O § 3º DO ART. 40 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL É O VALE-TUDO ?

O  § 3º  DO  ART.  40  DA  CONSTITUIÇÃO FEDERAL  É  O  VALE-TUDO ?

 

Ivan Barbosa Rigolin

(ago/23)

 

I – Já discorremos muito brevemente em amplo artigo ([1]), dentre outros,  sobre o § 3º do art. 40 da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2.021, mas pela importância do assunto voltamos a comentar aquele dispositivo.

Antes de qualquer prosseguimento cumpre ter presente, como se disse naquele artigo,  que a Constituição hoje eia lembra algo como a Alemanha depois da guerra, ocasião na qual a cidade de Dresden tinha altura média de 60 cm ([2]). Ou Pompéia e Herculano em seguida à erupção do simpático e bem-humorado Vesúvio. Pior ainda que o centro da capital paulista, infecto e degradado.

Quem um dia sonhara com lecionar direito constitucional, ao se defrontar  apenas com a Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2.019 – apenas com essa emenda, sem se precisar ir além nesta empreitada trágica que é palmilhar nossa carta magna – possivelmente  mudará de sonho, se ainda não mudou. Tudo tem limite na vida, e a irracionalidade também. Assim sim, diz o matuto, mas assim também não ...

Mas é em horas como esta que, em nome da esperança que ninguém deve perder,  se faz imperioso  tentar desbravar a selva escura e tenebrosa – e como Dante é atual !  – que o legislador nos apresenta, e à qual submete o país. Alguma luz, ainda que de início exígua, há de resultar de qualquer cogitação honesta.

Disséramos no artigo citado que não sabíamos bem a quê veio o novo § 3º do art. 40 da Constituição, trazido pela EC 103/21. Avancemos um pouco.

 

II – Jocosamente se afirma que estamos na ‘terceira’ ou ‘quarta’ Constituição de 1.988, ao menos quanto ao tema da Administração pública e sobretudo ao dos servidores públicos.

Em 1.988, 5 de outubro,  tivemos  a primeira, que levou mais de cinco anos para sofrer a primeira emenda. Previa a sua própria revisão em 2.003, a qual, sob essa forma, estamos aguardando até hoje.

A ‘segunda’ veio com as ECs 19 e 20, ambas de 1.998 (respectivamente de 4 de junho e de 15 de dezembro), que alteraram profundamente as regras quanto aos servidores públicos,  no que foram complementadas pela EC 41, de 19 de dezembro de 2.003.

E a ‘terceira’ Constituição veio com esta EC 103, de 12 de novembro de 2.019, que representou uma deflagração nuclear na já tão sofrida, revirada e combalida Carta de então. Foi uma eclosão atômica constitucional.

Segundo alguns critérios de visão ou de leitura pode ser divisada  uma ‘quarta’ Constituição  na história desde 1.988, mas fiquemos com as três acima, essas, sim, nitidamente configuradas.

A cada promulgação de alguma delas o estudo do direito recomeça do zero, como se no jogo de xadrez fosse acrescentado um nono peão, ou como se a dedilhação do violão clássico passasse a incluir o quarto dedo, mínimo: campeões e concertistas, respectivamente,  se reduziriam a  principiantes.

 

III – Dentre as terríveis e quase insuperáveis dificuldades que a decifração, para aplicação racional, da parte relativa à Administração pública que Constituição opõe aos seus comentaristas e aos seus executores, uma é  destacadamente a seguinte:

- nos novelos e no emaranhado cipoal  de dispositivos dos arts. 37 a 41 com frequência  não se enxerga se, neste, naquele e naqueloutro momento, a Carta é nacional ou apenas federal.

Ou seja: se tal ou qual regra vale para todos os entes federados (abrangência nacional) ou se vale apenas para o plano da União (abrangência exclusivamente federal) ([3]).

Muita vez a Carta o separa expressamente, como quando disciplina o Judiciário Federal, o Tribunal de Contas da União ou os militares federais. Ou quando dá as balizas e algumas regras específicas para os Estados e para os Municípios.

