FUNDAÇÕES FISCALIZÁVEIS POR TRIBUNAIS DE CONTAS

FUNDAÇÕES FISCALIZÁVEIS POR TRIBUNAIS DE CONTAS

 

Ivan Barbosa Rigolin

(out/22)

 
 

I – Somos ocasionalmente procurados consultivamente por representantes  de fundações privadas, as quais nunca receberam verbas públicas nem são por qualquer meio sustentadas ou mantidas pelo poder público, mas que de um momento para outro passaram a ser fiscalizadas por Tribunais de Contas, o que lhes ensejou verdadeiro estupor – não sem motivo.

Esse avanço tribunalício por sobre entidades que nada têm nem nunca tiveram de públicas na constituição nem na manutenção recorda a chamada guerra da Ucrânia, que antes de guerra verdadeira constitui verdadeira invasão ou massacrante esbulho que a Rússia promove sobre aquele país.

É bem verdade que entre ser fiscalizado por Tribunal de Contas e ser invadido e espezinhado pela Rússia toda pessoa do planeta preferirá a primeira opção, porém o tema merece reflexão.

 

II – A inspiração para este curto estudo foi dada pelo caso de uma fundação de direito privado, sita no interior paulista e voltada a estudos e pesquisas de proveito para a indústria,   instituída por escritura em cartório nos anos 70 e cujo estatuto foi convalidado oficialmente já neste milênio, em operações sempre cercadas de toda legalidade e legitimidade, tal qual de resto ocorreu e ocorre  a milhares de fundações particulares no país.

Falar em fundações particulares seria como se referir chover para baixo ou sair para fora, pleonasmos viciosos; a fundação é um capital destinado a determinado fim, algo absolutamente típico do direito privado tanto quanto uma associação.

Acontece que o estado moderno e o poder público se metem em tudo que existe no país e no mundo, e enfiam seus tentáculos em todas as instituições jurídicas, muita vez transformando o que é privado por excelência em instituições públicas, verdadeiros braços do estado em tudo diametralmente opostos ao mundo particular, e, concessa venia,  muitíssimo piores que aquele até onde a vista alcança.

Passaram então a existir no Brasil, e assim se classificar,  na última metade do século anterior  as fundações públicas, como se foram autarquias, caso da Universidade de São Paulo – USP -,  e das universidades federais e estaduais, também denominadas, todas,  autarquias fundacionais ou até mesmo fundações autárquicas, numa mistura de categorias que dá o que pensar.

Os doutrinadores publicísticos se contorcem em  mil malabarismos para de tempos em tempos encontrar ou criar categorias jurídicas capazes de albergar e emprestar um pouco de solenidade à  intrujice sem fim do estado sobre o mundo do cidadão e da iniciativa privada. O mesmo estado, que  não consegue cuidar nem de sua cozinha e que se põe a tentar administrar o mundo privado.

 

III - A sanha invasionista, intervencionista  e dominadora do estado é tanta que mais recentemente a Lei federal nº 11.107, de 6 de abril de 2005, a lei dos consórcios públicos, chegou à façanha de modificar o Código Civil para nele introduzir a figura da associação pública, quando se sabe que a associação é uma clássica e típica pessoa jurídica de direito privado disciplinada pelo Código Civil e tão particular  quanto uma fábrica de bicicletas ou uma confeitaria.

O estado sempre olhou as associações de longe, como seres estranhos à sua estrutura, mas em 2.005 também sobre elas meteu sua pata. A infelicidade foi máxima.

Diferentemente do lendário rei Midas que transformava em ouro tudo o que tocava, o estado apodrece e decompõe miseravelmente as instituições que toca, lamentando-se mesmo que o estado não possa ser terceirizado.  Quem sabe se assim funcionaria ?

A sede de presença que o estado tem por invadir e tomar conta de todas as instituições que  vislumbre – em geral  com resultado péssimo e deplorável – transtorna o mundo e quase sempre é responsável por uma estagnação  da eficiência e da produtividade de achatar. O socialismo como regime econômico fracassou desde o dia em que alguém  inventou, e por seguro essa será a sua face enquanto existir.

Estado tem sido sinônimo, de resto e com força em nosso país,  de atraso de vida, de ineficiência, de desperdício, de sinecuras e de malbaratamento de dinheiro – muitíssimo infelizmente.

