Artigo
SEGURANÇA JURÍDICA – APOSENTADORIA
SEGURANÇA JURÍDICA – APOSENTADORIA
Ivan Barbosa Rigolin
(abr/23)
I - O mundo do direito, e a Administração pública brasileira, foram brindados por uma recente decisão do e. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, que merece alusão específica.
Trata-se da deliberação em um processo de registro de uma aposentadoria concedida em 2.007 mas que apenas foi comunicada ao Tribunal em 2.021.
Ocorreram algumas reconhecidas irregularidades na admissão e na evolução funcional do servidor respectivo, porém aquilo ocorreu havia mais de meio século. A aposentadoria foi fruída desde 2.007 até o dia de hoje, e o servidor tem 78 anos, achando-se mais do que habituado a recebê-la, e dela evidentemente necessitando, como seus familiares.
Não se deveu a ele, servidor, entretanto, a falta de comunicação da sua aposentadoria ao TCE, porque uma vez aposentado não mais poderia exercer essa função, de servidor ativo.
II - Por outro lado e antes de prosseguir, não se compreende como fiscalizações anuais do Tribunal deixaram de detectar aquela aposentadoria até 2.018, até porque se a detectaram em 2.018 foi porque essa informação estava e sempre esteve acessível, como não poderia ter sido diferente.
Se é assim, então pode ocorrer de ao invés de 14 anos o Tribunal não seja informado de uma aposentadoria por 40 anos. Quererá isso então dizer que a aposentadoria não aconteceu ? Que é irregular ?
Então uma aposentadoria somente passa a existir quando é comunicada ao Tribunal, e por ele registrada ?
Antes disso, mesmo que 30 ou 40 anos se tenham passado da concessão e do início da fruição, ela porventura não aconteceu ? Deixou de ser uma ato jurídico perfeito ? Ou, de perfeito que era, se acaso não for registrado deixa de ser perfeito, tornando-se imperfeito ?..
Tal não faz sentido. Algo está errado nessa sistemática, respeitante a este delicadíssimo tema da aposentadoria de servidores públicos, que é sempre por eles calculada, planejada e aguardada com justa ansiedade, e que lhes dará novos parâmetros e novo ritmo à vida
III - Imagina-se que o Tribunal deveria ao menos ter prazo legal para, uma vez comunicado pelo órgão de origem, examinar dentro daquele prazo se a aposentadoria está ou não correta, indicando os fundamentos de qualquer decisão.
Estando correta, basta ao Tribunal registrá-la e o comunicar à origem, para que o servidor saia definitivamente assegurado para a inatividade.
Não preenchendo algum requisito constitucional ou legal, então o registro desde logo é negado, e a origem disso é comunicada para todos os efeitos junto ao servidor. Nesse caso o Tribunal estaria em outras palavras negando autorização para que a origem aposentasse o seu servidor.
Enquanto não registrada – no breve prazo legal que precisaria existir - humildemente entendemos que não poderia ser concedida pelo ente de origem.
Ou, de outro modo e persistindo o modelo atual que permite ocorrências como esta de que se trata e que, data venia, não faz o menor sentido institucional e jurídico, e contraria todas as regras de eficiência e de racionalidade constitucionalmente protegidas, a aposentadoria simplesmente não poderia ser deferida pelo ente de origem.
Uma tal modificação das regras, pela qual a aposentadoria somente seria concedida após a homologação pelo Tribunal de Contas – e repetimos: em prazo razoável ao aposentando – evitaria pendências que satualmente se protraem demasiadamente no tempo, e que podem redundar em situações, como esta presente, no mínimo patéticas.
IV – Alguém dirá, em oposição a esta ideia: a aposentadoria é um ato da alçada exclusiva do ente de origem, não cabendo ao Tribunal interferir na sua concessão, se os requisitos constitucionais estão preenchidos.
E a esse perguntamos: e a negativa de registro, não significa exatamente isso mesmo – desautorização para o desligamento definitivo ?
Mandar um servidor aposentado há mais de uma década voltar ao serviço ativo – se é que sua idade ainda o permite -, isso é lógico, raoável ou sensato ?
Cabe imaginar um ato definitivo condicionado ?..
Se o Tribunal tem o poder de declarar inválida uma aposentadoria que o ente de origem concedeu, então por que não inverter a ordem das coisas, de modo que somente o ente possa desligar o servidor após conferida a adequação e a suficiência da sua situação previdenciária pelo Tribunal ?
