SANÇÕES EM LICITAÇÕES E CONTRATOS – A FEBRE PUNITIVA

SANÇÕES EM LICITAÇÕES E CONTRATOS – A FEBRE PUNITIVA

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jan/23)

 

 

I – Na qualidade de “substantivistas” do direito administrativo e das licitações não nutrimos simpatia nenhuma pelo  penalismo, as punibilidades, as reprimendas e as punições genericamente consideradas, ainda que inegavelmente existam licitantes e fornecedores  merecedores todo o rigor das penas, das punibilidades, das reprimendas e das punições, genérica ou especificamente consideradas, e em grande número. A esses, sem qualquer embargo, valha todo  o rigor da regra penal.

Sem leniência indevida, o que entretanto não desce pela garganta – como o palito daquele prosaico sanduíche – é o verdadeiro culto que se observa pela matéria penal dentro do vasto escopo administrativo das licitações e dos contratos administrativos, seja qual for a lei  do momento.

Observa-se no serviço público com inquietante freqüência uma sanha punitiva desassombrada pelos fiscais e gestores, tão fora de propósito quão inconveniente e que é perceptível por vezes já nos editais, mas sobretudo no comportamento aqueles agentes condutores da licitação e da execução dos contratos, a evocarem a figura do grande inquisidor ou a de fiscais de prisões nazistas ... ([1])

Quem prefere antes cuidar da punição, esse agente, longe de técnica jurídica, muita vez carrega recalques, insatisfações e incorrespondências pessoais e funcionais, todas as que o impulsionam, meio sem ele se dar conta, a disciplinar - antes mesmo da operação licitatória e da execução  contratual  - as regras penais específicas de cada certame.

Agem  como se as só normas da própria lei regedora já não foram bastantes para assegurar o arrependimento do mau particular que visa se locupletar do dinheiro público.

Devem paecer insuficientes ou brandas por demais, mesmo que dentre elas figure a da declaração de inidoneidade para licitar e contratar em todo o país com o poder público – algo freqüentemente capaz de sepultar as empresas dedicadas a contratos públicos.

 

II - Licitação e contrato não devem nem podem ser um tango triste, uma novela trágica ou um pesadelo negocial para nenhuma das partes.

Ao invés de planejar com cuidado máximo a punição do mau licitante ou contratado preferimos sempre, antes daquilo, procurar disciplinar o prestigiamento do particular que tenha  desempenho elogiável e recomendável.  É mais sadio e mais proveitoso que disparar caças às bruxas e vacinação ou prevenção pesada contra potenciais infratores.

Os comerciantes e os prestadores mal inencionados – e os existem muitos, repita-se - merecem toda reprimenda da regra, mas sua simples existência não pode ter condão de contaminar todo o universo dos fornecedores, que na sua vasta maioria são idôneos e honestos de propósito.

Tal qual na teoria os atos administrativos gozam de presunção de idoneidade, imagina-se que emprestar semelhante confiabilidade aos licitantes será mais recomendável que deles desconfiar sempre e a todo tempo como se foram serpentes sempre a ponto de desferir o bote  – como faz aliás a própria legislação de licitações quanto aos agentes públicos, por vezes nitidamente pressupondo contra a sua idoneidade.

Sem prejuízo de cautela e de vigilância quanto aos valores públicos recomenda-se confiar antes de desconfiar,  até porque é difícil conceber que a Administração queira, vise ou pretenda contratar pessoas de quem desconfie.

Será tão perigoso, ou tão ousado  ?

 

III – Ao fim e ao cabo, indaga-se para quê serve  em licitações  a – amiúde exagerada e excessiva – fase da habilitação, senão para se avaliar a idoneidade jurídica, técnica, financeira, trabalhista e fiscal do licitante  ?   Mesmo que atualmente se habilite apenas o vencedor da parte competitiva do certame, continua a habilitação servindo exclusivamente para isso.

Um certame em que mais se cuide das penas do que da execução do objeto parece já começar muito mal, e um contratado de que logo de partida se desconfie não terá muito estímulo para oferecer o melhor que pode.

Sem qualquer ingenuidade, um edital de licitação, e uma minuta de contrato, não se prestam a desfilar negativismos gratuitos, nem a abrigar sombrias previsões como se a catástrofe fosse certa e inevitável.

Qualquer comportamento de desmesurada prevenção  contra possíveis reveses e  aferrado a excesso de cautela possivelmente atrairá o problema, na medida em  que o igual atrai o igual.  Desconfiar das sombras é – sempre - uma péssima política.

 

IV – A matéria penal das leis de licitações sempre enseja dúvidas e incertezas de variada natureza. Nesta transição de leis que se dará em abril de 2.023 existe motivo para ainda mais questionamentos.

Alguns pontos iniciais a abordar:

- estamos em janeiro de 2.023. Até abril de 2.023 o ente licitador escolherá a Lei nº 8.666/93 ou a Lei  nº 14.133/21 para reger a sua licitação. Escolhendo a Lei nº 8.666/93  deve com ela permanecer até a produção do último efeito da última prorrogação do contrato que gerar.

