TERMO DE REFERÊNCIA NA LEI Nº 14.133/21: MAIS UM PESADELO

TERMO     DE       REFERÊNCIA    NA    LEI   Nº 14.133/21:   MAIS    UM   PESADELO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(out/23)

  

I – Hoje bombardearemos o inc. XXIII do art. 6º da Lei nº 14.133/21, que define o termo de referência.  Aos leitores sensíveis se recomenda discrição.

Termo de referência, para não ir muito longe na retroação,  é uma invenção do inc. II do art. 8º do Decreto nº 3.555, de 8 de agosto de 2.000, que regulamentou o pregão conforme apresentado pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2.002, enquanto ainda era uma medida provisória.

Essa lei, a seu turno, resultou da conversão  da Medida Provisória nº 2.182-18, de 23 de agosto de 2.001, a décima-oitava das sucessivas MPs que, iniciadas pela MP nº 2.026, de 4 de maio de 2.000,  instituíram e foram mensalmente mantendo o pregão para a Administração pública – com ocasionais modificações ao longo dos meses -, tudo isso   após a inspiração dada pela Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1.997, a Lei Geral das Telecomunicações, que, esta, sim, concebeu o pregão para a ANATEL.

Após aquela difícil gestação e tumultuado parto o pregão ganhou grande aceitação e popularidade nos entes públicos, essencialmente  pela imensa simplificação que proporcionou para a aquisição de bens e serviços comuns – esse é objeto do pregão.

Ocorre  que desde sempre as contratações pelo pregão, ainda que limitadas na lei àqueles  dois objetos, sempre foram alargadas, na marreta,  para abranger algumas obras e alguns serviços mais do que complexos. É a típica atitude brasileira: se a ilegalidade é útil, então deixe-se-a quieta, e por favor não se fale no assunto.

 

II – Termo de referência não é nada além da descrição das características do objeto a adquirir, que a nova lei de licitações tenta organizar e sistematizar, porém com resultado simplesmente desastroso.

É de resto apenas um nome a mais, uma burocracia completamente dispensável, um outro papel e um outro roteiro  que o legislador inventou, absolutamente  desnecessário no processo da licitação se a descrição das características do objeto em competição é adequada e completa.

Jamais precisaria existir sob essa roupagem. Antes de 2.000 não existia, mas nem por isso se deixaram de realizar todas as licitações necessárias no país, com plena suficiência.

Na Lei nº 14.133/21 –  que ainda  hoje, outubro de 2.023,   é a  lei   será que vem ?  Será que não vem ? – o termo de referência assim foi descrito:

Art. 6º  Para os fins desta Lei, consideram-se: (...)

XXIII - termo de referência: documento necessário para a contratação de bens e serviços, que deve conter os seguintes parâmetros e elementos descritivos:

a) definição do objeto, incluídos sua natureza, os quantitativos, o prazo do contrato e, se for o caso, a possibilidade de sua prorrogação;

b) fundamentação da contratação, que consiste na referência aos estudos técnicos preliminares correspondentes ou, quando não for possível divulgar esses estudos, no extrato das partes que não contiverem informações sigilosas;

c) descrição da solução como um todo, considerado todo o ciclo de vida do objeto;

d) requisitos da contratação;

e) modelo de execução do objeto, que consiste na definição de como o contrato deverá produzir os resultados pretendidos desde o seu início até o seu encerramento;

f) modelo de gestão do contrato, que descreve como a execução do objeto será acompanhada e fiscalizada pelo órgão ou entidade;

g) critérios de medição e de pagamento;

h) forma e critérios de seleção do fornecedor;

i) estimativas do valor da contratação, acompanhadas dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, com os parâmetros utilizados para a obtenção dos preços e para os respectivos cálculos, que devem constar de documento separado e classificado;

j) adequação orçamentária;

Comentemos este verdadeiro tango triste.

 

III – O pauperismo redacional do inciso é desalentador. Menciona que o termo de referência é necessário para a contratação de bens. Então uma geladeira, um fogão ou um automóvel podem ser contratados ?  Assinam o contrato ?    Negociam as cláusulas ?

Se for um automóvel, será a compra ou a locação ?  Está tudo embolado ?

Então o termo de referência será mesmo  necessário para, digamos, toda compra de bens ? A compra de um milhar de resmas de papel sulfite acaso exigirá um  termo de referência na licitação ?   Dez milhares de tijolos, idem ?    Quarenta mil litros de óleo de peroba, ibidem ?

