NEPOTISMO

SOBRE O NEPOTISMO. 

UMA REFLEXÃO SOBRE MORALIDADE E MORALISMO

 Ivan Barbosa Rigolin


I – O título remete a  um tema que está em máxima evidência nos dias que passam, o combate ao chamado nepotismo, que é o modo como ultimamente se alude ao  emprego e ao aproveitamento, no serviço público,  de parentes de autoridades competentes para nomeá-los ou contratá-los sem o crivo do concurso público, mas apenas pelos laços de confiança pessoal e familiar,  para ocupar cargos ou empregos em comissão.  Se aqueles parentes, ao invés daquilo,  forem publicamente concursados para cargos efetivos ou empregos permanentes, então farão descaracterizar a figura tão combatida do favorecimento.

Referir o nepotismo na administração pública é portanto um dos últimos modismos vernaculares, sendo que a palavra se origina de nepos, forma latina para neto ou sobrinho ([1]) e daí, por generalizante extensão, parente, em sentido o mais amplo possível. O indevido favorecimento ou privilegiamento de parentes das autoridades em desfavor de cidadãos não-parentes, desse modo, configura o que se convencionou designar, sempre ofensivamente,  por nepotismo na Administração.

O assunto, tão grave se revela aos olhos da indignada população – sobretudo e muito especialmente os dos cidadãos que não se beneficiam do oficial parentesco -, em nosso país  é objeto de uma Proposta de Emenda Constitucional que tramita no Congresso Nacional desde 1.996, e que já sofreu tantas e tão profundas emendas que pouco restou da idéia original do seu autor. Apenas se constar alguma explícita regra antinepotismo na Constituição é que, parece, a nação terá um norte definitivo e homogêneo sobre a questão.

Aquela PEC de tempo em tempo sofre andamento e modificação, sendo que é voz corrente no Legislativo nacional – até surgir novo e diferente boato - que em breve será substituída por outra inteiramente diversa, de outra redação e pretensão.

O impasse que por certo se dá é o de equacionar devida e corretamente o problema no âmbito da Administração, uma vez que toda tentativa de fazê-lo em nível e plano nacionais até o momento esbarrou em impropriedades, exageros, inadequações as mais variadas, incongruências, excessos de rigor ou, no outro pólo, medidas de pouca eficácia.

O fato concreto é que, considerando-se tanto  o legislador constitucional quanto internamente  a Administração, nenhum  até o momento soube equacionar devidamente a questão de limitar, ou proibir, ou restringir o aproveitamento, no serviço público de todo nível e natureza,  de parentes de autoridades dos diversos Poderes.

Aguarda-se portanto há mais de uma década uma definitiva Emenda Constitucional que de vez equacione, resolvendo-a,  a questão do denominado nepotismo no serviço público, porém, objetivamente,  a solução parece ainda longe de ocorrer no plano constitucional.

E a experiência indica que apenas medidas localizadas, pontuais e tópicas, dentro de um Poder ou dentro de um ente estatal específico, vêm sendo adotadas cá e lá, com mais e com menos acerto e às apalpadelas,  na tentativa de parametrar objetiva e equanimemente o problema do nepotismo oficial.  O fato é que essa palavra até os dias de hoje carrega, na consciência da população,  conotação fortemente negativa, pejorativa, pecaminosa, aviltante, depreciativa, denegritória, detrimentosa, indigna.

Se em parte é merecida aquela conotação no juízo comum das pessoas, entretanto perante o direito constitucional desprezível nos parece a conotação, e não o próprio nepotismo, pois nunca foi tão importante separar a voz comum do povo – sábia segundo alguns – do direito positivo que vigora no país, e que por vezes caminha  na direção inversa do sentimento generalizado do povo. 

Ficamos, desde logo, com este último e não com a sabedoria popular, essa mesma que a seu tempo  mandou crucificar Jesus Cristo, e que elegeu nos dias de hoje os atuais governantes da República.


II – A primeira  vocação do cidadão, o seu primeiro ímpeto ou o seu arroubo inercial é a de convictamente entender que sempre qualquer nepotismo é inadmissível e inaceitável por imoral por injustamente  personalístico, desigualatório, anti-isonômico. E conhecendo um pouco a espécie humana tristemente reiteramos:  é mais forte aquele reproche espontâneo quando o nepotismo é alheio e beneficia a outrem, exatamente como asseverava o conhecido moralista profissional que não suportava privilégios, muito em especial quando deles não participava. Assim, se para cada parente beneficiado mil cidadãos não o são, natural resulta que a opinião pública seja a dos mil e não a do único – e tenderá a ser desfavorável à prática.

Isentemo-nos entretanto de tais penosas observações – eis que a verdade é por vezes profundamente incômoda aos cultores da ciência da moralidade -  e procuremos focar com a maior objetividade possível, sem paixões e à distância de jogos emocionais,  o que de verdadeiramente deletério ao direito, ampla e sistematicamente considerado, contém o ato ou a prática de se empregarem parentes das autoridades no serviço público.


III – Toda análise de questão jurídica num país, como o nosso, institucionalizado e constitucional, naturalmente deve iniciar pelo texto da Constituição.

E nossa Constituição nada menciona em específico, nem remotamente, sobre o tema do emprego de parentes, e correlatos das autoridades nomeadoras, na Administração Pública. Nem uma breve referência a esse tema consta de modo explícito, ou mesmo implícito, da Carta de 1.988. O assunto é-lhe por completo estranho e inusitado – como de resto o é desde a primeira Constituição brasileira, que como todas até o presente jamais  se abalançou a restringir nepotismos na Administração.

