Artigo
ANÁLISE DO PRODUTO OFERTADO E DO SEU PREÇO (LEI Nº 14.133/21)
ANÁLISE DO PRODUTO OFERTADO E DO SEU PREÇO (LEI Nº 14.133/21)
Ivan Barbosa Rigolin
(nov/22)
I – Suscitam-se com freqüência questões como as do título: pela nova lei de licitações em que momento deve ser examinada a compatibilidade do objeto da proposta com o exigido do edital, e em que momento se examina a aceitabilidade do preço pedido.
E, ainda, se é apenas da proposta vencedora que se examinam esses fatores, ou se de todas as propostas oferecidas.
Fala-se de concorrências e de pregões, eis que a Lei nº 14.133/21 extinguiu tanto a tomada de preços quanto o convite, modalidades essas que vinham sendo sistematicamente apostrofadas e amaldiçoadas pela legião dos moralistas caçadores de bruxas que empesteiam o panorama do direito e da Administração. Esses, humildemente entendemos, é que mereciam ser extintos.
II – A nova lei, como se pode imaginar, não responde taxativamente as questões propostas no título deste artigo, ou de outro modo dúvida nenhuma existiria.
Apenas dá alguns direitos ao ente licitador, e no mais o deixa à vontade para agir conforme a sua conveniência – o que é inteligente na medida em que o operador de licitações não é um incapaz ou um inválido a ser tutelado em todos os seus passos.
Nos arts. 55 a 61 trata indistintamente a concorrência e o pregão, estabelecendo regras que se aplicam ambas as modalidades – a nosso ver também meritoriamente, porque elimina a incompreensível divisão entre o mundo do pregão e o mundo da concorrência, algo que não faz sentido nessa matéria.
Com efeito, se a licitação visa tão somente obter a melhor proposta de negócio pela Administração, então não há motivo por que estabelecer uma muralha de regras e de fundamentos entre as modalidades licitatórias, que, repita-se, perseguem exatamente o mesmo.
III - Sobre este tema - análise de conteúdo e preço das propostas - reza a Lei nº 14.133/21:
Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:
I - contiverem vícios insanáveis;
II - não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III - apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;
IV - não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;
V - apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanável.
§ 1º A verificação da conformidade das propostas poderá ser feita exclusivamente em relação à proposta mais bem classificada.
§ 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo.
§ 3º No caso de obras e serviços de engenharia e arquitetura, para efeito de avaliação da exequibilidade e de sobrepreço, serão considerados o preço global, os quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes, observado o critério de aceitabilidade de preços unitário e global a ser fixado no edital, conforme as especificidades do mercado correspondente.
§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração. (Destaques nossos).
Os trechos em destaque itálico interessam direta e imediatamente ao equacionamento da questão suscitada.
IV – Até este ponto se pode observar que
- é pouco o regramento legal dessa matéria, algo diametralmente oposto ao espírito e à técnica da lei, que é excessivamente prolixa, rebarbativa, amiúde incoerente na sua gordurosa vastidão, e com isso cansativa e desanimadora ao aplicador e ao estudioso. Se como se afirma o menos é mais, então ponto para este art. 59 ([1]);
- os incs. I e II do artigo evidenciam – como não haveria de ser diferente – que propostas (I) viciadas insanavelmente, e propostas (II) desconformes às especificações técnicas do edital, ambas serão sumariamente desclassificadas tão logo abertas pela comissão de contratação, ou pelo agente de contratação.
Nesse momento são simplesmente eliminadas do certame, para elas se encerrando a participação. E o inc. V está diretamente vinculado com o inc. II, parecendo até mesmo desnecessário na lei.
Não pode ser diferente: se o edital pede um automóvel e o proponente oferece um caminhão, então como poderia prosseguir qualquer outro exame dessa proposta absolutamente impertinente ao objeto do certame ?
Trata-se a um só tempo de (I) um vício insanável e (II) de desobediência incontornável às especificações do edital.
Diga o que disser esta nova lei ou qualquer outra lei que se edite no futuro, será sempre assim: não se pode admitir prosseguir no certame uma proposta que não atenda as especificações do edital.
Se o ente pede alhos e obtém proposta de bugalhos é óbvio que essa proposta não pode seguir avante na competição, porque não ofereceu o que se pediu. E em caso assim não interessa verificar o preço, porque o objeto proposto está simplesmente errado;
- insista-se: diga o que disser a lei, a mais primitiva lógica determina que uma análise preliminar, mínima que seja, aponte as propostas pertinentes ao objeto em disputa, e as separe daquelas impertinentes. As primeiras prosseguem, e as demais são desclassificadas e eliminadas.
Trata-se até aqui de análise sumária do objeto proposto e não de seu preço, que fica para verificação posterior. Sem essa inicial análise e separação, e se se admite prosseguir uma proposta de coisa diversa da pedida, então isso não será licitação mas um teatro de comédia.
V – Prosseguindo no art. 59, o inc. III entra, agora, sim, em análise de preço – após naturalmente se descartarem as propostas viciadas ou impertinentes ao objeto.
Dessas que não forem sumariamente desclassificadas o preço será então analisado, e se algum ultrapassar o máximo que o edital admite também será sumariamente desclassificada ([2]).
Agora o oposto, do inc. IV: o preço está aparentemente baixo demais, a tal ponto de instaurar fundada dúvida nos julgadores: é exequível ou inexequível ?
Se tiver como aferir por seus próprios meios e recursos a exequibilidade, então a comissão o fará e pronunciará sua decisão: propostas de preço exequível seguem, e as de preço inexequível são desclassificadas.
