O ART. 20 DA LEI DE LICITAÇÕES. BENS DE LUXO E COMUNS

O ART. 20 DA LEI DE LICITAÇÕES. BENS DE LUXO E COMUNS

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jan/23)

 

I – A dois meses de a nova lei de licitações, a Lei 14.133, de 1º de abril de 2.021,  expulsar  a Lei nº 8.666/93 do ordenamento jurídico brasileiro pinçou-se este temado título dentre os muitos que podem dar – e deverão dar – o que falar: é o art. 20.

Com efeito, desta nova lei se prenunciam  nervosos ranger de dentes, blasfêmias entrecortadas com lamúrias e imprecações as mais variadas, e perplexidades embasbacantes nas próximas décadas – em grau muito pior do que até hoje ocorre quanto à trintenária e moribunda lei de licitações. Vejamos.

Eis o art. 20 da Lei nº 14.133/21:

Art. 20. Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo.          

§ 1º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.

§ 2º A partir de 180 (cento e oitenta) dias contados da promulgação desta Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição, pela autoridade competente, do regulamento a que se refere o § 1º deste artigo.

II – Este art. 20 já foi regulamentado pelo Executivo federal, no último dia do prazo para tanto dado pela lei. Eis o regulamento:

DECRETO Nº 10.818, DE 27 DE SETEMBRO DE 2021

Regulamenta o disposto no art. 20 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para estabelecer o enquadramento dos bens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da administração pública federal nas categorias de qualidade comum e de luxo.


O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 20 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021,

DECRETA:

Objeto e âmbito de aplicação

Art. 1º  Este Decreto regulamenta o disposto no art. 20 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para estabelecer o enquadramento dos bens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da administração pública federal nas categorias de qualidade comum e de luxo.

Parágrafo único.  Este Decreto aplica-se às contratações realizadas por outros entes federativos com a utilização de recursos da União oriundos de transferências voluntárias.

Definições

Art. 2º  Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

I - bem de luxo - bem de consumo com alta elasticidade-renda da demanda, identificável por meio de características tais como:

a) ostentação;
b) opulência;
c) forte apelo estético; ou
d) requinte;

II - bem de qualidade comum - bem de consumo com baixa ou moderada elasticidade-renda da demanda;

III - bem de consumo - todo material que atenda a, no mínimo, um dos seguintes critérios:

a) durabilidade - em uso normal, perde ou reduz as suas condições de uso, no prazo de dois anos;
b) fragilidade - facilmente quebradiço ou deformável, de modo irrecuperável ou com perda de sua identidade;
c) perecibilidade - sujeito a modificações químicas ou físicas que levam à deterioração ou à perda de suas condições de uso com o decorrer do tempo;
d) incorporabilidade - destinado à incorporação em outro bem, ainda que suas características originais sejam alteradas, de modo que sua retirada acarrete prejuízo à essência do bem principal; ou
e) transformabilidade - adquirido para fins de utilização como matéria-prima ou matéria intermediária para a geração de outro bem; e

IV - elasticidade-renda da demanda - razão entre a variação percentual da quantidade demandada e a variação percentual da renda média.

Classificação de bens

Art. 3º  O ente público considerará no enquadramento do bem como de luxo, conforme conceituado no inciso I do caput do art. 2º:

I - relatividade econômica - variáveis econômicas que incidem sobre o preço do bem, principalmente a facilidade ou a dificuldade logística regional ou local de acesso ao bem; e

II - relatividade temporal - mudança das variáveis mercadológicas do bem ao longo do tempo, em função de aspectos como:

a) evolução tecnológica;
b) tendências sociais;
c) alterações de disponibilidade no mercado; e
d) modificações no processo de suprimento logístico.

Art. 4º  Não será enquadrado como bem de luxo aquele que, mesmo considerado na definição do inciso I do caput do art. 2º:

I - for adquirido a preço equivalente ou inferior ao preço do bem de qualidade comum de mesma natureza; ou

II - tenha as características superiores justificadas em face da estrita atividade do órgão ou da entidade.

Vedação à aquisição de bens de luxo

Art. 5º  É vedada a aquisição de bens de consumo enquadrados como bens de luxo, nos termos do disposto neste Decreto.

Bens de luxo na elaboração do plano de contratação anual

Art. 6º  As unidades de contratação dos órgãos e das entidades, em conjunto com as unidades técnicas, identificarão os bens de consumo de luxo constantes dos documentos de formalização de demandas antes da elaboração do plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 da Lei nº 14.133, de 2021.

Parágrafo único.  Na hipótese de identificação de demandas por bens de consumo de luxo, nos termos do disposto no caput, os documentos de formalização de demandas retornarão aos setores requisitantes para supressão ou substituição dos bens demandados.

Normas complementares

Art. 7º  O Secretário de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia poderá editar normas complementares para a execução do disposto neste Decreto.

Vigência

Art. 8º  Este Decreto entra em vigor em 29 de setembro de 2021.

Brasília, 27 de setembro de 2021; 200º da Independência e 133º da República.

JAIR MESSIAS BOLSONARO

Paulo Guedes

 

III – Vamos aos comentários.

Trata-se de um artigo adequado para nosso país, no qual muitas autoridades, como diversos operadores de licitações, ainda não se deram conta de que o luxo é algo proibido  na Administração, porque não se justifica expender dinheiro público com onerosas vaidades, exibicionismos ou vistosidades, sempre que estes não impliquem as vantagens de uma qualidade tão melhor que compense o dispêndio inicial.

Ao coibir o luxo a lei por certo não tem em mira o caro que sai barato devido à qualidade tão superior que enseja muito maior rendimento e produtividade que o produto comum e encontradiço em toda esquina.