Nessa hipótese a Lei nº 14.133/21 simplesmente inexiste, como se nunca tivesse sido publicada. Nenhuma das suas disposições se aplica ou se transmite à licitação e ao contrato iniciados e portanto regidos pela Lei nº 8.666/93;

- sendo assim, nenhum dispositivo penal da nova lei se aplica a licitação ou a contrato regido pela velha lei, a conhecida Lei nº 8.666/93, nesta data de janeiro de 2.023 ainda vigente. Nada de novo  a nova lei trouxe, até o dia de hoje, para as licitações nem para os contratos regidos pela velha (mas ainda vigente) Lei nº 8.666/93 ([2]);

- ninguém procure, também, nem na lei do pregão presencial (Lei nº 10.520/02) nem  no decreto do pregão eletrônico (Decreto nº 10.024/19), ambos os quais ainda em vigor, matéria penal aplicável às licitações regidas nem pela Lei nº 8.666/93 nem, acaso, pela nova Lei nº 14.133/21;

- é comum se observarem em pregões presenciais e eletrônicos  pretensões punitivas pelo ente contratante baseadas nos arts. 89 a 98 da Lei nº 8.666/93, cumuladas ou combinadas com penas previstas no art. 7º da Lei nº 10.520/02;

- e é também freqüente se observarem pregões eletrônicos no decorrer dos quais, ou já na execução dos respectivos contratos,  o ente licitador tenta aplicar penas da lei de licitações combinadas com as penas do Decreto nº 10.024/19.

 

V – Uma semelhante salada penal equivale a tentar aplicar a alguém as penas do Código Penal, combinadas com as do código napoleônico, cumuladas com as do código de Hamurabi, agravadas pela lei do talião e rematadas por algum outro dispositivo penal perdido nas trevas da história, talvez indígena ou viking.

Tal atitude não faz o menor sentido nem tem o menor cabimento jurídico, histórico, institucional, lógico nem operacional, ao lado da desumanidade implícita.

Mas infelizmente em tempos recentes tem parecido que, em sendo para punir alguém, literalmente vale tudo no âmbito da Administração pública – quando a verdade é bem a inversa!

Com todo efeito, não existe em direito alguma província ou matéria mais rígida, apertada, regrada e disciplinada que a penal, uma vez que se cuida de valores elevadíssimos do cidadão, como a liberdade, a honra, a reputação e a renomada, a credibilidade, tudo o de que o cidadão vive e se sustenta.

Formalmente quanto a isso avulta a imprescindível tipicidade da infração penal, que significa o enquadramento da conduta de alguém n’algum tipo penal preexistente,  especificado e descrito na lei, se se o quiser apenar.  

Sem essa rigorosa tifificação da conduta como criminosa crime nenhum existirá, conforme assegura a Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXIX, e o art. 1º do Código Penal brasileiro.

Tudo isso faz parecer que, além de em decoração e em vestuário, também em enquadramento penal o menos é mais, para desespero dos carrascos travestidos de agentes públicos que assombram a Administração pública, e que auxiliam a sociedade tanto quanto uma broncopneumonia dupla.

 

VI – Não é porque a lei muda após ter sido iniciada uma licitação, ou após ter sido assinado um contrato, que o rumo daquela licitação, ou a execução daquele contrato, poderão sofrer alteração.

A Constituição, art. 5º, inc. XXXVI, abrigando preceito secular da antiga lei de introdução ao Código Civil  (LICC), que atualmente se denomina lei de introdução às normas do direito brasileiro  (LINDB), assegura em cláusula pétrea que a (nova) lei não prejudica ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.

A licitação e o contrato são, pressupostamente e até demonstração em contrário, atos jurídicos perfeitos, se produzidos na forma da lei que os rege.  Estão, assim e nessa ocndição, imunes a alterações legislativas posteriores quer para melhor, quer para pior a qualquer das partes, valendo-lhes a regra regedora originária até a produção do seu útimo efeito.

Não foi por outro motivo que a própria Lei nº 14.133/21 previu que

Art. 190   O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da enrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as reras previstas na legislação revogada.

Não poderia ser diferente, nem seria.

A segurança jurídica e institucional do cidadão depende fundamentalmente de princípios como este, sem os quais um estado não se pode dizer civilizado.

 

VII – Então, nessa conformidade as regras penais enfeixadas na lei que rege o certame e o contrato não se comunicam nem se estendem até atos ou contratos que não foram regidos pela mesma lei.

Ao aplicador não é dado tentar “melhorar” por conta própria e a seu talante o rol penal de nenhuma lei, por mais ódio e raiva que acumule contra os maus e perniciosos  fornecedores.  Devagar com o andor, cavalheiro...

Direito, sobretudo o penal, não é nem pode ser tido como a festa do caqui, a casa da sogra ou uma terra devastada e de ninguém.  Hitler emprestava retroatividade, prejudicial e não benéfica, à lei penal que editava. Mas não é um exemplo a seguir.

E não será demais recordar a antiga fórmula de que o único homem livre é o escravo da lei, porque essa é a garantia de todos contra todos, e segurança  de todos em prol de todos.

E se registre, mais ainda, que também o inferno dos aplicadores da lei está repleto de boas intenções.

 

[1] Uma só ilustração disso afirmado: certa feita em um curso fomos indagados sobre  o cabimento da pena de declaração de inidoneidade a fornecedores de uma pequena cidade interiorana, eis que se recusavam repetidamente a fornecer orçamentos para orientar a formação do orçamento oficial de um ente local. O indagante entendia que aqueles fornecedores abusavam do poder público...

[2] A velha lei nesta data ainda é boa. Consoante asseverava José Vasconcellos, existe muita velha boa.