Artigo
O ART. 17 DA LEI Nº 14.1233/21
O ART. 17 DA LEI Nº 14.1233/21
Ivan Barbosa Rigolin
(jul/23)
I – Apesar de havermos escrito todo um livro comentando a nova lei de licitações artigo por artigo, não parece redundante produzirem-se artigos, como vimos fazendo, comentando momentos pontuais da lei, porque no artigo é possível uma detença maior sobre cada tema do que num apanhado tão vasto – 193 artigos - que não favorece nenhuma minudência. Antes a varredura grossa, depois a sintonia fina. Os textos idealmente se complementam, como se espera.
Desta vez o momento focado é o art. 17 da Lei nº 14.133/21, que contém disposições cujo efeito na prática futura é relevante e precisa ser bem equacionado e compreendido ([1]).
O art. 17, apenas para variar, contém contradições e atecnias, daí a presente preocupação.
II – Eis seu texto:
Art. 17. O processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência:
I - preparatória;
II - de divulgação do edital de licitação;
III - de apresentação de propostas e lances, quando for o caso;
IV - de julgamento;
V - de habilitação;
VI - recursal;
VII - de homologação.
§ 1º A fase referida no inciso V do caput deste artigo poderá, mediante ato motivado com explicitação dos benefícios decorrentes, anteceder as fases referidas nos incisos III e IV do caput deste artigo, desde que expressamente previsto no edital de licitação.
§ 2º As licitações serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica, admitida a utilização da forma presencial, desde que motivada, devendo a sessão pública ser registrada em ata e gravada em áudio e vídeo.
§ 3º Desde que previsto no edital, na fase a que se refere o inciso IV do caput deste artigo, o órgão ou entidade licitante poderá, em relação ao licitante provisoriamente vencedor, realizar análise e avaliação da conformidade da proposta, mediante homologação de amostras, exame de conformidade e prova de conceito, entre outros testes de interesse da Administração, de modo a comprovar sua aderência às especificações definidas no termo de referência ou no projeto básico.
§ 4º Nos procedimentos realizados por meio eletrônico, a Administração poderá determinar, como condição de validade e eficácia, que os licitantes pratiquem seus atos em formato eletrônico.
§ 5º Na hipótese excepcional de licitação sob a forma presencial a que refere o § 2º deste artigo, a sessão pública de apresentação de propostas deverá ser gravada em áudio e vídeo, e a gravação será juntada aos autos do processo licitatório depois de seu encerramento.
§ 6º A Administração poderá exigir certificação por organização independente acreditada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) como condição para aceitação de:
I - estudos, anteprojetos, projetos básicos e projetos executivos;
II - conclusão de fases ou de objetos de contratos;
III - material e corpo técnico apresentados por empresa para fins de habilitação.
Mas em se comentando o art. 17 é preciso ter presente também a parte inicial do art. 176, verbis:
Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento:
I - dos requisitos estabelecidos no art. 7º e no caput do art. 8º desta Lei;
II - da obrigatoriedade de realização da licitação sob a forma eletrônica a que se refere o § 2º do art. 17 desta Lei;
III - das regras relativas à divulgação em sítio eletrônico oficial.
III – Comecemos pelo começo, consoante recomendaria o Conselheiro Acácio.
A falta do que fazer que acometeu o legislador brasileiro neste momento é enternecedora.
O processo de licitação, (art. 17, I), deve iniciar-se peça fase preparatória. Continuamos acacianos ! Poderia iniciar-se pela conclusão ? Onde começa e onde termina a fase preparatória ? Alguém desconhece que um processo começa pelo começo ?
Após a divulgação do edital o processo licitatório segue pela apresentação de propostas e lances quando for o caso. Ora, poderia não ser o caso ? Existe licitação sem propostas e/ou lances ? Alguém imagina isso ? Licitação sem competição de propostas é uma faca sem lâmina e sem cabo.
O § 1º informa que a habilitação pode anteceder as propostas, desde que excepcional e justificadamente.
O que sempre foi a única regra em nosso direito licitatório agora apenas excepcional e muito justificadamente pode ser realizado. Sinal dos tempos.
IV – Mas o busílis da questão vem agora.
Pelo § 2º a licitação será preferencialmente eletrônica, e não obrigatoriamente eletrônica. Poderá ser presencial, desde que motivada, ou justificada para tanto.
Agora saltando para o art. 176, acima transcrito, temos que os Municípios com até vinte mil habitantes terão até seis anos – mamma mia !.. É para levar isto a sério ? Por que a lei já não arredondou para até o final do século ? – para adaptar-se à
obrigatoriedade de realização da licitação sob a forma eletrônica a que se refere o § 2º do art. 17 desta Lei.
Perguntamos: que obrigatoriedade ? Onde está escrita ? Onde consta da nova lei que a forma eletrônica da licitação é obrigatória?
O autor do art. 176 não leu o que o autor do art. 17 escreveu ?
Segunda observação: inobstante esta irremovível contradição acima, e em se observando a evolução tecnológica mundial, o dispositivo deve ser de todo inútil.
