LEI Nº 14.133/21, TRÊS MOMENTOS DEPLORÁVEIS: (I) art. 14, inc. I c/c § 3º; (II) art. 20, §§ 1º E 2º, E (III) art. 82, § 5º

Lei nº 14.133/21, três momentos deploráveis: (I) art. 14, inc. I c/c § 3º; (II) art. 20, §§ 1º e 2º, e (III) art. 82, § 5º

 

Ivan Barbosa Rigolin

(mai/23)

 

 

I – Começa a ficar enfadonho comentar desfavoravelmente a nova lei de licitações. Lembra uma novela de guerra, em que a desgraça não tem fim e que exaspera até o mais empedernido dos homens.   Ou, vendo de outro modo, pouco vale o sol radiante, as aves a cantar, a música encantadora no ar ou os ares benfazejos da primavera: quando entra em cena a nova lei o tempo fecha, as aves emudecem, cai neve na primavera e a música passa a ser a de Strawinsky.

Nessa esteira, com frequência se afirma que encontrar defeitos na Lei nº 14.133/21, a nova lei de licitações que um dia, talvez, seja de aplicabilidade obrigatória – pois não é possível confiar que esse dia será efetivamente 30 de dezembro de 2.023 conforme anunciou a Medida Provisória nº 1.167/23 – é como caçar de metralhadora em um  jardim zoológico.

São tantas as suas atecnias, prolixidades, rebarbatividades, redundâncias, contradições e outras imperfeições  de variada natureza que detratá-la e destratá-la tornou-se tarefa das mais singelas.  Chega a inspirar comiseração, sobretudo pela nítida impressão de que os autores devem considerar-se iluminadas sumidades na matéria – no que lhes assiste alguma razão, porque de ilusão também se vive.

Em meio àquela selva – e se Dante chamou a sua de escura e tenebrosa, que então diria desta ? – pinçamos aleatoriamente três momentos de particular infelicidade, que são

-  o art. 14, inc. I c/c § 3º, sobre a proibição de que empresas dos mesmos sócios participem da mesma licitação;

- os §§ 1º e 2º  do art. 20, sobre  a necessidade de regulamentos para compras, e

- o art. 82, § 5º com seus incs. I a VI, sobre regisro de preços.

 Vejamo-los, com a brevidade que o tema recomenda.

 

II  - O primeiro tema assim está vazado na Lei nº 14.133/21:

Art. 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente:

I - autor do anteprojeto, do projeto básico ou do projeto executivo, pessoa física ou jurídica, quando a licitação versar sobre obra, serviços ou fornecimento de bens a ele relacionados; (...)

§ 3º Equiparam-se aos autores do projeto as empresas integrantes do mesmo grupo econômico.

O § 3º, em outras palavras, proíbe que empresas do mesmo grupo econômico participem da mesma licitação. O legislador está na idade da pedra.  Involui a olhos vistos.

Visa com esse moralismo de feira coibir que um licitante saiba o preço de outro(s), ou que combinem preços entre si.

Não sabe a lei que um licitante pode anunciar nos maiores noticiários da televisão os seus preços para esta ou aquela licitação – e que pode oferecer exatamente esses preços anunciados.

E parece não saber a lei que os licitantes combinarem preços entrte si é um direito incontestável que todos têm, assim como é um dever do julgador desclassificar todos os preços excessivos.

O que  a lei impede é que a Administração divulgue os preços de quem quer que seja antes da abertura oficial dos envelopes, quando os existem.

Segredo de proposta é um direito do licitante contra a Administração, que  não significa nem nunca significou a proibição de o próprio licitante espalhar aos quatro ventos, ou anunciá-los com megafone ou de helicóptero, os seus próprios preços.

Vejamos as eleições políticas: o voto é secreto, ou seja, o poder público não pode exigir que o eleitor divulgue seu voto. Mas nada impede  o eleitor de usar a camiseta de seu candidato, fazer campanha pública por seu candidato, divulgar nas redes sociais o seu candidato, ou fazer operação plástica para ficar parecido com seu candidato.

De mesma forma que o eleitor, o licitante que  quiser abrir mão do segredo da sua proposta pode fazê-lo a qualquer tempo, como sempre pôde na história.