 

IV - Na condição de cem por cento privada e particular, a fundação referida ao início, jamais recebendo verbas públicas, nem municipais, nem estaduais nem federais,  jamais fora fiscalizada por nenhum  Tribunal de Contas, já que nunca se enquadrou entre aqueles entes que constitucional e originariamente se sujeitam ao controle e à fiscalização por Tribunal de Contas.

Com efeito, reza a Constituição Federal:

Art. 71   O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (...)

II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

No plano do Estado de São Paulo, e no mesmo sentido, prescreve a Constituição estadual:

Artigo 33 - O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete: (...)

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, incluídas as fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público estadual, e as contas daqueles que derem perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário;

E ainda para o caso de São Paulo a Lei Complementar,  estadual de São Paulo, nº 709, de 14 de janeiro de 1.993, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado:

Artigo 2º - Ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, nos termos da Constituição Estadual e na forma estabelecida nesta lei, compete: (...)

III - julgar, no âmbito do Estado e dos Municípios, as contas dos gestores e demais responsáveis por bens e valores públicos da administração direta e autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, inclusive fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário.

Os três diplomas têm praticamente a mesma redação, naturalmente  ditada pelo primeiro deles, a Constituição Federal.

Observa-se – e não é de hoje, eis que se passaram mais de três décadas da promulgação da Carta de 1.988 - que compete aos Tribunais de Contas apreciar e julgar contas de administradores públicos, sejam da administração direta, sejam da indireta autárquica ou fundacional, desde que as fundações sejam públicas, ou de direito público.

Sim, porque se não o forem serão fundações particulares, as clássicas e tradicionais instituições de direito privado, regidas pelo direito civil e não por qualquer ramo do direito público,  havendo-se e se constituindo como se foram empresas particulares – apenas com a exceção de que se submetem à curadoria e à fiscalização do Ministério Público, e que não têm fim lucrativo como têm as empresas e certas associações.

 

V - Mas o que não se pode admitir, desde logo se proclama, é que possam ficar sujeitas à fiscalização constitucional e legalmente instituída para os entes, os órgãos e os valores públicos.

Na condição de patrimônio afetado a uma finalidade, uma fundação particular, fiscalizada pelo Ministério Público,  não se confunde com nenhum organismo público.

E se não recebe verbas públicas não tem de dar satisfação nem prestar contas de nada a nenhum órgão público senão o Ministério Público por sua curadoria de fundações, eis que assim é o direito constitucional, civil e administrativo brasileiro.

Regras que impõem obrigações, que limitam direitos, ou as que circunscrevem campos de competência e de atuação de entes públicos ou privados – não cansamos de iterar - não podem ser aplicadas extensivamente, nem sistematicamente, nem analogicamente, nem equitativamente, nem finalisticamente, nem historicamente, mas apenas comportam aplicação literal, estrita, apertada como uma luva, na forma exata do seu texto expresso - essa é a multicentenária lição do direito dos povos civilizados do mundo ocidental.

Estender um campo obrigacional para além da letra expressa da regra é contrariar a própria regra, em afronta, vulneração e desprestígio do direito regedor da matéria, seja a regra qual for e sobre o quê for,  e seja sob a circunstância que for.

Assim, obrigar um ente privado, que não recebe verbas públicas, a prestar contas ao Tribunal de Contas representa  estender para além da Constituição Federal, da Constituição estadual e da lei orgânica do próprio Tribunal de Contas respectivo uma obrigação que as Constituições não impuseram àqueles entes, criando-se obrigações por força de mera interpretação pessoal.

O direito inadmite algo assim, ainda que existam precedentes no direito germânico de há algumas décadas, sob a regência de Adolf  Hitler.

 

VI – Observe-se que os três textos acima enfatizam que as contas das fundações instituídas e/ou mantidas pelo poder público serão fiscalizadas por cada respectivo Tribunal de Contas.

Então, se a fundação aqui referida  não foi instituída pelo poder público, nem recebe verbas públicas e portanto nem é mantida – nem nunca foi – pelo poder público, então a questão: como se a enquadrar entre as fiscalizáveis por algum Tribunal de Contas ?

Se a Constituição, e a lei orgânica, separaram rigidamente fundações instituídas e mantidas pelo poder público de qualquer entidade diversa, como por exemplo as fundações privadas e não mantidas com dinheiro público, então num quadro semelhante  como se poderia admitir confusão entre fundações públicas e  as de direito privado ?  Como aplicar regras instituídas para umas às outras, em tudo juridicamente diversas ?