Mas amiúde não se dá com essa especificação, e o agente público precisa dar tratos à bola para se haver com racionalidade na aplicação  de dispositivos constitucionais genéricos e amplos, e deve nessa toada  avançar com extrema cautela.

Sim, até porque sabe que todos os olhos da fiscalização e do controle oficial e extraoficial, interno e externo, público ou particular, estão postos sobre os seus atos, sobremaneira se geram despesas.

A exegese constitucional converteu-se  numa arte cabeludíssima, e a sua aplicação numa temerária aventura.

 

IV – Reza o § 3º do art. 40 constitucional:

§ 3º As regras para cálculo de proventos de aposentadoria serão disciplinadas em lei do respectivo ente federativo.   

O dispositivo é um coice na nuca do leitor que não tenha ingressado no serviço público  ontem ou hoje.   Não é propriamente ruim: é tecnicamente pavoroso, uma das coisas mais péssimas que a Constituição poderia engendrar ([4]).

Se existe no direito constitucional brasileiro matéria absolutamente geral nacional, pacificada, consagrada por mais de um século de prática invariável, é a regra da integralidade dos proventos do aposentado em cargo público efetivo.

Seguramente não passa pela ideia de nenhum Governador ou Prefeito, há coisa como um século, a fantasia de criar regras locais sobre tempo de serviço para aposentadoria de seus efetivos. A Constituição sempre foi alfa e ômega, o começo, o meio e o fim dessa questão: fixava as regras, que eram simplíssimas,  e estamos todos conversados.

Mas a brincadeira saía cara, e o é cada vez mais, com o envelhecimento da população, que cresce desenfreadamente neste terceiro mundo ([5]).

A ordenação constitucional, então, premida pelas circunstâncias,  foi se complicando de tal modo nos 35 anos de existência da Constituição que chegamos ao absurdo inacreditável de hoje.

São por ora 128 emendas mais seis de revisão, a tornar nossa Carta um cipoal ou emaranhado impenetrável, com, até dezembro de 2.023,  nada menos que 134 (cento e trinta e quatro) emendas, número que é escrito por extenso para auxiliar a acreditar.

Ninguém mais no Brasil faz ideia do que seja a sua Constituição, convertida no periódico indecifrável e imprevisível que testemunhamos.

Se o  governo – e não falamos  de parlamentares constituintes mas do governo federal, estadual, distrital e municipal, que toureiam o erário e por isso estão sempre por trás  das alterações constitucionais que envolvam despesas com servidores – quer acabar com a aposentação  integral dos seus efetivos, então que, pelos parlamentares que orienta,  tenha coragem de fazê-lo abertamente e de modo explícito, mas não através de um serviço porco como este § 3º do art. 40 da Carta.

 

V  - O § 3º retira, ou tentar retirar,  a responsabilidade da Constituição sobre um assunto – aposentadoria de funcionários efetivos – que, pela técnica, pela lógica, pelo bom-senso e pela racionalidade jurídica e econômica do país, e ainda por princípios de direito com o da igualdade,  não pode ser local.

Se o for, um Município rico pode ter normas  generosíssimas aos seus servidores, enquanto um Município pobre – e essa é  geral – apertará ao máximo o direito do efetivos aposentandos, e aposentados.

Nessa toada um Município pode (poderá ? Poderia ?) fixar em sua lei o tempo de 55 anos de serviço como suficiente para a aposentação, enquanto que outra comuna estabeleceria 70 anos de idade. Alguém concebe algo assim ?

Sim, porque se a Carta não tiver parâmetros rígidos para aquele liberdade legislativa local preconizada pelo novo § 3º do art. 40 constitucional teremos um genuíno vale-tudo nessa matéria previdenciária local.

 

VI – Surgem desse modo inevitáveis e angustiantes indagações, como as seguintes:

- se e enquanto inexistir lei local o estatutário efetivo de cada ente  federado local deixa de ter direito a aposentar-se  ?; 

- quais os parâmetros e os limites dessa liberdade legislativa local ?  Ou efetivamente vale tudo, para cima e para baixo ?

