OBRA E SERVIÇO DE ENGENHARIA NA LEI Nº 14.133/21

OBRA E SERVIÇO DE ENGENHARIA NA LEI Nº 14.133/21

 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/23)

 

I – Este tema sofreu modificação da Lei nº 8.666/93 para a nova Lei nº 14.133/23, e dificilmente isso deixaria de acontecer numa matéria desta relevância. O legislador não descansou até conseguir enfiar  na lei o que entende por serviço comum de engenharia. Seria um serviço comum na concepção de um legislador vulgar.

Sobra  a impressão de  que os legisladores autores dessa mixórdia um dia tentaram ser engenheiros ou arquitetos, e por qualquer razão não conseguiram.  Se isso é verdade, aquelas vítimas de excruciantes dores na articulação umeroulnar até hoje não se conformaram, e fazem o que podem para reduzir a dignidade da profissão de engenheiro e de arquiteto.  Com a al. a do inc. XXI do art. 6º da Lei nº 14.133/23 deram um grande passo nesse sentido ([1]).

 

II – São os seguintes os dispositivos da Lei nº 14.133/21 que versam sobre este tema:

Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se: (...)

XII - obra: toda atividade estabelecida, por força de lei, como privativa das profissões de arquiteto e engenheiro que implica intervenção no meio ambiente por meio de um conjunto harmônico de ações que, agregadas, formam um todo que inova o espaço físico da natureza ou acarreta alteração substancial das características originais de bem imóvel; (...)

XXI - serviço de engenharia: toda atividade ou conjunto de atividades destinadas a obter determinada utilidade, intelectual ou material, de interesse para a Administração e que, não enquadradas no conceito de obra a que se refere o inciso XII do caput deste artigo, são estabelecidas, por força de lei, como privativas das profissões de arquiteto e engenheiro ou de técnicos especializados, que compreendem:
a) serviço comum de engenharia: todo serviço de engenharia que tem por objeto ações, objetivamente padronizáveis em termos de desempenho e qualidade, de manutenção, de adequação e de adaptação de bens móveis e imóveis, com preservação das características originais dos bens;

b) serviço especial de engenharia: aquele que, por sua alta heterogeneidade ou complexidade, não pode se enquadrar na definição constante da alínea “a” deste inciso;

Imagina-se que os Conselhos profissionais de engenharia e de arquitetura serão eternamente gratos ao autor da Lei nº 14.133/23, porque ela lhes ensinou o que é obra e o que é serviço de engenharia. Não fora a lei, possivelmente nenhum engenheiro, e nenhum arquiteto,  saberia o que é obra ou serviço de engenharia.

Ou talvez imagina o legislador que existe obra real, e obra em sentido jurídico ? Ou  serviço de engenharia prestado por engenheiro para alguém que o contratou, e serviço de engenharia jurídico ?  

Mas o que é pior: está absolutamente errada a definição, ainda que para fim jurídico. Obra não é, nem nunca foi na história da humanidade, nem deverá ser jamais uma atividade. Atividade é serviço,  trabalho, mão-de-obra, operacionalização, esforço laboral, empenho, dedicação, mas nunca, jamais, uma construção como é a obra.

Um prédio é uma atividade ? A casa em que cada pessoa mora porventura pode ser tida como atividade ? Uma estrada é uma atividade ? De onde o legislador tirou essa ideia absolutamente sem sentido ?

Do autor da Lei nº 14.133/23 não se espera maior discernimento do que imaginar que obra seja o que a lei em três linhas defina a partir de 2.023, e não o que o profissional aprende na faculdade  e depois em toda a sua vida.

III - A lei, art. 6º,  reza que para os fins desta lei considera-se obra (...) . Pergunta-se: obra é uma coisa para esta lei, e outra no mundo real e nos domínios da engenharia ? Passa pela cabeça de alguém um desatino semelhante ?  Esse é o resultado de a lei por-se a definir o que qualquer criança sabe há milhares de anos, e que é de domínio doméstico e não do direito.