Como se pode baralhar e lançar na mesma categoria entidades tão absolutamente separadas como fundações privadas e fundações públicas, para o fim de admitir para todas a mesma e indistinta fiscalização por Tribunal de Contas ?   Sem resposta.

Por mais relevante e louvável que seja o trabalho das Cortes de Contas – e ele o é com todo efeito -  nem por isso se pode estender a sua atuação a entes privados que jamais estiveram sob a égide do direito público.

Fosse isso possível, então toda e qualquer fundação brasileira teria de prestar contas ao Tribunal de Contas – rematado absurdo na ótica do direito constitucional, do direito civil, do direito administrativo  e mesmo da pura lógica.

 

VII – Ocorre que a relatada  fundação de direito privado  mantém sólida, permanente e imutável relação institucional de ente fiscalizado, isto sim,  com o Ministério Público do Estado, Curadoria de Fundações, e não com o Tribunal de Contas.

As duas coisas são incompatíveis, até ao ponto de, caso um ente aprove as contas e o outro as rejeite, ficar-se sem se saber qual julgamento prevalece, e qual órgão estatal tem jurídica prevalência, ou exclusividade, sobre  a atuação institucional e as contas da entidade privada.

Qual aprovação, ou qual rejeição,  vale, a do Tribunal de Contas ou a do Ministério Público ?

Esse impasse – que hoje vigora - é juridicamente insustentável, como é fácil denotar na medida em que nenhum ente pode ter dois senhores estatais a fiscalizar suas contas em caráter permanente.

As contas daquela fundação  vêm sendo regularmente aprovadas pelo Ministério Público estadual, e neste caso porventura a entidade firmara com o Ministério Público do Estado um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, para disciplinar e esclarecer seus campos de atuação sem qualquer  possibilidade de baralhamentos ou sobreposição de controles estatais das mesmas contas.

Jamais resistiu à fiscalização e ao controle pelo MPE, como de resto não poderia fazer – sujeitando-se porém apenas ao Ministério Público.

O que  não se compreende é como pode a fundação ter existido e prestado regularmente seus serviços desde – neste caso – a década de 70 sem ter merecido a fiscalização do Tribunal de Contas, e recentemente, ex abrupto e inopinadamente, passasse a ser considerada fiscalizável pelo Tribunal de Contas.  

Então onde esteve o Tribunal de Contas durante as primeiras décadas de existência da fundação ?  Negligenciou ?  Prevaricou ? Omitiu-se no cumprimento de seu dever fiscalizatório ?

Absolutamente não para as três perguntas.

O  Tribunal de Contas esteve a todo aquele tempo no lugar onde deveria estar, cumprindo seu dever de fiscalizar fundações públicas, ou seja as instituídas e/ou mantidas pelo poder público.

Mas não esteve a fiscalizar fundações privadas porque esse não era nem é o seu papel constitucional e institucional.

Surpreende o fato de  haver o Tribunal de Contas de um momento para outro, graças a um relatório da sua fiscalização, e do dia para  a noite sem nenhuma causação jurídica ou lógica, se haver  autoconstituído fiscal de uma entidade particular e independente de custeio público, que como tal não recebe nem se mantém de verbas públicas. 

 

VIII – Sobre essa exata questão julgou o Supremo Tribunal Federal  o MS no 24.427/DF, rel.  Min. Eros Grau (DJ de 24/11/06), como segue:

Agravo regimental em mandado de segurança. Tribunal de Contas da União. Provimento monocrático de mérito. Competência do relator (arts. 205 e 21, § 1o, RISTF). Fundação Banco do Brasil. Entidade de caráter privado. Repasse de recursos de natureza privada a terceiros. Desnecessidade de obediência aos ditames da Administração Pública. Agravo regimental do qual se conhece e ao qual se nega provimento. 1. O art. 205 do Regimento Interno da Suprema Corte autoriza o relator a julgar monocraticamente o mandado de segurança que versar matéria objeto de jurisprudência do Tribunal, bem como a negar seguimento a pedido manifestamente improcedente (arts. 205 e 21, § 1o, ambos do RISTF). Precedentes. 2. Não compete ao TCU adotar procedimento de fiscalização que alcance a Fundação Banco do Brasil quanto aos recursos próprios, de natureza eminentemente privada, repassados por aquela entidade a terceiros, visto que a FBB não integra o rol de entidades obrigadas a prestar contas àquela Corte de Contas, nos termos do art. 71, II, da CF, não lhe cabendo, por via reflexa, subserviência aos preceitos que regem a Administração Pública. Precedentes. 3. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão recorrida. 4. Agravo regimental do qual se conhece e ao qual se nega provimento.  (MS 32703 AgR, rel. Min. Dias Toffoli, julg. 10/4/18, proc. eletr. in DJe-091).