Não basta, em todas essas hipóteses, o ente informar no edital o que que adquirir, como uma criança diz ao atendente de um depósito de material de construção o que quer, que mamãe mandou comprar  ?  Correr toda a lista de itens do termo de referência para comprar vinte sacos de arroz ?

Ou mesmo serviços simples, como de transporte ou de mudança sem maior complicação logística, estratégica ou operacional ... será que um objeto assim exige termo de referência na licitação ? Não basta  o ente público escrever no edital o que quer – que é muito simples ?

Como se justifica  a despreocupada generalização do inciso, que parece ter sido escrito enquanto o legislador jogava videogame com o neto ?   Será mesmo sempre necessário o termo de  referência para licitação de negócios tão primitivos, corriqueiros  e banais ?

 

IV – Sendo certo  que não, passemos aos itens do termo de referência, das als. a a j.

A al. a, definição do objeto, resume só em si, imagina-se, tudo o que se faz necessário escrever na maioria dos  editais para que o licitante saiba exatamente o que quer a Administração adquirir.

Quase todo compra de bens só com esta alínea já pode ser licitada com clareza e objetividade suficientes.

Se por exemplo o ente quer comprar mil sacos de arroz agulhinha, de 50 Kg cada,  para entrega à razão de cem sacas por mês no   local x, num contrato improrrogável de dez meses, então o quê mais é necessário informar no edital ? Fundamentação da contratação ? Descrição da solução como um todo ?  Requisitos da contratação ?  Modelo de execução do objeto ? Modelo de gestão do contrato ?  Critério de medição e pagamento ?    Seleção do fornecedor ?  Adequação orçamentária, que é problema interno do ente, e nada tem com o fornecedor ?

É piada ?  Isto é teatro de humor ?

Muito bem: repetindo, quase toda compra dispensa todas as alíneas do inc. XXIII, menos a primeira.

Por que motivo deve o autor do edital torturar-se para tentar aplicar o rigorosamente inaplicável e incabível  num edital para a compra de sardinha em lata, paçoquinha sem açúcar e tomate gigante da Calábria ?

A lei não é o que parece, gentil leitor, e ai de quem se enlear no seu canto de Ossanha ...

 

VI – Os esotéricos  itens a constar do termo de referência prosseguem na al. b, que refere a fundamentação da contratação. Lendo o dispositivo até o fim não se consegue concluir se se está diante de obrigação ou de divertido devaneio.  A lei parece uma brincadeira,  ridícula a mais não  poder.

Referência aos estudos preliminares ?..  o legislador está na posse de suas faculdades mentais ? Que raio de diabo vem a ser isso ?  Estudos preliminares parta comprar um lote de cebolas ?

Extrato com informações sigilosas ?    Que é isso ?    Se são informações não podem ser sigilosas, ou de outro modo serão, talvez,  informações reservadas ao serviço secreto.  O legislador acaso fala português ?

A al. c é pior ainda. Manda que o termo de referência contenha ‘descrição da solução como um todo, considerado todo o ciclo de vida do objeto’.  Então o carregamento de cebola tem um ciclo de vida ?  Imaginamos que sim, porque a cebola apodrece se não for utilizada a tempo. Será a isso que o legislador se refere ?

Como se percebe trata-se de lei que de vez em quando dá certo, vale dizer: lei de quem não sabe fazer lei.   Por vezes a hipótese do dispositivo se enquadra na situação da vida real – muito de vez em quando. A generalização é deletéria, e explica por quê se afirma que em nossos julgamentos  não se deve generalizar.

A al. d menciona os requisitos da contratação, porém isso em grande parte integra a al. a, um vez que se confundem requisitos da contratação com a própria descrição do objeto, como quanto a quantidades, qualidades e prazos, por exemplo.

Uma boa descrição do objeto deve absorver os requisitos da contratação pretendida, a todos ou a quase todos incluindo naturalmente, já que para isso existe a descrição.

Assim, o que no edital acaso faltar à descrição do objeto, como por exemplo detalhes peculiares de alguns contratos – cuja matéria seja apenas formal-jurídica  e inconfundível com o objeto - deve ser completado com base em, e por força desta, al. d.

 

VII – Compreende-se o teor da al. e, porém na ânsia de originalidade a lei reveste uma ordem  simples com palavras que em nada auxiliam a aplicação: por quê ‘modelo de execução do contrato’, e não apenas informações sobre a execução, ou regras para a execução ?

O autor do edital deveria então pensar em um modelo de execução para cada diferente contrato – ao invés de simplesmente indicar regras para a execução a cada caso ?