Não sabe, ainda hoje, o legislador que a lei existe para mudar o direito, e não para ensinar a ave-maria ao padre, nem para inventar a roda, em terrenos que nada têm de jurídico.  

Se inexistisse o art. 6º, então alguma obra seria outra coisa que aquilo descrito no inc. XII ?  E alguma obra poderia ser considerada juridicamente de modo diferente do que é considerada no mundo real e no palco da sua execução ?

 

IV – Data venia, seja como for a petulância da nova lei – em parte devida à Lei nº 8.666/93, art. 6º, inc. I, que ensinou ao mundo ocidental o que vem a ser uma obra -, ao menos a nova lei não consigna o que constituiria uma  outra heresia técnica de definir algo como obra comum de engenharia ...  e felizmente a obra continua  sendo sempre de engenharia, sem distinção ([2]).

Visto isso, é evidente a imensa e insuperável subjetividade do conceito de serviço dito comum de engenharia diante de um serviço  que não se possa denominar comum.

Em que momento um projeto de engenharia deixa de consignar um serviço dito comum para adentrar o domínio de um serviço de outro modo tido como complexo ? 

Onde termina a simplicidade do serviço comum e onde começa a complexidade de um serviço reconhecidamente requintado de engenharia ? São perguntas irrespondíveis.

É de imaginar que os entes representativos das carreiras de engenheiro e de arquiteto em breve expeçam atos normativos e instruções tentando parametrar e equacionar, dentro do possível e do razoável, essa questão dificílima de objetivar.

 

V – E, diga o que disser a lei, em quase todos os casos obra é um acréscimo material à natureza, a qual antes da obra era assim e depois da obra é assim com  um plus, um acréscimo, uma adição.

Diferente é por exemplo demolição ou terraplanagem (tornar a terra plana), que são serviços e diminuem o ambiente natural. Mas se tivermos a terraplenagem, com e, isso significa deixar o terreno pleno, cheio, completo dentro de uma proposta ou um projeto edilício ou ornamental, e com isso pode ser que haja acréscimo material ao meio ambiente, o que caracteriza uma obra.

Isto pode parecer curioso ou casuístico, ou muito sutil por vezes, mas merece reflexão. Sim, até porque é muito freqüente haver confusão entre obra e serviço, o que acarreta diferenças de tratamento e de enquadramento jurídico, institucional e financeiro.  E muita vez a fiscalização o apontará ...

 

VI – Chega-se aos serviços de engenharia.

A inspiração é sempre da Lei nº 8.666, art. 6º, inc. II, que define apenas serviço – algo que é também tão útil quanto  soprar uma verruma quentíssima logo após perfurar a madeira, como no extraordinário conto de Monteiro Lobato concebido para ilustrar o que é uma atividade inútil.  Imagine alguém se a lei de licitações não definisse o que seja serviço ! Possivelmente a Terra travaria  na sua rotação e na sua translação, com grandes congestionamentos no sistema solar  !

 Mas dentro dessa seara de inutilidades absolutas a velha lei de 1.993 não separou os serviços de engenharia, nem muito menos os dividiu entre serviços especiais de engenharia e serviços comuns de engenharia. Menos mau.

Toda essa última matéria é da livre inventividade da Lei nº 14.133/21 – e em momentos assim é se compreende porque os inteligentes e perceptivos asseguram que  o menos é mais.

Com efeito, falar demais, além de indicar insegurança de quem escreve,  implica sempre  perigos, muita vez insuspeitáveis. O legislador tupiniquim entretanto cada vez mais acredita que deve falar até o limite das suas forças, o que sempre excede em muito o limite da paciência do leitor e do aplicador.

Uma lei que discorre por  demais em geral enjoa e indispõe o leitor rapidamente – como namoradas ou vendedores que falam excessivamente: não há quem as suporte, a ambos. 

Quanto à lei o leitor perde o interesse tão logo percebe que muito do que o texto reza jamais será considerado, neste caso nem pela Administração, nem pela fiscalização, nem pelo Ministério Público, nem pelo Judiciário, nem por ninguém que tenha o que fazer.  São leis talhadas para não darem certo.

