LEI Nº 14.133/21: I) PLANO DE CONTRATAÇÕES (ART. 12, VII, § 1º); II) IMPEDIMENTOS (ART. 14, IV E V).

LEI Nº 14.133/21: I) PLANO DE CONTRATAÇÕES (ART. 12, VII, § 1º); II) IMPEDIMENTOS (ART. 14, IV E V).

 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/23)

 

 

I – Pinçam-se desta vez dois  temas da nova lei de licitações, constantes do art. 12, VII, § 1º (plano de contratações), e do art. 14, IV e V (alguns impedimentos para participar de licitações).

Procurar assuntos polêmicos ou inquietantes nesta nova Lei nº 14.133/21 é como realizar caçada em jardim zoológico, ou exercer fiscalização tributária em certas galerias de São Paulo, ou ainda, e desta vez trazendo um assunto muitíssimo mais prazenteiro e edificante, localizar belezas e preciosidades na obra de Bach.  

Humildemente então se passa a tão só arranhar a superfície daqueles temas.

 
I) Plano de contratações  (art. 12, VII,  e § 1º)

II – Rezam os dispositivos acima:

Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:  (...)

VII - a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias.      

§ 1º O plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput deste artigo deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial e será observado pelo ente federativo na realização de licitações e na execução dos contratos.

Esta matéria foi regulamentada para o plano  do Executivo federal pelo Decreto nº 10.947, de 25 de janeiro de 2022,e o único propósito de inclusão deste assunto neste artigo é transmitir, sobretudo a Município, que o regulamento se circunscreve apenas à União, e mesmo assim apenas ao Executivo e aos entes a ele vinculados, como as autarquias e as fundações públicas federais. Nem sequer os demais Poderes estão sujeitos ao  decreto, face à sua constitucional e recíproca independência.

Trata-se de uma previsão – inventada por quem ainda deve estar procurando desesperadamente o que pode fazer em Brasília - tão importante quanto combinar meia escura com calça escura, ou embeber o cabelo em gel endurecedor.

Imagine o gentil leitor se o ente público não tiver um planejamento de contratações – algo que nunca teve antes nos 523 anos da história do Brasil: paralisa-se a administração ?

Um plano de contratações para cada exercício deve necessitar em grande medida métodos divinatórios das futuras contratações. E à falta de especificação na lei  a escolha fica a cargo do administrador, seja dentro dos clássicos bola de cristal, cartas, búzios e quejandos,  ou fora deles e ao seu tirocínio. Ou alguém adivinha tudo o que vai precisar adquirir ao longo de cada  ano ?

Revela-se tão despropositado o dispositivo – inc. VII do art. 12 – que apenas faculta ao ente ter o plano de contratações, e remete a regulamento.  Ora, então o regulamento pode dispensar o plano ?  Sem um regulamento o ente pode ou não pode ter plano de contratações ?

Segue o ridículo, porque o § 1º, ao invés de facultar, manda que o plano – se existir, porque isso não é obrigatório pelo inc. VII – seja ‘divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial’. 

Ora, então o ente não  precisa ter o plano,  mas quem tiver a infeliz ideia de instituí-lo estará obrigado a divulgá-lo e mantê-lo à disposição do público! Quem pode o mais que é não ter o plano não pode o menos que é, em tendo o plano,  deixar de divulgá-lo!

De mais a mais, para que raios  alguém precisa divulgar ao público seu plano de contratações, se cada uma delas a seu tempo precisará ser licitada, com toda a publicidade exigida pela lei ?

Conselho a Municípios: fujam dessa fanfarronada. Se fosse algo sério não seria facultativa, mas obrigatória.

 
II) Impedimentos (art. 14, IV e V);

IV - Reza o art. 14 da Lei nº 14.133/21:

Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente: (...)

IV - aquele que mantenha vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão ou entidade contratante ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato, ou que deles seja cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, devendo essa proibição constar expressamente do edital de licitação;

V - empresas controladoras, controladas ou coligadas, nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, concorrendo entre si.

Abstraindo os temas, dentro do artigo, que não guardem relação com aqueles do título desta reflexão, temos que este artigo cuida da matéria do art. 9 da Lei nº 8.666/93.

Resultou muito pior que aquele que lhe deu base, porque o aplicador fica sem saber se a participação indireta é ou não é o disposto no inc. IV do artigo.  E para obter alguma segurança de que é, apele para a lei anterior, que informava que

Considera-se participação indireta, para o disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo (...)  (Lei nº 8.666/93, art. 9º, § 3º)

Então, para entender o que vem a ser a participação indireta em licitação, a que e se refere a Lei nº 14.133/21, art. 14, parece que o aplicador terá de buscar o dispositivo equivalente anterior, o § 3º do art. 9º da Lei nº 8.666/93. 

A relação não está dada expressamente, porém entendemos recomendável explicar a participação indireta do caput pelo disposto no inc. IV do mesmo art. 14, até porque quem está se afogando agarra-se até em uma navalha.

 

V – Quanto ao referido inc. IV, temos aí outra selva dantesca, igualmente escura e tenebrosa, dentro da sanha moralista do legislador federal. Adentremos cuidadosamente essa charneca.