Mas essa matéria é bastante delicada e até mesmo temerária: depois que a república chinesa abriu os braços para o capitalismo ficou difícil a qualquer analista ter certeza sobre preços inexequíveis... e extremo cuidado se faz imprescindível para uma tal análise.
Para a hipótese de a comissão não se entender capaz de isoladamente resolver sobre a exequibilidade de alguma proposta, então entra em cena o § 2º do artigo, que admite a realização de diligências para aclarar esse ponto. Não era nem é diferente na Lei nº 8.666/93.
As diligências – que apenas servem para esclarecer a Administração e não para auxiliar licitante a juntar documento que faltou - que dependam de deslocamento a determinado lugar serão públicas, acessíveis, sem reservas nem segredos e oficialmente divulgadas aos licitantes. E terão o objeto específico de verificar a compatibilidade do preço x, ofertado pelo licitante y, com os valores correntes de mercado.
Se a diligência consistir apenas do exame de papéis, revistas, documentos e contatos com o mercado de fornecedores, então não exige essa publicização, porém as fontes utilizadas precisarão ser divulgadas, eis que se trata da aplicação do próprio princípio constitucional da publicidade, que em alguns diplomas jurídicos é tratado sinonimamente com transparência.
O impasse de exequibilidade financeira se dá em caso de obras, serviços e objetos a serem fabricados. Nesses três casos pode ser que o preço proposto seja efetivamente insuficiente para pagar os custos da execução, e muito menos para ensejar algum lucro ao proponente.
É muito frequente, sobretudo nos momentos econômicos deseperados, proponentes mergulharem profundamente na modicidade artificial e irresponsável na tentativa de garantir o contrato – e ai da Administração que morder essa , e cair nessa armadilha imaginando favorecer o seu ente: o barato lhe sairá caro, ou muito caro. O administrador público deve ser econômico, mas não ser burro.
Para atestar a exequibilidade, então, concebeu-se a diligência, necessária sempre que a comissão não tiver meios próprios e suficientes de, sozinha, deliberar fundamentadamente a respeito.
Após a diligência, o preço declarado inexequível desclassifica a respectiva proposta.
VI – Existe no § 4º uma regra, a mais objetiva possível sobre inexequibilidade, a qual em caso de obras e de serviços de engenharia considera inexequíveis as propostas de valor menor que 75% do valor orçado pela Administração.
Se isso é operacionalmente justo e correto serão os engenheiros e os orçamentistas que o dirão, porém juridicamente é excelente a disposição, que simplificou bastante o direito anterior. Seu inspirador foi provavelmente um advogado ...
Por fim, e fora de ordem, reza ainda a lei neste art. 59:
§ 1º A verificação da conformidade das propostas poderá ser feita exclusivamente em relação à proposta mais bem classificada.
Ficou no facultativo a disposição, de modo que o ente licitador se quiser poderá realizar a análise da conformidade apenas da proposta mais bem classificada, e não de todas as não-desclassificadas por impertinência temática (como cotar bugalhos em licitação de alhos).
Se quiser analisar todas as propostas também poderá, assim como qualuer pessoa pode bater continuadamente uma porta na sua cabeça, ou dar marteladas no seu cotovelo – nada disso é proibido.
Alguém duvida de que quem tiver de carregar dez camelos nas costas, ou então apenas um camelo, exercitará a última opção ?
O que resulta claro numa visão abrangente e sistemática é que a nova lei - também esta Lei nº 14.133/21 - ao fim e ao cabo elege como critério de eleição da proposta mais vantajosa a mais barata.
Com efeito a autoridade pública, com carradas de razão ante a ameaça de sofrer ações civis públicas e acusações de improbidade que a farão perder o rumo de casa, praticamente sempre opta pela licitação de menor preço e pela proposta mais barata, e a lei sempre favorece e mesmo induz essa escolha.
As leis e todo o direito público brasileiro ainda não descobriram ou equacionaram eficazmente um critério de julgamento ou de seleção de propostas diferente do menor preço. Tudo converge afinal para isso, por mais escabrosa e miserável que seja a qualidade da porcaria que o agente sabe que está comprando.
E assim vai acontecer, porque compreensivelmente sua saúde vem em primeiro lugar. ([3]).
[1] Complicar textos é assunto tão fácil quanto gastar dinheiro: qualquer néscio energúmeno é um mestre. Sintetizar objetivamente entretanto, como fazem os literatos ingleses, é matéria para os eleitos que dominam a arte. Como o é, de resto, ganhar dinheiro.
[2] E o só ato de propor preço acima do máximo que o edital expressamente estabeleceu em linguagem popular se denomina cara de pau, recomendando-se ao autor que a mantenha com óleo de peroba. Se alguém não se conforma com o preço máximo que o edital imponha, então que impugne o edital - se preciso até com ação judicial -, mas por tudo que é sagrado não proponha preço acima daquele máximo se quer ser tido como licitante sério.
[3] Nada que o agente de contratação usa em sua vestimenta, em seus objetos pessoais, em sua casa, em seu automóvel, em seu celular, em sua alimentação,em seus contratos com prestadores de serviços ou no que quer que seja, foi comprado porque era o produto mais barato de quantos similares existissem,. Sim, porque ele, como qualquer pessoa razoável no planeta, sabe que o barato sai caro, ou muito caro. Mas, por causa das leis que se sucedem, a Administração pública teve, tem e terá sérias dificuldades em tentar escapar a essa sina.