A lei não obriga a Administração – jamais – a adquirir o barato que lhe saia caro ao longo de dado período, por causa da baixa qualidade da aquisição; apenas coíbe o produto de luxo que não seja indispensável em dada circunstância.

 

IV - Existem casos de  luxo imprescindível, entretanto. O Executivo federal tem um Rolls-Royce ofertado ainda na primeira metade do século passado pela falecida rainha Elizabeth II, da Inglaterra, que é até hoje utilizado na cerimônia de posse de todo novo presidente da República.

Se esse inigualável automóvel um dia precisar repor alguma peça não é imaginável que alguém pretenda valer-se de um componente, por exemplo, da marca Lada, ou do de um histórico Gordini Willis recondicionado, por melhor que seja a intenção dos morigerados e austeros responsáveis. O edital da licitação – se couber – haverá de indicar a marca original da peça,  não cabendo aceitá-la de outra marca, porque não serve e porque não presta.

Se acaso o ente público tiver um aparelho  hospitalar com ótica da melhor marca existente, ou uma máquina fotográfica marca Leica por exemplo, e precisar repor alguma peça danificada terá igualmente de exigir as marcas originais para as operações. Todos são artigos do mais alto luxo no mercado, porém nessas hipóteses fazem-se imprescindíveis.

Não se cogita submeter o Rolls presidencial à boa-vontade do ruidoso pela-porco da esquina, verdadeiro matadouro mecânico com suas marretas, seus lança-chamas  e seus ávidos sequazes,  sempre sedentos  por operar milagres… e nem a máquina Leica ou  o equipamento médico de excelência poderá ser  reparado por pardieiro, espelunca ou jebimba equivalente.

É a exceção da exceção que então acontecerá, e o mais alto luxo será a única solução admissível para cada caso porque a ninguém basta apenas ter o melhor produto: é preciso também mantê-lo.

 

V – O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em brevíssimo comentário a este artigo, publicado no site da Corte,  em suma elogia o propósito moralizante do dispositivo, mas reconhece a enorme carga de subjetividade no estabelecimento do que seria necessário ou supérfluo ante as mais diversas realidades dos Poderes deste País, e com efeito essa é a realidade.

Pouco existe de mais subjetivo e incerto que o conceito de bem de luxo, ou de bem supérfluo.

Um automóvel popular, que pode ser o dos sonhos de alguns, para outros cidadãos habituados a veículos caríssimos é tido como a mais insuportável  das vulgaridades ... a decantada e prelibada picanha hoje em dia é artigo de alto luxo para vastos contingentes populacionais, enquanto que classes abastadas ainda nem se devem ter dado conta de que o seu preço quintuplicou.

O que é artigo comum e corriqueiro, em oposição ao que é de luxo, é uma confrontação que jamais será solucionada. Cada cabeça, e cada bolso, profere uma sentença nessa matéria fluida como gasolina de aviação.

E a Administração pública, naturalmente, não escapa a esse conflito de concepções, porque está no mesmo mundo em que vivem os cidadãos e não em outro planeta.

Assim, a aquisição de bens de luxo pela Administração pública  é permitida, sim, desde que objetivamente justificada, como no caso da reposição ao Rolls-Royce ou ao requintado equipamento científico da melhor marca existente.

O que não se admite é o luxo pelo luxo, por ostentação ou exibicionismo perdulário com o dinheiro público, e fora das hipóteses de incontornável necessidade.

 

VI – O decreto regulamentador, acima transcrito, tenta dentro das humanas e razoáveis possibilidades conferir alguma objetividade ao abantesma de que aqui se fala.

O art.2º faz o que pode nesse sentido, e já nos ensina que nosso sofrido Rolex, adquirido com dificuldade ainda durante a guerra do Vietnã,  tem alta elasticidade-renda -  seja lá isso o que for.

E que produtos de menor estatura financeira, estética, funcional, ou então de menor incorporabilidadeperecibilidade ou transformabilidade, são classificados comuns.

O decreto, sem qualquer demérito dos seus autores e desde logo reconhecida a sua seriedade de propósito, é bastante divertido.

Num ambiente congesto e intertravado como é o de toda Lei nº 14.133/21  não deixa de ser um bálsamo para o fígado, eis que como se sabe rir é o melhor remédio.

Mas, repita-se,  não se tenha por depreciativa ou por debochada esta apreciação, eis que definir bem de luxo, ou bem supérfluo, num diploma legal é a décima terceira tarefa de Hércules, algo quase impossível. O objeto – incorpóreo, imaterial, intangível, etéreo -  é liso como um bagre ensaboado, refugindo a toda tentativa de apreensão objetiva, como seria tentar ensacar fumaça.

Aplaudimos portanto tanto o artigo da lei, necessário e moralizante como reconhece o TCE – SP,   quanto o decreto regulamentador, que construiu  meritoriamente numa missão impossível.

 

VII – Corretamente o decreto, já à abertura,  se declara aplicável apenas à Administração federal, o que significa o Executivo, e aplicável também a Estados e Municípios que visem a adquirir bens com recursos federais – o que está correto, porque quem dá o dinheiro estipula as regras para a utilização.

Outros Poderes federais, e os demais entes federados (Estados e Municípios), em face da sua constitucional autonomia administrativa,  não estão obrigados a aderir, podendo fazê-lo (encostar no decreto) se o quiserem, como frequentemente o fazem com relação a inúmeros regulamentos federais.

Aos Municípios que se abalançarem a regulamentar internamente essa matéria o que se recomenda é simplificarem as categorias deste decreto federal em seus decretos locais, parecendo desnecessário que adotem o requinte classificatório do diploma federal – a um só tempo cuidadoso e engraçado.