Os Estados, Os Municípios e o Distrito Federal, que sempre estiveram absolutamente amarrados e agrilhoados às regras constitucionais nacionais e imutáveis de aposentação dos servidores efetivos, estarão porventura, agora, livres e soltos para fixarem o que bem entenderem nesse assunto, e fixarem os proventos de seus efetivos que se   aposentem    como bem quiserem e deliberarem ? 

Pode não ser, mas até aqui isto evoca a cena e a ária da loucura da ópera Lucia de Lammermoor, do agradabilíssimo Gaetano Donizetti. 

Vamos devagar, passo a passo, porque devemos acreditar que o mundo não acabou somente com a Emenda Constitucional nº 103, do ano de 2.019.  Já teremos passado por coisa pior em nossa história, e não será a Constituição de 1.988 que conseguirá destruir a Administração pública brasileira, até porque não há mal  que sempre dure.

Também em direito o homem não pode confundir-se com o tempo em que vive. Nem deve imaginar que esta ou aquela regra, ou então uma Constituição assim ou assado que lhe imponham goela abaixo, sejam naturais ou normais. Quem entende normal a doença está em mau caminho.

 

VII – As duas perguntas acima enunciadas se tentam responder pelo compulsamento da matéria constitucional pertinente ao tema, toda ela dada pela EC 103/19 e que á a seguinte, da Constituição:

Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.          

§ 1º O servidor abrangido por regime próprio de previdência social será aposentado:        (...)  

III - no âmbito da União, aos 62 (sessenta e dois) anos de idade, se mulher, e aos 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na idade mínima estabelecida mediante emenda às respectivas Constituições e Leis Orgânicas, observados o tempo de contribuição e os demais requisitos estabelecidos em lei complementar do respectivo ente federativo.          

§ 2º Os proventos de aposentadoria não poderão ser inferiores ao valor mínimo a que se refere o § 2º do art. 201 ou superiores ao limite máximo estabelecido para o Regime Geral de Previdência Social, observado o disposto nos §§ 14 a 16.  (...)          

§ 14. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, regime de previdência complementar para servidores públicos ocupantes de cargo efetivo, observado o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social para o valor das aposentadorias e das pensões em regime próprio de previdência social, ressalvado o disposto no § 16.          

§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 oferecerá plano de benefícios somente na modalidade contribuição definida, observará o disposto no art. 202 e será efetivado por intermédio de entidade fechada de previdência complementar ou de entidade aberta de previdência complementar.          

§ 16 - Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos  §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.  

Entendemos que esta matéria constitucional acima transcrita é o único parâmetro razoável e racional para que Estados, Distrito Federal e Municípios exerçam a competência legislativa que o § 3º do art. 40 lhes outorgou e lhes impôs que exercitem. 

VIII - Então, se assim é algumas  conclusões, passo a passo, são permitidas:

- parece insano por completo, impensável e inimaginável, que a esta altura da história jurídica e institucional do país algum Estado, o Distrito Federal e algum Município cogite em fixar critérios para a contagem de tempo visando a aposentadoria de seus funcionários efetivos de modo diferente do que foi estabelecido na Constituição para a União;

- não se compreende o papel do constituinte, lembrando criança apavorada a correr para baixo da saia da mãe, quando obrigou, no inc. III do § 1ª do art. 40 constitucional, Estados e DF a alterarem suas Constituições, e Municípios a adaptarem suas Leis Orgânicas, para contemplar a que a Carta já dá pronto e acabado para a União;

- o que se imagina e se espera é que todos os entes federados copiem as regras constitucionais, destinadas aos servidores federais, para o seu plano e para o seu nível.  Com efeito, alguém imagina inovar nisso ?    Alguém estará completamente louco até esse ponto ?;

- um procedimento  inteligente para Estados, DF e Municípios, pensamos, seria adaptar suas Constituições e suas Leis Orgânicas para contemplar que as condições e os requisitos para aposentação dos servidores de cada ente são as mesmas fixadas na Constituição para os servidores da União. Apenas isso, sem malabarismos. Devolve-se a competência de fixar esses requisitos para a Constituição Federal, como a dizer: toma que o filho é teu;

- agora uma observação indispensável: Lei Orgânica municipal jamais foi veículo competente para tratar de servidores, muito menos de sua aposentadoria. Nem o regime jurídico único é nem nunca foi assunto para Lei Orgânica municipal !

