curso de execução alguém - que deixou de participar do certame exatamente porque com elas não concordava - que, se soubesse que a regra seria alterada, então teria participado.

Pelo princípio da igualdade, assim sendo, não se pode alterar o contrato se ele já está em execução, salvo porém, como se examinou, por motivo incontornável,  como seria por exemplo (I) a extinção do índice de reajuste que fora contratado, ou (II) o desaparecimento da marca ou do modelo contratado. 

Em ambos esses casos alguma solução precisa ser dada para que o contrato continue sendo executado, particularmente se o seu objeto for imprescindível ao serviço público em prol da população.  A marca desaparece, ou o índice é extinto, mas não a necessidade pública, que continua exigindo atendimento pelo poder público.

E a substituição de marca ou de índice econômico em casos assim se impõe, não cabendo invocar nenhuma igualdade como impedimento.

 

Substituição do contratado

IX – Pode soar ou parecer estranho falar-se em substituir o contratado, mas não é.

Um contrato se altera quando muda (I) objeto, (II) prazo ou (III) preço. Mudando outro elemento, que não algum desses, o contrato não se altera.

Se se contrata uma pessoa física para executar, e se ela morre, a regra é a de se poder convidar o segundo colocado na licitação (se houve)  para prosseguir na execução do contrato, que continua exatamente o mesmo.

Se uma estatal  contrata alguém, e a estatal é por acaso extinta no curso do contrato, o ente público a que estava vinculada assume o contrato – que permanece rigorosamente inalterado.

Mudou contratado ou mudou contratante, mas cada contrato não mudou, seguindo igual com outro contratado ou com outro contratante.

Então, por forçada conclusão, pode perfeitamente acontecer  a substituição do contratado – como de resto a da pública contratante -, como aliás ocorre com freqüência, sem que o contrato se altere.

O poder público não está obrigado a substituir o contratado que por algum motivo – material ou jurídico - não possa prosseguir na execução, porém pode fazê-lo, nada no direito o impedindo.

E não se vislumbra, em tese, nenhum interesse em interromper ou dar por findo um contrato regularmente celebrado  que vinha sendo regularmente executado, apenas pelo impedimento do contratado em prosseguir.

 

[1] No último mês do governo Sarney a inflação nacional chegou a 84 %, lembrando de perto a Alemanha do pós-guerra.