O HORRENDO ART. 18 DA LEI Nº 14.133/21

O HORRENDO ART. 18 DA LEI Nº 14.133/21

 

Ivan Barbosa Rigolin 

(mar/23)

 

 

I – Motivos para destratar e depreciar a nova lei de licitações não faltam e, bem ao oposto, vicejam em notável abundância, como num safári  em  jardim zoológico. Quase se pode mesmo afirmar que  é árduo encontrar o dispositivo perfeito,  redondo, concatenado e harmonioso com a tradição, o direito circundante e a prática das licitações, e isso  se deve à desmedida abundância de previsões.

Um  crescente problema do legislador de nossa amada pátria é o de não saber a hora de parar de escrever, de um lado aparentando não confiar na força das instituições jurídicas, idealmente singelas e a serem escritas uma só vez – porque a repetição assistemática da mesma ordem apenas enfraquece o comando da lei, e de outro lado querendo inscrever seu nome na história como um notável construtor do direito. Neste caso, quanta ilusão !..

Já se disse que o legislador parece descrer que uma ordem dada uma só vez  seja respeitada, e  desse modo a repisa na esperança de que essa reiteração impressione  o aplicador e, com isso,  por dever de ofício ou por temor do aplicador,  mereça acatamento.

Não pode haver pior ideia dentro da elaboração legislativa  nem atitude mais desgastante à própria eficácia da lei produzida, pois que em dado momento será lícito ao aplicador indagar se um comando escrito apenas uma só vez também precisa ser cumprido ... ([1])

Com todo efeito, a obstinação repetitiva de comandos e de regras dá a nítida impressão de que o legislador não confia na força da lei que escreve. E o mesmo se diga de longos e extenuantes roteiros procedimentais, os quais muito amiúde  reinventam a roda e ensinam ao vigário como rezar a ave-maria.

É  o caso exato deste desanimador art. 18, da Lei nº 14.133, de 2.021, verdadeiro suplício a profissionais racionais e experimentados.

 

II – Reza aquele dispositivo, que abre a Seção I (instrução do processo licitatório) do Capítulo II (da fase preparatória)  da lei:

Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:

I - a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;

II - a definição do objeto para o atendimento da necessidade, por meio de termo de referência, anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo, conforme o caso;

III - a definição das condições de execução e pagamento, das garantias exigidas e ofertadas e das condições de recebimento;

IV - o orçamento estimado, com as composições dos preços utilizados para sua formação;

V - a elaboração do edital de licitação;

VI - a elaboração de minuta de contrato, quando necessária, que constará obrigatoriamente como anexo do edital de licitação;

VII - o regime de fornecimento de bens, de prestação de serviços ou de execução de obras e serviços de engenharia, observados os potenciais de economia de escala;

VIII - a modalidade de licitação, o critério de julgamento, o modo de disputa e a adequação e eficiência da forma de combinação desses parâmetros, para os fins de seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, considerado todo o ciclo de vida do objeto;

IX - a motivação circunstanciada das condições do edital, tais como justificativa de exigências de qualificação técnica, mediante indicação das parcelas de maior relevância técnica ou valor significativo do objeto, e de qualificação econômico-financeira, justificativa dos critérios de pontuação e julgamento das propostas técnicas, nas licitações com julgamento por melhor técnica ou técnica e preço, e justificativa das regras pertinentes à participação de empresas em consórcio;

X - a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual;

XI - a motivação sobre o momento da divulgação do orçamento da licitação, observado o art. 24 desta Lei.


§ 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:

I - descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público;

II - demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual, sempre que elaborado, de modo a indicar o seu alinhamento com o planejamento da Administração;

III - requisitos da contratação;

IV - estimativas das quantidades para a contratação, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, que considerem interdependências com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala;

V - levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;

VI - estimativa do valor da contratação, acompanhada dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, que poderão constar de anexo classificado, se a Administração optar por preservar o seu sigilo até a conclusão da licitação;

VII - descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso;

VIII - justificativas para o parcelamento ou não da contratação;

IX - demonstrativo dos resultados pretendidos em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis;

X - providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual;

XI - contratações correlatas e/ou interdependentes;

XII - descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável;

XIII - posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina.

§ 2º O estudo técnico preliminar deverá conter ao menos os elementos previstos nos incisos I, IV, VI, VIII e XIII do § 1º deste artigo e, quando não contemplar os demais elementos previstos no referido parágrafo, apresentar as devidas justificativas.

