Artigo
REPACTUAÇÃO E SEUS HORRORES. O ART. 135 DA LEI Nº 14.133/21
REPACTUAÇÃO E SEUS HORRORES. O ART. 135 DA LEI Nº 14.133/21
Ivan Barbosa Rigolin
(fev/24)
I – O tema desta vez é a repactuação dos contratos, focando-se o art. 135 da nova lei de licitações. E outra vez ocorre de os parágrafos do dispositivo constituírem uma penitência do aplicador, ou o resgate antecipado de algumas de suas culpas e suas mazelas, que há de servir como crédito no julgamento final.
O legislador nesta nova lei escreve o caput para cumprir sua função de legislar, e depois passa a redigir os parágrafos como desforra de alguma frustração, vingança, sadomasoquismo, tara profissional ou outra aberração comportamental que mereceria terapia adequada. Poderiam ser classificados como recalques legislativos, seguramente tratáveis se detectados no início.
É impressionante, sempre nesta nova lei de licitações, a derrocada qualitativa da abertura do artigo e o subsequente quadro dos parágrafos, em que o legislador parece excluir a censura do que produz, devendo sentir-se no direito de extravasar suas mágoas e suas irrealizações, ou seus dramas internos menos confessáveis. Ou parece, de outro modo, que o autor do caput é um e o autor dos parágrafos é outro, atuando na sombra e na polaridade do primeiro.
Com efeito se afiguram dois mundos distintos, e esta nova lei melhoraria extraordinariamente se ao menos metade dos parágrafos simplesmente não existisse, ou caso fosse revogada se possível até o final do expediente de hoje. A sua despiciência, inutilidade, rebarbatividade, e o seu artificialismo, espoucam à primeira leitura, sem disfarce possível.
Mas prossigamos.
II – Eis o art. 135 da Lei nº 14.133/21:
Art. 135. Os preços dos contratos para serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou com predominância de mão de obra serão repactuados para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, mediante demonstração analítica da variação dos custos contratuais, com data vinculada:
I - à da apresentação da proposta, para custos decorrentes do mercado;
II - ao acordo, à convenção coletiva ou ao dissídio coletivo ao qual a proposta esteja vinculada, para os custos de mão de obra.
§ 1º A Administração não se vinculará às disposições contidas em acordos, convenções ou dissídios coletivos de trabalho que tratem de matéria não trabalhista, de pagamento de participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados do contratado, ou que estabeleçam direitos não previstos em lei, como valores ou índices obrigatórios de encargos sociais ou previdenciários, bem como de preços para os insumos relacionados ao exercício da atividade.
§ 2º É vedado a órgão ou entidade contratante vincular-se às disposições previstas nos acordos, convenções ou dissídios coletivos de trabalho que tratem de obrigações e direitos que somente se aplicam aos contratos com a Administração Pública.
§ 3º A repactuação deverá observar o interregno mínimo de 1 (um) ano, contado da data da apresentação da proposta ou da data da última repactuação.
§ 4º A repactuação poderá ser dividida em tantas parcelas quantas forem necessárias, observado o princípio da anualidade do reajuste de preços da contratação, podendo ser realizada em momentos distintos para discutir a variação de custos que tenham sua anualidade resultante em datas diferenciadas, como os decorrentes de mão de obra e os decorrentes dos insumos necessários à execução dos serviços.
§ 5º Quando a contratação envolver mais de uma categoria profissional, a repactuação a que se refere o inciso II do caput deste artigo poderá ser dividida em tantos quantos forem os acordos, convenções ou dissídios coletivos de trabalho das categorias envolvidas na contratação.
§ 6º A repactuação será precedida de solicitação do contratado, acompanhada de demonstração analítica da variação dos custos, por meio de apresentação da planilha de custos e formação de preços, ou do novo acordo, convenção ou sentença normativa que fundamenta a repactuação.