Não pode participar de licitação quem tiver vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão.  Muito ao invés de claros esses conceitos podem ser na prática, e  ocasionalmente, bastante  esquivos ou  subjetivos.

A palavra vínculo não é bem jurídica mas da linguagem corrente das pessoas, e quando aplicada a textos legais precisa ser considerada com prudência e judicioso  fundamento, porque vínculo é apenas ligação, liame,  laço, associação, e nada mais preciso que isso. 

E a proibição de licitar por causa de algum vínculo precisa ser fundamentada com rigor, porque a exclusão afeta direito de cidadãos interessados em contratar com o poder público.

Vínculo técnico deve ser alguma associação ou contrato com ou de  matéria técnica entre alguém, pessoa física ou jurídica, e algum dirigente do ente licitador, que  ‘desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato’, e apenas esse agente, não se estendendo a restrição a outros agentes, distantes da licitação.

Vínculo comercial pode ser uma associação em uma empresa ou entidade comercial, por exemplo entre sócios.  Vínculo econômico pode ser também isto, ou uma associação em um grupo econômico, por exemplo. Ou uma dependência econômica, em outro exemplo.

Vínculo financeiro pode ser tudo isso acima, ou uma relação de empréstimo, se legalmente admissível. Vínculo trabalhista é uma relação de emprego. Vínculo civil pode se dar numa associação civil de qualquer natureza, e não se fala de relações familiares, que vêm a seguir especificadas.

 

VI - A série seguinte de impedimentos, ainda dentro do inc. IV do art. 14,  se refere a  ‘cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau’, entre o agente da licitação e algum candidato a licitante.

Piorou um pouco o panorama. A que ponto de vida em comum se empresta a alguém a qualidade de cônjuge ?  Ou então de companheiro(a) ?  Precisam as pessoas residir no mesmo local ?  E os casais - oficiais - que moram em casas separadas ?  Pode haver mais de um companheiro ?

Resolva-se cada apontamento  que venha a ser suscitado por alguém – algum concorrente que odeia competição - como um caso individual e autônomo, isolado e sem nenhuma dependência de classificações genéricas ou tradicionais, até  porque o mundo nesse terreno jamais foi tão pouco tradicional quanto é hoje.

E para esse canhestro mister todos os métodos de perquirição e de esclarecimentos são  permitidos, a iniciar pela arguição dos interessados.

 Agora os parentes: estão impedidos de participar de licitações o ‘parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau’  do agente licitador.

Entra em cena o Código Civil, arts. 1.591/5, e seu quase indecifrável plano de parentesco, a exigir curso avançado de antropologia e genealogia para decodificação,   e que se for dado como exemplo de relação civil a um estreante de direito que se julgava com pendor ao direito civil talvez o faça  optar por outra profissão. Trata-se de um espantalho jurídico.

Não insistamos nessa matéria esotérica, lembrando apenas que são parentes em linha ascendente em primeiro grau os pais, em segundo rau os avós, em terceiro grau os bisavós e em quarto grau os trisavós (ou tetravós no errado jargão popular).

E são parentes em linha descendente em primeiro grau os filhos, em segundo grau os netos, em terceiro grau os bisnetos e em quarto grau os trinetos (ou tetranetos, quando intervém a equivocada voz do povo. Tanto nesta linha descendente quanto na ascendente o jargão popular não deve ser considerado).

Todos esses acima são parentes consangüíneos, a nosso ver os únicos que deveriam poder ser tidos como parentes.

Além dos consangüíneos são considerados parentes por afinidade, ou afins, os encostados  na pessoa de referência, não consangüíneos e com freqüência máxima espertalhões e aproveitadores indesejabilíssimos, causas freqüentes dos maiores conflitos familiares, e de disputas judiciais sem fim.

São parentes por afinidade os ascendentes imediatos do cônjuge, seus irmãos, aplicando-se a regra a companheiros, de modo que cunhados são parentes por afinidade, mas não concunhados.

Linha colateral de parentesco é algo simplíssimo: sobe-se até se encontrar o tronco comum e dele se desce até a pessoa cujo laço de parentesco se quer determinar. Os irmãos são colaterais de segundo grau porque sobem ao pai e depois descem duas gerações.

Existe algo mais simples ?

Muito bem, além dos ‘vinculados’ referidos no tópico anterior  qualquer ‘parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau’  do agente licitador está proibido de participar de licitação promovida por aquele agente.

À menor dubiedade ou hesitação pelos agentes condutores dos certames – porque às vezes não existe dúvida nenhuma, podendo o próprio licitante se declarar vinculado ou parente do agente - se recomenda que, uma vez suscitado o problema, somente dê sequência à licitação após conclusivo parecer jurídico, que responda objetivamente se no caso o licitante em questão é parente do agente também em questão, para os efeitos do inc. IV do art. 14 da lei de licitações.

Mais: em não sendo conclusivo o parecer recomenda-se a exclusão do interessado, podendo mesmo o ente licitador recomendar o ingresso em juízo, capaz de dar segurança aos licitadores. Muita vez uma ação judicial presta um grande serviço ao poder público, exatamente porque esclarece dubiedades e delimita campos de atuação.

Antes da ação entretanto,  em havendo dificuldade em encontrar advogado que emita o parecer, este escriba formula pedido de uma especial deferência: não o convidem para aquele mister.