§ 3º Em se tratando de estudo técnico preliminar para contratação de obras e serviços comuns de engenharia, se demonstrada a inexistência de prejuízo para a aferição dos padrões de desempenho e qualidade almejados, a especificação do objeto poderá ser realizada apenas em termo de referência ou em projeto básico, dispensada a elaboração de projetos.

 

Tome fôlego o leitor e não entregue os pontos:  o momento é muito ruim, mas seguramente o aplicador da lei já  enfrentou  provações piores  em  sua  vida.

 

III – Dispõe-se a lei a ensinar a quem por vezes prepara e opera licitações há trinta anos como se organiza  um certame licitatório.   Imagine-se que desolação se não o fizesse !..

O comentário  inicial é o seguinte: se toda esta via crucis  for realmente obrigatória o ente público é de esperar que faça  o que estiver ao seu alcance para não realizar a licitação. Não existe pior desestímulo a licitar que rebarbativos roteiros, na maior parte já palmilhados e dominados há ao menos meio século, como o deste art. 18. 

Mas não se intimide o aplicador com a verborragia da lei, porque com este roteiro, sem este roteiro ou apesar deste roteiro os certames precisarão ser levados a cabo. Cumpre  então tentar  simplificar o procedimento.

 

IV – O caput  é uma faca sem lâmina da qual retiraram o cabo. Não diz nada, nem lé com cré. O referido plano de contratações pode não existir, de modo que a ordem optativa cai no vazio. Por outro lado, as leis orçamentárias regem e limitam toda a vida do ente público, não apenas as suas licitações. Alguém na Administração desconhece que fora do orçamento nenhuma despesa tem cabimento ?

O processo preparatório da licitação  deve conter – a teor do artigo e em sendo exequível:

inc. I - informação da necessidade do objeto em questão, com a informação que for possível e razoável, sem quaisquer excessos descritivos;

- inc. II – e a partir deste ponto estas informações devem constar do edital -  definição e descrição do objeto, com o grau de detalhe cabível para cada diferente  espécie. Recorde-se que cada especificação do objeto que  edital fizer precisa ter uma justificativa, uma explicação a ser apresentada em caso de requerida; não antecipadamente, mas sempre que requerida por  autoridade competente, ou pelo cidadão nas hipóteses constitucionais (CF, art. 5º, incs. XXXIII e XXXIV);

- inc. III – condições de execução e de pagamento, garantias exigidas e condições de recebimento, tudo a significar quais exames, testes ou provas  o objeto entregue sofrerá como condição para ser aceito;

- inc. IV – orçamento do ente licitador, que pode ser seco ou fundamentado. O que o ente público precisa sempre manter, enquanto existir o processo,  é a sua fonte de informação para  ter chegado ao valor orçado;

- inc. V – edital da licitação.  É a regra interna do certame, que obriga tanto a Administração quanto  o proponente, e o foco praticamente único de atenção;

- inc. VI – minuta do contrato, que deve constar como anexo do edital. Ainda que seja uma simples nota de empenho deverá constar do edital, porque o licitante precisa saber em que barco está pisando, e também para lhe permitir impugnar o edital que descreva um objeto e preveja contratar outro;

- inc. VII – regime de fornecimento, com prazos, quantidades e toda outra informação importante para a orientação tanto do contratado que entrega quanto do agente público que recebe o objeto;

- inc. VIII – modalidade  da licitação (cf. art. 28); o critério de julgamento (cf. art. 33 e seguintes), e o modo de disputa (cf. art. 56). Quanto às demais previsões de ‘adequação e eficiência’, que talvez o autor saiba o que significam, recomendamos fingir que isso não está escrito, ou, em certos casos em que o ente julga polêmicos e discutíveis os parâmetros escolhidos, então justificá-los como lhe for possível e razoável. Atenção: no processo administrativo preparatório  e nunca no edital, porque edital não se presta a justificar coisa nenhuma. Evidentemente não existe regra objetiva para isto, até porque toda essa eventual justificativa é inteiramente subjetiva;

- inc. IX – outra previsão própria de quem não encontra o que mais fazer em sua vida; seria algo talvez como uma autoanálise introspectiva e dialética da motivação ocupacional do atormentado ente público sob a ótica aristotélica, ou baboseira teatral semelhante.  Se e quando por acaso  o ente entender necessário explicar suas escolhas e seus parâmetros, então que o faça com os meios de que dispuser, acerca das parcelas relevantes do objeto, ou da qualificação exigida dos futuros participantes, ou de critério de pontuação de propostas.