É portanto a mais alta Corte de justiça do país a comprovar a tese de que a letra expressa da Constituição deve ser observada: fundações fiscalizáveis pelos Tribunais de Contas são apenas as instituídas e/ou mantidas pelo Poder Público e não outras, privadas, que nada disso apresentam na sua constituição e na sua manutenção, toda privada.

Repita-se uma vez mais: quando uma regra limita campos de direito e planos  obrigacionais, ou quando separa uma realidade jurídica de outras realidades, deve e somente pode ser aplicada literalmente, sem analogias ou extensividades exegéticas que desfiguram e desnaturam o próprio texto, neste caso  constitucional.

Mas também o texto legal, porque seja qual for o Tribunal de Contas estadual brasileiro seguramente a sua Lei Orgânica repete as regras da Constituição quanto à fiscalizabilidade das fundações. No caso do Estado de São Paulo se trata, como visto ao início, da Lei Complementar estadual n º 709, de 14 de janeiro de 1.993, no art. 2º, inc. III.  Nem poderia ser diferente.

 A rigidez de todos os dispositivos constitucionais e legais transcritos nesta reflexão sobre a incidência da fiscalização tribunalícia sobre fundações públicas não comporta elastérios ou flexibilidades na sua aplicação, que, reitere-se,  só pode ser literal, estrita, apertada, rígida, objetiva e de recorte claríssimo.  Inexistem meandros ou penumbras nestes casos.

Fora de outro modo, e se se pudesse baralhar, estender, sistematizar ou promover analogias em direito semelhante, então não se sabe por que teriam sido escritos os próprios dispositivos.

O direito e a legislação contêm passagens genéricas e matérias elásticas,  mas ao lado destas a lei também prescreve comandos  rígidos e duros, que nenhuma acomodação, maleabilidade ou complacência oferecem ao aplicador.  Como neste caso.

 

IX – Por fim, também não é o circunstancial fato de que a fundação  celebre ocasionais e esporádicos convênios de cooperação com entes públicos que terá o condão de a transformar em entidade fiscalizável por qualquer Tribunal de Contas.  E por mais vultosos e prolongados que sejam aqueles convênios – isso não altera em nada a regra.

Se o poder público  repassou dinheiro a particular, então apenas esse mesmo órgão do poder público   merece a respectiva fiscalização  pelo TC sobre se exigiu a correta prestação de contas pelo particular beneficiário – e ninguém além daquele ente público repassador será fiscalizado.

O ente público que num convênio transfere  dinheiro a particular é que tem a obrigação de fiscalizar a sua correta aplicação pelo particular.

Mas jamais esse trespasse de dinheiro público poderá ter o condão de transformar a fábrica de bicicletas, que o recebeu, num ente a ser fiscalizado pelo Tribunal de Contas.   Isso é de meridiana clareza jurídica e atende a mais primitiva lógica.

Nenhum particular que recebe dinheiro publico num convênio passa a ser público, ou semipúblico, ou institucionalmente vinculado ao ente convenente, de  maneira que passe a merecer fiscalização pelo Tribunal de Contas.     Simplesmente nada parecido com isso  existe em nosso direito, nem poderia existir porque não faz nenhum sentido.

A única vinculação existente em caso assim é a de  o ente recebedor precisar aplicar a verba no programa para a qual foi concedida, segundo um predeterminado plano de aplicação com o qual anuiu o ente recebedor, e nada além disso. Se não anuir, aliás, não verá a cor de um vintém.

Mas não é a celebração de convênios – por mais onerosos, dilatados no tempo ou freqüentes, reitere-se - que irá alterar a natureza jurídica de uma fundação particular, respeitosamente nem aqui nem na República Popular da China.

Ninguém passa a ser público apenas pelo ato de um dia receber dinheiro público para restrita aplicação em determinado objeto.