Em seis anos a partir de 30 de dezembro de 2.023, ou seja em 30 de dezembro de 2.029, as pessoas talvez já se terão esquecido de como redigir textos para publicar. De um ou de outro modo os textos serão concebidos eletronicamente para divulgação tão somente eletrônica, custando imaginar que alguém imagine vê-los originariamente impressos.
Não o serão, e quem quiser, então, que os imprima e lhes dê o uso desejado – mesmo em se sabendo que ninguém vai muito longe somente com o texto eletrônico, que não tem corpo, substância ou materialidade, revestindo-se da mais absoluta desprezibilidade física.
Quando o homem for virtual talvez o texto eletrônico sirva para alguma coisa. Enquanto isso o ser humano tenta por todo meio anular-se como realidade física para endeusar o meio eletrônico, que na evolução humana lembra um faca sem lâmina e sem cabo.
Então, em 2.030 lei nenhuma nem ninguém precisará obrigar a que todo procedimento administrativo seja eletrônico, porque ele será o único existente. Entretanto nada na lei admite essa obrigatoriedade, que assim neste caso a um só tempo resulta (I) desautorizada e (II) inútil.
V – O § 3º do art. 17 é útil ao determinar o momento de exame das amostras quando exigidas, e esse momento é após estabelecido o vencedor provisório; evita-se com isso uma série de mal-entendidos e de impasses francamente contraproducentes.
Preocupa entretanto o que vem a seguir, a lei admitindo que a proposta inclua provas de conceito, e preocupa pela subjetividade que pode aí residir, tal qual ocorre quanto às provas de entrevistas nos concursos públicos para admissão de servidores públicos: igualdade, imparcialidade, impessoalidade, tremei !
O que se deve exigir é que em havendo a previsão editalícia dessas provas sejam elas desde logo especificadas e objetivadas, dentro do que for possível, no próprio edital, algo como uma radiografia da estrutura das provas. Já será bastante em prol da insuspeição do julgamento.
O § 4º outra vez homenageia o Conselheiro Acácio, ao prever que nas licitações eletrônicas poderá o edital exigir dos licitantes que pratiquem atos apenas eletrônicos, e não físicos. Poderia ser diferente num procedimento eletrônico ? A licitação é eletrônica ou é a festa do caqui ?
Mesmo que o edital não expresse essa exigência ela parece óbvia e implícita no próprio rito procedimental, que é todo eletrônico. Documentos escritos haverão de ser sumariamente desconsiderados.
VI - Quanto ao § 6º, lembra aquele remédio que em pequena e bem controlada dose é útil, ou mesmo indispensável; em dose exagerada conduz o paciente ao outro mundo antes da expectativa.
Se o ente público entrega com muita frequência ou como praxe o julgamento de I - estudos, anteprojetos, projetos básicos e projetos executivos; II - conclusão de fases ou de objetos de contratos, ou III - material e corpo técnico apresentados por empresa para fins de habilitação a entidades acreditadas pelo INMETRO acaba abdicando do direito e fugindo ao dever de, ele próprio por seus meios e recursos, efetuar esses julgamentos.
Por mais reputada e acreditada seja a entidade técnica que já passou pelo crivo do INMETRO parece claro que tudo tem limite de razoabilidade, de modo que a sistemática transferência do julgamento em nada parece auxiliar a eficaz prestação de serviço pelos recursos internos da entidade licitadora.
Moderação neste pormenor é o que se recomenda, até porque não é razoável conceber que um ente que trabalhe com material ou com serviços tão requintados que exijam a todo tempo laudos externos de suficiência ou de qualidade, repete-se, não se imagina que esse ente possa estar tão desguarnecido de corpo técnico, equipamentos e sede operacional razoavelmente requintados a ponto de nunca ter condição de apreciar propostas de objetos requintados – uma coisa não combina com a outra.
Se o mesmo ente não confiar em seu taco desde logo dificultará a própria consciência de adequação do que contrata ante o que recebe, parece claro. Vai comer pela mão alheia a todo tempo, o que jamais é recomendável.
Recomenda-se portanto, isto, sim, ir devagar com o andor neste delicado tema, e, reitere-se, sem sequer se tangenciar qualquer mínima desconfiança quanto à idoneidade técnica das entidades acreditadas pelo Instituto Nacional de Metrologia.
[1] Ou deverá vir a partir de 30 de dezembro de 2.023, em face do disposto no art. 3º da Lei Complementar nº 198, de 28 de junho de 2.023, que incorporou a matéria do art. 193 da Lei nº 14.133/21, num malabarístico esforço para se evitar a premência de que a Medida Provisória nº 1.167/23, que prorrogou a vigência da Lei nº 8.666/93, tivesse de ser convertida em lei até o fim de julho de 2.023. Não fora a LC 198, se em 1º de agosto de 2.023 a MP não se tivesse convertido em lei, naquele átimo estaria revogada a Lei nº 8.666/93 meses antes da expectativa, o que equivaleria a um cataclisma administrativo nesta república tupinambá. Considerando que recentemente diversas MPs não foram sequer pautadas pelo Congresso nos 120 dias de sua vigência e com isso desapareceram do cenário jurídico, quer parecer que as MPs começam a ser tratadas em nosso país com o respeito que merecem: nenhum. Foi-se o tempo em que o Executivo tinha como favas contadas a aprovação da sua matéria com a sua conversão em lei.