E quando se imagina que o subsequente edital dará ainda mais trabalho à autoridade, além de todo este despropositado circo de  cavalinhos, talvez algum aturdido aplicador da lei se indague se, de fato, vale a pena viver;

- inc. X – análise de riscos, nas raras hipóteses em que esse cálculo e essa projeção é recomendável. É o caso dos contratos de concessão de transporte público, por exemplo, objeto esse sujeito  a intempéries e atropelos de a a z, que atormentam concessionário, concedente e usuários em caráter permanente; mas, repita-se são raros os casos de necessária análise de riscos, e não é porque a lei a previu que será sempre exigível. Uma gigantesca compra de papel sulfite, ou um contrato de serviço de limpeza, ou uma obra de casas populares, nada disso demanda análise de riscos;

- inc. XI – motivação sobre o momento da divulgação do orçamento: inciso esotérico, que recorda terapia de autoanálise retrospectiva.  Deveria integrar manuais de alta magia, onde talvez fizesse algum sentido. Recomendamos, sem exceção à vista, ignorá-lo solenemente, na sua condição de conjunto juridicamente vazio,  ou de indisfarçável fanfarronada legislativa.

 

V – O tormentoso § 1º segue na mesma toada. Fruto de sadismo legiferante, elenca em seus treze incisos os conteúdos do estudo técnico preliminar a que se refere o inc. I do caput.

Tanto mais patético então se torna, quando se sabe que o próprio estudo é dispensável e prescindível, o que ocorre sempre que o ente licitador já tenha equacionado e diante de seus olhos todo o quadro da sua necessidade, ou de outro modo quando o objeto é tão simples que só em si inexige estudos prévios. Em caso de o ente licitador já ter projeto básico ou executivo, então onde caberia um estudo técnico preliminar ?

E quando acaso o  ente entende necessário aquele estudo, ao deparar com o que a lei pretende exigir que contenha logo deve mudar de ideia, e dispensar o estudo.

O estudo não é obrigatório, porém se a autoridade quiser elaborá-lo deverá seguir rigoroso roteiro...  e assim quem pode o mais, que é não ter estudo prévio, não pode o menos, que é escolher o seu conteúdo.

Duvida-se que na imensa maioria  das situações usuais e correntes da Administração  os órgãos de fiscalização e de controle exijam dos entes públicos a apresentação daquele estudo prévio. É o perfunctório do perfunctório, ou a perfumaria mais exibicionista que alguém em má hora conceba para a a vida negocial da Administração pública.

Se o objeto é de tal dificuldade, complexidade, risco ou ineditismo capaz de fazer periclitar a iniciativa e o resultado, então a lei nem sequer precisaria mandar elaborar estudos preliminares  porque o ente público já o faz desde sempre, há longas décadas,  e o faz simplesmente porque sabe seu trabalho e  conhece sua responsabilidade, e não porque lei alguma o exigiu.

Deixa-se por essa razão de minuciar cada exigência – ou cada coisa que o valha – dos 13 (treze) incisos do § 1º, quase sempre por completo inútil como é o próprio parágrafo. Não seria um trabalho racional, e poderia dar a falsa impressão de que o dispositivo tem alguma importância no ordenamento jurídico brasileiro.

 

VI – Encerram este tenebroso e acabrunhante art. 18 os seus §§ 2º e 3º.

Num quadro tal, os dois parágrafos finais não seriam diferentes. O § 2º dispensa –  fundamentadamente - da apresentação no estudo preliminar da maioria dos requisitos constantes dos incisos.  Ora, se eram dispensáveis, então por quê foram previstos, e com ar de compulsórios  ?  Uma mendicância jurídica e lógica se sucede à outra.

O § 3º, felizmente o último desta infelicidade toda,  dispensa o estudo preliminar em obras e serviços de engenharia se demonstrada a ‘inexistência de prejuízo na aferição dos padrões de desempenho’ – e outra vez se afirma: seja lá isso o diabo que for.

É tão tortuoso o raciocínio, e tão artificial a preocupação, e no que tem de compreensível tão óbvia a conclusão, que se torna quase constrangedor o tempo perdido do aplicador apenas para ler o texto  até este ponto.

Artigo 18 da Lei nº 14.133: o legislador prestou um tremendo desserviço ao direito brasileiro ao  redigir este amontoado de inutilidades bisonhas e gratuitas, com a feição de obrigação ao preparador de licitações.

E como pelo dedo se conhece o gigante este art. 18  acaba constituindo  uma eloquente amostra  da qualidade  da lei como um todo, lamentavelmente abaixo da crítica mais complacente.

Potestades celestiais !    Resguardai o licitador brasileiro !

 

 

 

 

[1] Tal qual naquele narrado episódio em que um juiz do interior paulista, lendo a peça oferecida por um advogado que grifava grande parte das palavras, lhe indagou se o que não estava grifado também era para ser lido.