De mais a mais a ordem não faz muito sentido, porque dá a entender que a Administração necessariamente extrairá do contratado a execução assim ou assado, com resultado predeterminado, quando se sabe que o máximo a fazer é dar a regra e fiscalizar atentamente a sua execução – mas jamais, apenas por isso,  o resultado estará garantido, porque apenas em parte depende do gestor.

A al. f incide na mesma presunçosa suposição da alínea anterior. Um edital não há de ter ‘modelos de gestão’, mas tão só orientar sobre como a gestão será exercida neste contrato em questão, fazendo-o em linhas gerais e até certo ponto avançando em particularidades – mas não cabe a um edital apresentar um modelo de gestão, sob essa fantasiosa categorização.

Regras pontuais para a gestão de dado contrato  são uma coisa; modelo de gestão é bem outra, cabível e  necessária nos órgãos internos mas não no edital de uma específica licitação.

 

VIII – Entendemos que os critérios de medição e de pagamento, a que se refere a al. g, deveriam estar incluídos, e em destaque dada a sua relevância para as partes, dentre os itens componentes da al. d, dos requisitos paa a contratação.

Não se imagina que dali não constem, porque em geral é esse o ponto que chama a atenção do interessado antes que qualquer outro: -  quanto, quando e como irei receber.

E parece também de pouca técnica, do autor do edital,  deixar de os prever nos requisitos (al. d) para deixá-los apenas para esta al. g.  E é sempre proveitoso ser bastante claro quanto aos detalhes das medições e dos pagamentos, de molde a evitar questionamentos acerca do que deveria estar explicadíssimo no edital.

A al. h vista isoladamente é patética, porque o   regime de execução (empreitada por preço global, empreitada por preço unitário), e o escolhido critério de julgamento (menor preço, técnica e preço), apenas essas duas definições já indicam a ‘forma e os critérios de seleção do fornecedor’. Além disso o art. 92, inc. IV, que descreve as cláusulas obrigatórias do contrato, já contém esta previsão, como as de todo este inc. XXIII do art. 6º.

 

IX - Mas o patetismo, dentro deste  todo patético inc. XXIII do art. 6º da lei, prossegue nas duas alíneas finais, i  e j.

A al. i manda que o termo de referência contenha estimativa do valor do futuro contrato.  É muito melhor a técnica da Lei nº 8.666/93, que no art. 40, § 2º, manda que o edital tenha alguns anexos, como o do (inc. II) orçamento estimado em planilhas e quantitativos de custos unitários.

Muito melhor é concentrar as exigências do edital em um único artigo, como o art. 40 da Lei nº 8.666, que inventar termo de referência – absolutamente desnecessário e prolixo quando poucos anexos do edital podem conter toda a informação necessária às partes.

Muito melhor a fórmula da Lei nº 8.666/93 que a desta nova lei, que diz a mesma coisa em vários momentos distantes entre si, desorientando e desanimando profundamente o autor do edital, a Administração como um todo e o licitante.

A al. j, por fim,  repete a baboseira da Lei nº 8.666/93 ao mandar fazer constar do termo de referência – que é dirigido ao licitante - a adequação orçamentária da despesa pretendida, algo que interessa 100% ao ente licitador e 0% ao licitante.

Lembra lavar roupa suja fora de casa, ou falar alto ao celular e informar aos circunstantes algo que não lhes interessa e que eles não querem ouvir.

Matéria como essa jamais deveria constar sequer do edital, eis que serve apenas para informar órgãos internos de contabilidade e de execução orçamentária do licitador. Mas a embaraçosa previsão, repita-se, já consta do art. 55, inc. V, da Lei nº 8.666/93, não se devendo a invenção à nova lei.

 

X - Seja como for e em remate, o termo de referência sempre foi absolutamente inútil: na lei do pregão que o inventou e agora na Lei nº 14.133/21. É invenção ou de desocupados crônicos ou matéria de terapia ocupacional, sabe-se lá para quem.

Foi uma má ideia da lei do pregão, em má hora estendida à nova lei de licitações, que dele necessita tanto quanto de mais um terremoto na Turquia, ou uma invasão de gafanhotos.

A pura e simples descrição o objeto e a enunciação das regras do contrato que o ente público quer celebrar, com todo o detalhe necessário e que seja justificável, é mais do que suficiente para atender a necessidade da Administração, sem requerer os horrores burocráticos, a selva de informações - não raro desencontradas e contraditórias entre si – e a parafernália de instituições de ínfima ou de nenhuma relevância de que está composta toda esta Lei nº 14.133, do ano da graça de 2.021.

Aquela que não se sabe se vai ou se fica.