Artigo
CLÁUSULAS NECESSÁRIAS AO CONTRATO (L. 14.133/21, ART. 92)
CLÁUSULAS NECESSÁRIAS AO CONTRATO (L. 14.133/21, ART. 92)
Ivan Barbosa Rigolin
(jul/23)
I – Por mais enjoativa que a esta altura esteja a invariável execração da Lei nº 14.133/21 na doutrina, nos comentários escritos e falados, nos inumeráveis artigos que se lêem a respeito, tanto quanto em palestras, congressos e seminários, ou na fala generalizada dos operadores de licitação – que ainda hoje experimentam calafrios ante a perspectiva de em 30 de dezembro de 2.023 precisarem licitar com base apenas na nova lei -, é preciso admitir que aquela execração não é gratuita nem acidental. Dificilmente o seria, se é tão unânime.
É inegável que muito de bom e de proveitoso a nova lei contém, como são por exemplo a unificação das espécies e modalidades de licitações, a simplificação da divulgação, a sistematização dos procedimentos auxiliares, e diversas outras disposições em boa hora trazidas a lume.
Acontece porém que não são a maioria, e previsões como algumas do importantíssimo art. 92 sobre o conteúdo obrigatório dos contratos, são de morder a nuca, como no dizer do pranteado mestre Eurípedes Clóvis de Paula, do hoje extinto CEPAM, fundação estadual paulista de assistência aos Municípios que foi durante as cinco últimas décadas.
Com efeito, a primeira impressão é a de que será dificílimo implementar algumas regras também do art. 92, porque, à luz da doutrina brasileira que mansamente se construiu durante cerca de setenta anos e que ainda hoje vigora em nosso país, o conflito de institutos, de ideias e de pressupostos lógicos é evidente, em, para nós, claríssimo prejuízo conceitual e técnico. Não são muitas no art. 92, porém o assunto é sério.
Vamos a elas.
II - O art. 92, sobre os conteúdos necessáros do contrato, inicia bem, calcado no art. 55 da Lei nº 8.666/93, e praticamente o repete até o inc. V (da nova lei), e a partir desse ponto passa a criar.
Entretanto, nos requisitos enumerados nos incs. VI, VII, IX, X, XI, XII e XV entretanto faz constar a previsão ‘quando for o caso’, sendo que o caput reza: ‘São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:’
Ora, então seriam cláusulas necessárias quando for o caso ? De 19 incisos 7 são necessárias quando for o caso ? Que necessidade é essa, então ? Quando for possível ? Se não incomodar ?..
O aplicador, ao elaborar o edital e redigir a minuta do contrato, nesse átimo deve quedar meio pasmado ante o aparente inicial rigor e o seu afrouxamento logo a seguir, por casualidade a partir do momento em que a nova lei passou a inovar ! Quanta coincidência ! ([1])
E não se recomenda simplesmente pular esses incisos facultativos porque muitas vezes é o caso de exigir. As exigências em geral não são despropositadas, e cabem perfeitamente em incontaveis contratos.
O que se questiona é o contraste da imperatividade do caput, que manda exigir, e a complacência dos apontados 7 incisos, que exigem apenas quando o autor da minuta entender que é o caso.
Aquele autor da minuta muita vez se perguntará – e agora, que é que eu faço ?
III – No inc. V do caput, que deveria conter a alternatividade (‘quando for o caso’), ela não existe, e assim passa por obrigatório que todo contrato contenha a cláusula de data-base e de periodicidade do reajustamento.
Essa impressão é reforçada e confirmada pelo § 3º do artigo, a rezar que
§ 3º Independentemente do prazo de duração, o contrato deverá conter cláusula que estabeleça o índice de reajustamento de preço, com data-base vinculada à data do orçamento estimado, e poderá ser estabelecido mais de um índice específico ou setorial, em conformidade com a realidade de mercado dos respectivos insumos. (Destaque nosso).
Muito bem. Então a teor desse dispositivo um contrato para uma obra de 20 (vinte) dias de duração precisará ter data-base de reajustamento de preço ? Poderá ter reajuste de preço, aliás ?
Um contrato de compra de mil resmas de papel sulfite para entrega integral, idem, ibidem ? Reajustamento de preço ?
O legislador leu o que escreveu ? O Congresso leu o que aprovou ? O Presidente da República leu o que sancionou ?
É para levar a sério este § 3º ?
Porventura o legislador não terá lido o subsequente § 4º, que impõe o intervalo mínimo de um ano para o reajustamento ?
Como cumprir, como executar o comando do § 3º, que o subsequente § 4º já impede de cumprir ?
Sigamos, e ao final formula-se uma recomendação.
IV – Os incs. X e Xi do caput são embaraçosos. Na ânsia de escrever algo diferente da antiga lei, o legislador envereda por – muitíssimo respeitosamente – bobagens sem qualquer sentido, como esta de pretender obrigar que o contrato estabeleça prazo para resposta a pedidos de repactuação (inc. X) e de reequilíbrio econômico-financeiro (inc. XI).
Em primeiro lugar esse assunto jamais deveria constar de uma lei nacional, porque é interno de cada ente público, e se a lei entende tão importante fixar aqueles prazos já os deveria ter fixado.
Em segundo lugar porque repactuação de preços é o mesmo que reequilíbrio econômico financeiro, ou melhor dizendo: dá-se a repactuação exatamente para promover o reequilíbrio. Seria como dizer que assim como são os homens são as criaturas, outra máxima do citado mestre Eurípedes.
Quando a lei confunde e coloca no mesmo saco repactuação e reajustamento (art. 92, § 4º, incs. I e II) não é de se esperar coisa melhor que estes incs. X e XI.