III – Por partes, como preferia Jack, o estripador:
a) o instituto escolhido pela lei para prover o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos que o caput menciona foi a repactuação. Essa palavra significa revisão, reformulação, rearranjo, recombinação, renegociação, ou simplesmente a formulação de um novo pacto para substituir ou pra atualizar o inicialmente celebrado. Qualquer destas palavras serviria;
b) repactuação exclui a ideia de mera atualização financeira pelo índice contratado no momento contratado, ou reajuste, ou reajustamento, todos que se dão por mero apostilamento, ou anotação, ou averbação, sempre pelo gestor do contrato, e não alteram o contrato nem exigem termo aditivo, nem autorização superior. É mais que isso, e como alteração do contrato demanda demonstração da alta dos custos do contratado e de acordo entre as partes, para a formalização de um aditamento. Nada tem de ‘automático’ ou ‘semiautomático’ como um simples reajuste pelo índice pactuado;
c) os contratos objeto deste art. 135 são de (I) serviços contínuos com regime de (II) dedicação exclusiva de mão de obra ou (III) com predominância de mão de obra. Estão portanto excluídos contratos de obra e de compra, assim como contratos de serviços não-contínuos, ou contratos de serviços contínuos que não de dedicação exclusiva de mão-de-obra ou com predominância de mão-de-obra;
d) assim sendo, para esses últimos contratos mencionados não se aplica este art. 135 na sua eventual repactuação; o art. 135 pode inspirá-la, mas não será a fonte de direito da sua repactuação. Mas isso não significa que não podem ser repactuados, e essa ideia não faz o menor sentido; apenas a fonte direta de direito é que é outra.
IV – Agora os parágrafos, que merecem os seguintes comentários:
a) os §§ 1º e 2º, abordados em conjunto, levantam hipóteses que, pensamos, dificilmente passariam pela cabeça de alguém, mais ou menos como a ideia um fabricante se preocupar em aumentar a quantidade de determinado componente químico do afugentador de duendes que fabrica, ou algo parecido;
b) proíbem que o ente público contratante (§ 1º) se envolva ou se vincule contratualmente com assuntos internos do contratado (como cláusulas não-trabalhistas das convenções coletivas), e – agora é pior – (§ 2º) proíbem que o ente público se vincule a ‘disposições previstas nos acordos, convenções ou dissídios coletivos de trabalho que tratem de obrigações e direitos que somente se aplicam aos contratos com a Administração Pública’;
c) ora, se porventura existem disposições que apenas se aplicam ao poder público, e se elas estão presentes em dado contrato público, então como delas ‘desvincular’ o ente contratante ? Como se pode desvincular o poder público de algo que somente foi concebido para o próprio poder público ? Isto constitui uma carta enigmática de almanaque de farmácia, muito em voga nos anos 20 e 30 do século passado, mas na lei atual de licitações é uma instância no mínimo patética.
d) Como se disse, é inimaginável de onde surgiram as ideias destes §§ 1º e 2º. Seria como se vacinar contra uma doença erradicada no século XII, ou como disciplinar a construção de abrigos contra ataques aéreos dos nazistas do terceiro reich, a cargo do ‘bigodinho’ proveniente do mais fundo inferno.
De possivelmente proveitoso nesta vista d’olhos apenas se pode recomendar ao autor dos editais e das minutas de contrato que jamais deixe sequer passar por perto a possibilidade de incidir nestas proibições, ou mesmo ventilar essa hipótese, eis que inútil, despropositada, descabida e por completo estranha a uma concepção normal e sadia de cláusulas contratuais.
V – O § 3º não tem muita lógica, e apenas de vez em quando faz sentido. Assim como não existe data para ficar doente ou para bater o carro, não pode haver previsão do momento de pedido de repactuação, como se apenas os aumentos salariais dos empregados do contratado fossem o único motivo e nesse momento o parágrafo faz sentido, já que os aumentos são anuais.
Pode existir motivo mais do que relevante a qualquer tempo para o contratado requerer a repactuação, bastando provar que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato foi rompido por circunstâncias alheias à sua vontade.