Então, seguindo nos exemplos, numa licitação para comprar computadores não poderiam participar Microsoft, de Bill Gates, e Apple, concorrente da qual se anuncia que Bill Gates detém 30 %. 

Numa outra para aquisição de veículos não poderiam participar Volkswagen e Audi,ou Bentley, ou Bugatti, ou Porsche, porque todas essas marcas pertencem à Volkswagen.  Num certame para adquirir carne não poderiam competir duas empresas do mesmo grupo, uma com sede no Estado de São Paulo e outra no do Pará – e o ridículo não mais tem fim.

A Lei nº 8.666/93, por deficiente que seja, não contém barbaridades de morder a nuca como são essas da Lei nº 14.133/21.

Auguramos que o Poder Judiciário, adequadamente instado, bombardeie aquela péssima previsão.

 

III – O segundo tema (art. 20, §§ 1º e 2º), assim está exposto na lei:

Art. 20. Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo.          

§ 1º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.

§ 2º A partir de 180 (cento e oitenta) dias contados da promulgação desta Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição, pela autoridade competente, do regulamento a que se refere o § 1º deste artigo.

O caput é bom e oportuno; o diabo são os parágrafos. Outra vez o legislador perdeu o momento de parar de escreveuma vez mais  deixou queimar seu bolo.

Que a lei proíba artigos de luxo – fora exceções bem pontuais e necessárias – e institua a qualidade comum como regra para as compras públicas de bens, materiais e equipamentos vai muito bem, porém a) pretender disciplinar de forma objetiva o que são bens comuns em oposição ao que sejam bens de luxo, e, principalmente, b) exigir regulamento como pré-requisito para compras, respeitosamente, é ir longe demais.

Sobre bens de luxo escrevemos  artigo  ([1]) indicando quão engraçado é o decreto federal editado sobre o tema, verbis:

DECRETO Nº 10.818, DE 27 DE SETEMBRO DE 2021  (...)

Art. 2º  Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

I - bem de luxo - bem de consumo com alta elasticidade-renda da demanda, identificável por meio de características tais como:

a) ostentação;
b) opulência;
c) forte apelo estético; ou
d) requinte;

II - bem de qualidade comum - bem de consumo com baixa ou moderada elasticidade-renda da demanda;”

O decreto regulamentador, em parte acima transcrito, tenta dentro das humanas e razoáveis possibilidades conferir alguma objetividade ao abantesma de que aqui se fala.

O art. 2º faz o que pode nesse sentido, e já nos ensina que nosso sofrido Rolex, adquirido com dificuldade ainda durante a guerra do Vietnã,  tem alta elasticidade-renda -  seja lá isso o que for.

E que produtos de menor estatura financeira, estética, funcional, ou então de menor incorporabilidadeperecibilidade ou transformabilidade, são classificados comuns.

O decreto, sem qualquer demérito dos seus autores e desde logo reconhecida a sua seriedade de propósito, é bastante divertido.

Num ambiente congesto e intertravado como é o de toda Lei nº 14.133/21  não deixa de ser um bálsamo para o fígado, eis que como se sabe rir é o melhor remédio.

Mas, repita-se,  não se tenha por depreciativa ou por debochada esta apreciação, eis que definir bem de luxo, ou bem supérfluo, num diploma legal é a décima terceira tarefa de Hércules, algo quase impossível. O objeto – incorpóreo, imaterial, intangível, etéreo -  é liso como um bagre ensaboado, refugindo a toda tentativa de apreensão objetiva, como seria tentar ensacar fumaça.

Aplaudimos portanto tanto o artigo da lei, necessário e moralizante como reconhece o TCE – SP,   quanto o decreto regulamentador, que construiu  meritoriamente numa missão impossível.

Aprendemos que quem tem  um bem de alta elasticidade-renda da demanda (??), então tem um bem de luxo. Pouca gente coberta e repleta de bens de luxo, entretanto, sequer faz ideia  do que seja isso.  Mas se a elasticidade-renda da demanda for moderada ou baixa (??), então o bem é comum.   Seriam bens com elastano ?