Tal, porgunta-se, não seria mais racional e lógico ? Ou alguém imagina que uma aposentadoria concedida há quinze anos possa hoje ser razoavelmente contestada pelo Tribunal ?
V – Esse é o sumário histórico e o resumidíssimo comentário do caso em questão, cujas especificações e identificações são o que menos interessa para o propósito desta, igualmente breve, reflexão. Interessa focar aqui, isto sim, o fundamento da decisão.
São excertos do excelente voto do ilustre Auditor Antônio Carlos dos Santos, proferido em 4 de abril de 2.023, que se fundamentou em parte num anterior voto condutor de lavra do venerando Conselheiro Renato Martins Costa, de 2.017, os seguintes:
Decisão
Aprecia-se, nesta oportunidade, a concessão de aposentadoria ao ex-servidor (...) no exercício de 2007, (...)
A aposentadoria em análise só veio a ser informada a este TCESP, através do sistema existente para esse fim, após detecção quando da fiscalização ordinária das contas anuais de 2020 da (...)
Adstrito à análise do ato de aposentadoria em exame neste processado, verifico que o servidor, à época de sua aposentadoria, contava com 61 anos de idade, 41 anos de efetivo exercício no serviço público, 10 anos de efetivo exercício no cargo em que se deu a aposentadoria, e mais de 35 anos de tempo de contribuição, cumprindo, assim, os requisitos de idade e tempo de contribuição para sua aposentação, nos termos do disposto no art. 6º da EC 41/2003, com proventos integrais, correspondentes à totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria. (...)
Com efeito, ainda que amparado pela referida Resolução, não há domo negar que o procedimento adotado constitui ofensa à regra do concurso público, prevista nos artigos 95, § 1º, e 99, § 1º, da Constituição Federal de 1967.
Ademais, restam críticas sobre as promoções e reenquadramentos na estrutura administrativa da Câmara Municipal, derivadas desse provimento inicial, que implicaram em aumentos sucessivos de seus vencimentos, afetado o valor dos proventos iniciais de aposentadoria (muito embora tenham sido todos esses atos convalidados, para fins de definição da situação funcional do interessado, pelo Decreto Legislativo nº (...)
Contudo, sem olvidar da gravidade de tais apontamentos, é preciso levar em conta que o malfadado ato de nomeação no cargo de (...) foi editado no ano de 1969 (há mais de 52 anos), e os decorrentes atos de ascensão funcional, foram editados entre 1973 até o ano de 2021.
Dessa forma, ainda que potencialmente viciados, não cabe, neste momento, questionar as situações jurídicas estabelecidas há mais de 21 anos que subsidiaram a concessão doo benefício em exame - que vem sendo pago há mais de 15 anos -, pois consolidadas com o tempo. Trilhar pela negativa de registro da aposentadoria em exame, certamente causaria odiosa ofensa ao princípio da segurança jurídica. (Grifo nosso)
Ainda sobre os efeitos do decurso de tempo nos atos administrativos, reproduzo trecho de relevante decisão exarada pela Primeira Câmara, em 16/05/2017, em voto condutor do E. Conselheiro Renato Martins Costa, nos autos do TC – 000918/002/02[4], a saber:
O ponto essencial que ensejou julgamento desfavorável foi o indevido cômputo de tempo de serviço da iniciativa privada sem a necessária comprovação mediante certidão expedida pelo INSS, responsável pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS.
Passadas mais de duas décadas da constituição dos atos que ensejaram as aposentadorias dos interessados, data máxima vênia à posição de d. MPC, entendo que o exame deste apelo não pode ficar restrito à luz fria do texto legal, ignorando-se o princípio da segurança jurídica que o longo tempo entre o ato de concessão e a apreciação por esta Corte gerou aos ex-servidores.
Efetivamente a forma utilizada para o reconhecimento do tempo faltante não foi a mais escorreita.
Contudo, neste caso trata-se de balancear a prova entre o direito e a justiça e, para tanto, penso que o ensinamento do Ministro Celso de Mello no MS 25805, que buscava o restabelecimento da parcela correspondente à URP de 26,05% paga há mais de 13 anos a determinada impetrante e cujo pagamento foi cassado pelo TCU parece exemplar. Apoiou-se Sua Excelência no entendimento que reconhece no decurso do tempo a possibilidade de constituir, ainda que excepcionalmente, fator de legitimação e de estabilização de determinadas situações jurídicas. Esclareceu que a decisão por ele alvitrada se baseava nos princípios da segurança jurídica, da boa-fé e da proteção da confiança, sendo os dois últimos projeções específicas do postulado da segurança jurídica.