Do modo como redigido dá a ideia de que o único fundamento da repactuação é a variação da remuneração dos empregados do contratado, quando todo sabem è exaustão que esse - que é previsível – é apenas um motivo dentre infindáveis outros. Então, nenhum sentido faz congelar a repactuação até decorrer um ano da contratação.
Repactuação é revisão que pode ser necessária por inúmeros motivos, de modo que não se pode fazer o contratado requerente aguardar até perto de um ano para ter estudado o seu requerimento – repita-se, mesmo que o contrato seja principal ou exclusivamente de mão-de-obra. Motivois de força maior, durante todos os dias do ano, sempre ocorrem, e são perfeitamente delimitáveis e financeiramente quantificáveis.
Não tem muito futuro este § 3º, pois que não se concebe que a teoria ou o regramento da repactuação seçja diferente enrte as várias espécies e enrte os vários objetos de contratos.
O § 4º, a seu turno, é simplesmente horroroso. Pela sua leitura a lei tenta preservar a inaplicável anualidade do § 3º na marra, a força, seja como for.
Então um contrato é repactuado por causa do reajuste de uma categoria de empregados, verificando-se o que isso representa para o valor do contrato. Dois meses depois, outra categoria tem reajuste, e se repete o cálculo da nova repactuação proporcional.
Assim, se houver cinco catgegorias profissionais, cada qual com reajuste ou normação coletiva de reajuste em época diversa da das outras, então por cinco vezes o contrato é repactuado, num trabalho multiplicado, dificílimo, incerto, nem um pouco econômico, nem direto, nem objetivo.
Se a lei quis ser austera com a possibilidade de repactuação, neste momento arregaçou a sua austeridade, e permitiu uma autêntica farra-do-boi em matéria tão sensível. O desserviço que que as múltiplas possibilidades de repactuação abrem é inestimável, e se augura que jamais o ente contratante se valha deste degradante § 4º, pior do que o qual é impossível imaginar.
Até aqui, temos:
1º) repactuação não pode ter data certa, porque isso contraria sua imprevisibilidade. O que é previsível é o reajustamento ou reajuste, isso, sim;
2º) repactuação parcelada em fatias piora o quadro e agrava o destrato legal do instituto. Equivale a soltar macaco furioso em loja de cristais, ou promover tourada dentro de um museu de arte.
VI – O § 5º é apenas uma exemplificação da balbúrdia que o § 4º, se utilizado como está escrito, decerto promoverá dentro da Administração contratante. Merece os mesmos comentários e idêntico repúdio.
A só ideia de que a repactuação pode ou deve s levar em conta as diversas catgegorias profissionais existentes dentro da empresa contratada é repita-se, juridicamente doentia. Não tem a mais remota condição de dar bom resultado, e a autoridade que for incauta a ponto de experimentá-la bem logo saberá do que aqui se fala.
O § 6º reforça a ideia de que apenas revisões remuneratórias dos empregados do contratado podem ensejar repactuação. Esquece-se de que mais fatores de azar, de força maior, de casos fortuitos, de acontecimentos cercados pelo aleatório também podem demandar pedidos de repactuação.
E olvida-se também o dispositivo de que não é apenas o contratado que pode requerer repactuação. mas também a Administração pública contratante. Fatos podem ocorrer que reduzam os custos do contratado, ligados ou não ao mundo exclusivamente trabalhista ou previdenciário, que demandem repactuação a ser requerida pelo ente público contratante.
Um exemplo do dia: se o governo federal conseguir suprimir a desoneração (previdenciária) da folha de pagamento, então os custos trabalhistas do empregador darão um salto, e nesse primeiro momento o contratado pedirá repactuação.
Entretanto, se e quando voltar a desoneração será o poder público contratante que baterá às portas do seu contratado, exigindo redução do valor do contrato. Repactuação é via de mão dupla, mas o legislador parece ignorá-lo.
Que todas as forças do universo em assembleia reunidas protejam a nação brasileira da nova lei de licitações e de contratos administrativos, se for exercitada com a inconsciência informativa de muitos de seus dispositivos.