V – Os incs. XVIII e XIX mantêm o nível subterrâneo da lei neste ponto.
O inc. XVIII manda que o contrato contenha o ‘modelo de gestão’. Alguém sabe o que seria isso ? A gestão contratual acaso tem modelos a seguir ?
Pretende a lei que o contrato informe como será realizada a gestão, passo a passo, centímetro por centímetro, de cada contrato ? Se é isso, então a lei desconhece que cada objeto de contrato exigirá um modelo diferente de gestão, e com isso exigirá que o autor do edital elabore um modelo de gestão para cada espécie de objeto ? Isso é racional ? Isso é exequível ?
E o dispositivo ainda remete a regulamento, como se as unidades administrativas nada mais tivessem a fazer.
O inc. XIX repete, agravada, a asneira do art. 55, inc. VIII, da Lei nº 8.666/93, o qual manda que o contrato contenha as cláusulas de rescisão, quando art. 78 já os especifica todos exaustivamente.
Neste caso da nova lei é pior: além de trocar a correta rescisão, da Lei nº 8.666/93, pela estapafúrdia extinção desta nova lei ([2]). É imperfeição sobre imperfeição.
VI – O § 2º deste art. 92 é outra carta enigmática que a lei alegremente inventou. Não o transcrevemos, porque a paciência tem limite.
O que pretendeu o legislador com o contrato poder prever ‘período antecedente à expedição de ordem de serviço para verificação de pendências’ ? Para quê serve um elefante branco como esse ?
Outra questão: desde quando isso foi proibido ao contrato ? Jamais foi, e o contrato sempre pode e deve estabelecer regras, peculiares a cada peculiaridade do objeto, das quais dependa o ente público contratante para, no seu entender, obter o melhor resultado da execução.
É insuportável a mania do legislador de autorizar a fazer o que sempre foi permitido fazer, e de advertir a Administração de que pode realizar o que já há décadas desassombradamente realiza.
O legislador em momentos tais desempenha o mesmo papel – e vamos aludir mais uma vez a esse episódio literário – do soprador de verrumas de Monteiro Lobato, do conto A vingança da peroba.
Ou então o mesmo papel da prosaica e decantada pedra na sopa, ingrediente culinário esse que, com o qual ou sem o qual, a sopa resta tal e qual. Ou ainda a qualidade que os detratores da filosofia lhe atribuem, ao afirmar que a filosofia é uma ciência tal que, com a qual ou sem a qual, o mundo resta tal e qual.
Lei nº 14.133/21: quousque tandem Catilina abutere patientia nostra ? ([3])
VII – Encerrando (tarde) o artigo, o § 6º tece uma recomendação que ninguém pediu, ninguém sabe para quê serve e, seguramente, ninguém dos que lerem o dispositivo até o fim atenderá. Uma lei que recomenda ... a quê se presta ?
Então se recomenda: tão logo o leitor de uma lei depare com preferencialmente, recomendavelmente, se possível, se for o caso, pule para a unidade seguinte. Desse mato não sai coelho.
VIII - E agora recomendações finais:
- o que não fizer sentido não precisa ser observado, aliás nem deve o aplicador elaborar malabarismos mentais para tentar decifrar o que o legislador pretendeu, ou correrá o risco, se conseguir entender, de acabar pensando como o legislador. Ad impossibilia nemo tenetur, reza o adágio segundo qual ninguém está obrigado ao impossível;
- duvida-se que algum fiscal das contas públicas irá um dia exigir que o contrato tenha observado dispositivos com os incs. X, XI, XVIII e XIX do art. 92. Ele por certo tem mais o que fazer;
- previsões (e nos recusamos a chamá-las de regras ou ordens) como o § 3º deste art. 92 precisam ser solenemente ignoradas. Não tem pé nem cabeça;
Se o contrato, observando o § 3º, previr cláusula de reajustamento num contrato de curto prazo, como de dois meses, ou num contrato de compra para entrega integral e imediata, estará contrariando o § 4º do mesmo art. 92, que proíbe cogitar-se de reajuste ou repactuação em menos de um ano de interregno.
E como a lei não informa interregno a contar do quê, lemos que é da assinatura do contrato, pois essa é uma data conhecida e pública;
- se o ente contratante não separar rigidamente reajuste de repactuação poderá esperar pelo pior. Recomenda-se manter os conceitos atuais, da Lei nº 8.666/93, e não enveredar pela insânia institucional que esta nova lei sugere ao tão grosseiramente confundir alhos com bugalhos.
Ou seja: repactuação é autorizada alteração (o aditamento) do contrato para reequilibrá-lo em face de fatos supervenientes e não previstos, enquanto reajuste ou reajustamento é a mera aplicação do índice de reajuste previsto no contrato à ocasião devida, sem alteração do contrato, sem aditamento e sem autorização superior.
Confundir esses dois institutos é brincar com a morte.
E repetimos o voto: que todas as potestades celestiais, em concílio reunidas, protejam os operadores de licitação, e os ordenadores de despesa.
[1] A lembrar o rigor do cliente que ordenou ao barman uma Antártica, faixa azul, casco escuro, feita em Assis e estupidamente gelada, ao que o prestativo serviçal respondeu: - Só tenho Brhama, casco claro, feita em Morro Agudo, e está meio quente. O exigente freguês então disparou: - Manda !
[2] V. nosso artigo Extinção de contratos, recentemente publicado nesta mesma Revista.
[3] Até quando Catilina abusará da nossa paciência ? – das Catilinárias de Cícero.