Seja o que for aquilo, pergunta-se como, de modo minimamente objetivo, alguém classifica este bem quanto ao nível de elasticidade-renda da demanda (??), para tanto devendo considerar o seu grau de opulência, de ostentação e de apelo estético, dentre outros requisitos tão pessoais e subjetivos quanto estes. Como se comparam graus de ostentação com níveis de opulência ? E o apelo estético,  acaso interfere nesse sopesamento que tem a mesma objetividade de julgamentos de escolas de samba ?

 Num diploma institucional esse conjunto de coisas  parece peça de humor e não pode ter futuro, nem ser minimamente tido a sério.

E desnecessário é recordar que fora os entes da da União vinculados ao Executivo os demais entes federados (Estados, Distrito Federal e Municípios) não estão obrigados a seguir regulamentos federais, a não ser que recebam verbas federais para a aquisição de bens. Nesse caso, o sinhozinho que dá o dinheiro também dita a regra para a despesa, como sói acontecer.

Os entes da federação, se francamente não tiverem mais o que fazer, poderão editar seus decretos e regulamentos, que nenhuma similaridade ou paralelismo com o federal precisarão observar. Mas se quiserem, ao invés disso, encostar no diploma federal, o encosto é livre.   Mas tratem de conter o riso.

 

IV   – Mas isso não é o mais grave, já que rir é sempre proveitoso. Mais sério é o caso do § 2º do art. 20 da lei, a exigir regulamento, já a partir de outubro de 2.021 para quem já está aplicando a nova lei,  como condição para o ente poder adquirir bens de consumo, regulamento esse que estabeleça (§ 1º) os limites para o enquadramento dos bens nas categorias comum e luxo.

Será que o legislador se  lembra de que está no Brasil ?   Nesse momento fala para os brasileiros ?  É de duvidar.

Isto quer dizer que se não existir aquele regulamento as compras de bens de consumo efetuadas a partir de outubro de 2.021 estão ilegais, irregulares, contrariando a lei. 

Vamos corrigir: estarão irregulares  e ilegais se e quando for obrigatoriamente aplicável esta Lei nº 14.133/21, o que se promete para 30 de dezembro de 2.023 mas esse sendo um daqueles eventos nos quais somente se acredita se se os vir acontecerem.  Questão do só acredito vendo.

Uma questão exatamente como esta é das que devem arrepiar e encher de pavor as autoridades que estão, teoricamente,  na iminência de precisarem aplicar esta nova lei; se o futuro é assim, então melhor prorrogá-lo como fez a MP 1.167/23 – deve ser esse o pensamento generalizado dos agentes públicos, imagina-se.

 

V - Num eventual decreto, como este exigido pelo § 2º do art. 20 da lei, prescreve a lei que precisará estar estabelecido limite para o enquadramento dos bens como de luxo ou como comuns. Quererá  isso acaso significar, indaga-se:  que os bens de luxo devem limitar-se a x, tanto em quantidade quanto em número de itens aceitáveis, quanto em valor ?  Seria algo assim ?  Existem parâmetros para uma limitação que tal ?

Os bens de luxo terão algum limite ?  Será que estamos falando a mesma língua, ou se trata de delírio coletivo ?  Se eles são em princípio proibidos, então que raio de limite teriam ?

E consta também que os bens comuns deverão observar limites próprios,  quanto a seja lá o que for.  Papel sulfite por exemplo, o ente tal somente poderá comprar no ano 24.322 resmas ? Ou 1.987 resmas, talvez ?  Seria isso ?  Mas, se for algo assim, então  será razoável tentar adivinhar as necessidades do ente durante o exercício ?    Isso é o que quis dizer a lei ?

Essas perguntas não são retóricas. A dúvida é nossa, de quem escreve estas amargas refexões.

Isto, senhores, não é lei, mas uma mixórdia sem sentido lógico, jurídico, técnico ou da natureza que for.

O que é de esperar é que dispositivos como os § 1º e 2º deste art. 20 sejam solenemente ignorados tanto pelos servidores quanto pelas autoridades de fiscalização. E o que se espera do legislador brasileiro é que acorde deste seu pesadelo institucional, porque o que hoje está acontecendo não é normal.