‘Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgão do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado’, escreveu Celso de Mello.
Citou ainda o Ministro a ‘ Proteção da Confiança’, segundo a qual ‘a fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado (cidadão) e, também, por incutir, nele a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro’.
No presente caso, decidir em sentido contrário a esses princípios afetará rudemente não só os aposentados e pensionistas, já que constituídos em dois casos, como também a seus familiares, suprimindo deles o único benefício de caráter alimentar que asseguraram ao longo da vida, já que, na condição de sexagenários ou mais, vêem o mercado de trabalho cada vez mais estreito para tentar buscar qualquer recomposição.
Sendo assim, acolho as razões recursais e de sustentação oral produzidas e, em caráter excepcional, para garantia dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, voto pelo provimento do Recurso Ordinário, para o fim de considerar regulares os atos de aposentadoria em exame, determinando seus registros. (Nossa nota: aqui termina a transcrição do voto do Cons. Renato Martins Costa, e segue a transcrição da decisão do Auditor Antônio Carlos dos Santos)
Assim, no caso vertente, sobrepõe-se á estrita legalidade os princípios da segurança jurídica, da boa-fé, e da proteção da confiança.
Nessa conformidade, a despeito das falhas caracterizadas, considerando a situação excepcional do caso vertente, e em homenagem ao princípio da segurança jurídica, o ocorrido não constitui fator impeditivo do ato concessório de aposentadoria, visto que, com as ressalvas trazidas, o servidor atendeu aos requisitos de idade e tempo de contribuição para sua aposentação, nos termos do disposto no art. 6º da EC 41/2003. (...)
Pelos fundamentos expostos na sentença, e com supedâneo no artigo 73, § 4º da Constituição Federal, c/c artigo 33, inciso III da Constituição Estadual e na Resolução nº 02/2021 deste Tribunal, JULGO LEGAL o ato concessório de aposentadoria efetivado pela (...) no exercício de 2007, e determino o registro pertinente, nos termos do inciso VI, do artigo 2º da Lei Complementar Estadual nº 709/93.
VI – Como já se disse de início estas acima são palavras, tanto as do Auditor quanto as do Conselheiro, que honram e dignificam o direito público brasileiro, pela demonstração de sensibilidade social que as informa e pelo aberto e corajoso prestigiamento a um dos mais importantes princípios de direito em qualquer época e circunstância, o da segurança jurídica do cidadão.
E não é preciso tecer comentários pontuais ao texto, bastando ler os excertos acima selecionados para se compreender o que se quer transmitir.
Por acima de formalismos que alhures são relevantes; para além da observância de regras rígidas e pesadas que só em si e isoladamente consideradas não cedem a valores maiores da sociedade; ultrapassando o positivismo de normas de resto corretas e necessárias, porém que em dados contextos ou episódios não asseguram o bem-estar social nem a paz de espírito do administrado e do jurisdicionado, esta decisão acima em parte transcrita se coloca como uma supragarantia do cidadão dentro da selva pouco permeável do (positivista) ordenamento jurídico brasileiro.
Demonstra que, inobstante não tenha origem no Judiciário mas em Tribunal de Contas estadual – porventura o mais aparelhado física e tecnicamente em nosso país, e há bom tempo um modelo natural de todos os demais -, ainda há juízes em Berlim...
São corajosas e intimoratas decisões como esta presente, que absolutamente não é a única dentro do TCE – SP mas tem ali gloriosos precedentes, que devolvem ao administrado a essencial credibilidade nos julgadores e nos agentes que têm o destino das pessoas em suas mãos ([1]).
Sirvam, decisões como tais, de permanente inspiração a julgadores de todo gênero, os que, no cumprimento do seu dever, amiúde decidem o futuro das pessoas por canetada – ou, atualmente, por digitação ao computador.
Pode esse gesto ser rápido, mas, por tudo que é sagrado, que seja justo.
[1] Menciona-se isto em face de que existem muito lamentavelmente frequentes ondas, vocações ou tendências que, ao reverso, apenas fazem por desacreditar o julgador de todo nível e da mais vária natureza., e quem decide o futuro das pessoas. O mais indispensável requisito de um julgador, para além do domínio técnico de sua matéria e segundo nos parece, é a sua maturidade como homem, a sua realização de si para consigo, a sua íntima satisfação com o que realizou e realiza nesta vida. Um julgamento técnico, por mais inexcedivelmente brilhante que se o reconheça, ainda não se compara com um julgamento humano.