Muita vez ocorre ainda pior: o leitor não consegue sequer saber o que a lei tenta prescrever, que regra tenta impor, que ordem enuncia, que conceito propõe.  O papel em branco, é certo, aceita tudo, mas não o mundo real nem o aplicador da lei ...   daí  se dizer que no Brasil opõem-se as leis que pegam  àquelas que não pegam, como se foram vacinas contra varíola.  

Sempre que a lei abusa da boa-vontade do aplicador, e sempre que força demasiadamente as categorias, bom futuro não deverá esperar.

Na Lei nº 14.133/21 o legislador perdeu completamente o senso de medida, de proporção, de razoabilidade, e se embrenhou por domínios de carreiras profissionais cujas estruturas e cujos assentamentos nada ou  muito pouco têm de jurídico.

 

VII - Combate-se  aqui com veemência a invenção legislativa do serviço comum de engenharia. Isso na vida real não existe, e se existir não será  lei nenhuma que o dirá, mas a engenharia e os engenheiros. Quem sabe como são os serviços de engenharia é o engenheiro e não o deputado ou o senador que não seja engenheiro. – até porque se for e escreveu o inc. XXI do art. 6º deve ser um mau engenheiro.

E os atos normativos e regulamentares expedidos pelos Conselhos, as associações ou as demais entidades corporativas de engenharia, e de arquitetura, são a única fonte técnica segura e correta para definir o que venha a ser um serviço comum de engenharia – se é que isso é necessário, porque nunca existiu na legislação brasileira e ainda não existe, em março de 2.023.

A lei, se não for disciplinadora da profissão de engenheiro, deve entrar muda e sair calada, e o legislador de licitação não deve esperdiçar a oportunidade de manter-se fora dessa discussão que não é sua.

A lei de licitação e de contrato deve apenas informar como se licita obra e se a contrata, mas não tentar ensinar à engenharia brasileira o que é serviço de engenharia, serviço especial de engenharia e serviço comum de engenharia – supondo que isso exista.

Porém, como foi escrita impele o aplicador, para licitar esse objeto,  a tentar enquadrar algum projeto, ou algum serviço de engenharia, dentro da absoluta subjetividade conceitual que cerca as definições desse inc. XXI do art. 6º, como sendo especial ou como sendo comum – e ai dele se acaso o Tribunal de Contas não concordar !..

Nesse non-sense, então, recomenda-se que os agentes da licitação apenas se abalem àquele  trabalho licitatório se dispuserem de fundamentados pareceres de engenharia, os quais declarem expressamente tratar-se de serviço comum de engenharia, ou de serviço especial de engenharia.

Se o agente da licitação resolver navegar no mar da engenharia, que lhe é estranho na sua condição de agente de licitação, então irá desempenhar o mesmo temerário e injustificável papel do legislador que quis ensinar ao mundo fundamentos de engenharia.

A recomendação acima se formula ainda que porventura o agente da licitação seja engenheiro: isso nesse momento não interessa.

Como agente da licitação o seu papel funcional é apenas o de conduzir a licitação, e nunca o de emitir parecer ou juízo em matéria privativa da engenharia. Sua atribuição não é essa e ele não deve correr esse risco, a qual excede a competência de sua função.

Que as altas potestades do universo protejam os licitadores brasileiros !

 

 

 

 

 

[1] É aproximadamente o que ocorre quanto aos agentes do serviço público que até o dia de hoje não se conformam com o direito legal de os advogados públicos, como qualquer advogado,  receberem honorários de sucumbência.  Se inveja matasse aqueles agentes, que não se conformam com  a lei, então inexistiriam, para grande vantagem do serviço público.

[2] Sendo até mesmo que se reconhece que existem obras francamente simples e descomplicadas dentro do universo inesgotável delas, como é o caso de construção de um muro simples ou de cimentar uma calçada residencial.  Mas ainda bem que a lei não enveredou por esse terreno esquivo.