 

VI – O terceiro tema do título assim vem exposto:

Art. 82. O edital de licitação para registro de preços observará as regras gerais desta Lei e deverá dispor sobre: (...)

§ 5º O sistema de registro de preços poderá ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive de obras e serviços de engenharia, observadas as seguintes condições:

I - realização prévia de ampla pesquisa de mercado;

II - seleção de acordo com os procedimentos previstos em regulamento;

III - desenvolvimento obrigatório de rotina de controle;

IV - atualização periódica dos preços registrados;

V - definição do período de validade do registro de preços;

VI - inclusão, em ata de registro de preços, do licitante que aceitar cotar os bens ou serviços em preços iguais aos do licitante vencedor na sequência de classificação da licitação e inclusão do licitante que mantiver sua proposta original.

O desastroso § 5º inicia anunciando que o registro de preços pode ser utilizado para a aquisição de obras e de serviços de engenharia. É muita inconsciência.

Pode porventura ser razoavelmente registrado o preço de um prédio de dez andares, ou a abertura e pavimentação de uma rua de dois quilômetros, ou  a construção de um estádio de futebol ?  Existe algum sentido numa patológica ideia como essa ?

Quanto a serviços de engenharia, poderia acaso existir registro de preços de demolição de um edifício ?   Ou de elaboração de um projeto executivo de um complexo viário ?  Faz sentido um absurdo como esse ?

Desse modo, o inc. I do parágrafo também vai pelos ares, porque se a ideia originária é absurda, então toda a sua consequência também o é. E o mesmo se diga do inc. II.

Na mesma esteira, os incs. III e IV carecem totalmente de razoabilidade e de exequibilidade, porque não se pode controlar o que nem sequer pode existir  (III), e porque não se podem atualizar preços que nem saquer podem ser registrados  (IV).

Quanto ao prazo de validade que o inc. V manda que o edital fixe,  dever-se-á observar a validade máxima de um ano, prorrrogável por outro ano, conforme estabelece o art. 84 da lei.  Quem escreveu o art. 82 não deve ter lido o art. 84.

Por fim, o inc. VI precisa de intérprete do estilo. Deve estar tentando estabelecer que, após terminada a cotação de preços pra o registro, se algum licitante informar que aceita cotar seus preços aos mesmos preços do vencedor, então seu nome deve ser anotado na sequência da classificação – e se é assim não se sabe, então, para quê a própria classificação.

Ou seja, se o vencedor falhar na contratação, o que ocorre: o ente convida aquele que posteriormente cotou seus preços iguais aos do vencedor, ou consulta o segundo colocado para saber se baixa seus preços até os do vencedor, como é a regra no registro de preços ? Se for a segunda hipótese, então faz sentido a previsão.

A parte final, ‘e inclusão do licitante que mantiver sua proposta original’, para nós é mais um enigma.  Pode acaso alguém não manter sua proposta num registro de preços ?   Que viria a ser isso ?

Mas pior que é isso é o dilema: a que proposta se refere o dispositivo, se estamos em fase de registro de preços, e longe de qualquer licitação ? Melhor não insistir, porque a única proposta que nos acorre à mente neste momento é indecorosa.

 

E assim, gentil leitor, terminamos este breve e para variar amargo artigo, vindo inevitavelmente à mente as últimas palavras, abaixo em em linguagem atualizada,  de Augusto dos Anjos no seu Poema negro, de 1.906:

Ao terminar este sentido poema

onde vazei a minha dor suprema

trago os olhos em lágrimas imersos...

Rola-me na cabeça o cérebro oco.

Porventura, meu Deus, estarei louco ?

Daqui por diante não farei mais versos.  ([2])

 

 

 

 

[1] O art. 20 da lei de licitações. Bens de luxo e comuns, publicado em Boletim de administração pública municipal, Fiorilli, mar/23, assunto 500; Revista Síntese de direito administrativo, Grupo IOB, abr/23, nº 208/32.

 

[2] Rimos para não chorar, mas cada texto sobre a nova lei de licitações é uma espécie de poema negro, um filme triste que não tem fim, uma agonia sem êxtase à vista. Mieux est de rire que de larmes écrire, outra vez a citação é oportuna.