Absolutamente errada a fútil, despreocupada e leviana previsão do inc. III do § 1º do art. 40, verdadeiro macaco furioso atiçado em loja de louça. A quem não imaginava que a EC 103 pudesse ser pior do que já é, registre mais esse fato;

- sem embargo de tudo isso afirmado, seguramente há e haverá fatores e circunstâncias locais que demandem uma particularização quanto a requisitos e condições quando da aposentação do servidor.

São fatores de naturezas diversas e relativos a circunstâncias equivalentemente diversas, as quais preferimos nem sequer tentar exemplificar por medo de leituras generalizantes,  ampliativas ou analógicas de técnica francamente destrutiva.

Mas seguramente os existem, e deverão ser cuidadosamente contemplados pelos legisladores locais. O que em sã consciência não se admite é que possam variar ao sabor dos gostos locais as bases fundamentais da aposentação, os pilares que regem esse instituto sagrado entre os sagrados, com relação àquelas estabelecidas para a União;

- quanto a regimes de previdência complementar pouco há a comentar. São obrigatórios, precisam ser instituídos e, ao fim e ao cabo, entendemos que para bem do serviço público e das suas finanças. Trata-se de um modo de tentar que os regimes previdenciários próprios sobrevivam, e, se for ruim com eles, certamente será, em pouco tempo mais, pior sem eles;

- os parâmetros para o valor das aposentadorias, com a adesão – para o servidor facultativa – à previdência complementar  e sem adesão, estão fixados na Carta, sem alternatividade permitida.

São algumas conclusões que se delineiam, dentro dessa extraordinariamente complicada matéria constitucional.

Aposentadoria de funcionário efetivo era a mais singela e instantânea matéria constitucional. Hoje é a mais insondável, impenetrável, imprevisível e assustadora de quantas existam.

E a explicação se resume a uma só palavra: dinheiro.

 

 

[1] Artigo Emenda constitucional nº 103 e os servidores públicos, arts. 37 a 40, (partes I e II), publ. em Boletim de Administração Pública Municipal, Fiorilli, dez/21, assunto 457; Revista Governet, Boletim de Recursos Humanos, jan/22, nº 201, p. 12; Revista Síntese de Direito Administrativo, mar/22, nº 195, p. 212; Revista Solução em Direito Administrativo e Municipal, Ed. SGP Soluções em Gestão Pública, ano 4, nº 31 – jan/22, p. 77 (a parte I).

[2] Hoje quem a vê não acredita que ali possa ter havido alguma guerra. E nossa Constituição, terá recuperação similar ?..

[3] Esse problema é absolutamente real. Em certos momentos a Carta se refere expressamente ao plano da União e com isso já exclui os demai níveis federativos, mas em outros momentos não tem essa discriminatória clareza, e o aplicador muita vez perde o rumo de sua casa, mais desorientado que canídeo familiar ao despenhar-se de veículo de logística. Então, assiste razão a quem referencie a Carta pelo seu título oficial de Constituição da República Federativa do Brasil, e não apenas por federal, já que essa denominação, ao fim e ao cabo, rebaixa a Constituição a apenas uma parcela dela, como se fora apenas a Constituição da União.

[4] Evocando uma vez mais o verso do soneto O morcego, de Augusto dos Anjos: Que ventre produziu tão feio parto ?

[5] O Uruguai tem 3,5 milhões de habitantes desde que o mundo é mundo. O Brasil em 1.970 tinha, como lembrava a música futebolística, setenta milhões em ação. Hoje, cinquenta e três anos após aquilo o Brasil tem 213 milhões em ação, mais que duzentos por cento de acréscimo. Não pode dar certo, nem aqui nem em rincão nenhum do planeta, nunca.