Ninguém invoque regras constitucionais expressas contra o nepotismo, portanto.

Muito ao contrário, o pouco que a Constituição contém de possivelmente vinculado ao tema da escolha dos ocupantes de cargos e empregos em comissão  parece abrigar ou amparar o nepotismo, na medida em que o art. 37, inc. II, dispensa do concurso público a nomeação de ocupantes de cargos em comissão, desde que declarados em lei de livre escolha pela autoridade. 

É o que atesta Rodrigo Andreotti Musetti, que inicia por citar Diógenes Gasparini e prossegue com a lúcida altivez que se espera de um jurista não impressionável com o clamor das multidões, muita vez  ditado apenas pelo modismo circunstancial da ocasião, nem preocupado em agradar a leigos com discursos pouco proveitosos ao direito a que jurou servir.   Leia-se esta sua corajosa lição – e o leitor desde logo nos escuse pela extensão do trecho, que exige transcrição integral -, do artigo muito significativamente intitulado O nepotismo legal e moral nos cargos em comissão da administração pública:

“Nesse sentido, o renomado jurista Diógenes Gasparini ensina que são “... de duvidosa constitucionalidade as vedações impostas por certas Leis Orgânicas Municipais ao direito de livre nomeação que a Constituição federal outorga à autoridade competente para escolher os ocupantes de cargos, funções ou empregos em comissão”.

Não possuímos nenhuma dúvida sobre a inconstitucionalidade de qualquer restrição à livre nomeação supra-referida. A Constituição é clara ao garantir que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei (art. 37, I). O requisito constitucional (da Lei Maior), para a investidura nos cargos em comissão, é, portanto, da livre nomeação. Também não restam dúvidas sobre a ilegalidade e imoralidade das nomeações, sem concurso público, feitas fora da exceção constitucional dos cargos de confiança.

Negar o acesso ao exercício da função pública, em cargo de confiança (previsto e garantido pela Constituição Federal), a um brasileiro que já tenha parente servidor público é, além do já exposto, ferir o direito constitucional e humano desta pessoa ao acesso à função administrativa em virtude de notória discriminação pessoal. Como dissemos anteriormente, é natural, ético, moral e legal que pessoas pretendam se estabelecer nas cidades onde nasceram e procurem oportunidades de emprego nas universidades, empresas e Administração Pública local; ignorar este fato lícito é, no mínimo, demonstrar imaturidade intelectual ou mesquinha intenção partidária-eleitoral. Está evidenciado, portanto, que nepotismo é prática legal, permitida e resguardada pela Constituição Federal brasileira, nos casos de cargo de confiança.(...)

É comum encontrarmos afirmações de que “o nepotismo pode ser legal, mas é imoral”. Pondere-se, aqui, que ao profissional do Direito não é permitido cometer tamanha incorreção. É princípio elementar da Administração Pública o princípio da moralidade, disposto no caput do art. 37 da Constituição da República. Esclareça-se que a moralidade administrativa (resguardada pelo princípio da moralidade), pressuposto de validade de todo o ato administrativo, refere-se à moral jurídica, não confundindo com a moral comum.” ([2])


IV - Ora, com todo efeito, se se está diante de cargos criados e destinados para nomeação ditada pela  livre escolha da autoridade, e se forem preenchidos os requisitos da lei criadora – como escolaridade ou experiência por exemplo -, então é de se indagar que outra regra se poderia antepor, na mesma Constituição,  à escolha efetivamente pessoal e livre pela autoridade, a qual escolha recaísse, porventura, na sua mãe, na sua avó ou na figura de seu bondoso jardineiro?

Assim como a Itália e o Uruguai experimentaram súbito e decisivo progresso institucional e social  quando separaram o estado da igreja, é preciso que os cultores do direito separem rigidamente a técnica jurídica da moral comum, porque em dado momento um representa o avesso do outro, e a sua intrínseca negação. 

Sim, porque se o direito existe é para ser tecnicamente executado por via de  suas  regras próprias e suas estatuições objetivas, que não toleram meras impressões de leigos, nem amadorismos populares, nem modismos casuais  frivolamente  lançados ao vento, nem paixões momentâneas que com freqüência impelem nações inteiras ao abismo e a nada mais que isso.


V - Apartadamente de quaisquer pruridos moralistas - aos quais jamais fomos dados e os quais em verdade odiamos com o mais profundo de nossa alma -, o direito constitucional expresso, friamente considerado, é aquele acima exposto. E contra esse direito expresso e explícito que a Carta confere à autoridade, por gentileza, ninguém invoque princípio algum, pois que os princípios constitucionais, posto que respeitabilíssimos em si, apenas e tão-somente podem  entrar em cena quando faltam comandos constitucionais expressos e delimitadores dos campos de direitos e de obrigações interpartes, nunca antes por prematuro e indevido

Por tudo quanto é sagrado, não se invertam os valores jurídicos num país há quinhentos anos juspositivista !

Contra um comando constitucional completo em si e auto-suficiente nada podem todos os princípios constitucionais, em perpétua assembléia reunidos. É o que conclui sem meias-palavras o ilustre Promotor de Justiça do Rio de Janeiro,  Emerson Garcia, em seu artigo O nepotismo:

“Em um primeiro momento a conduta acima mencionada (nomeação de parentes par o provimento de cargos em comissão) poderia ser considerada como dissonante do princípio da moralidade administrativa, pois fere o senso comum imaginar que a administração pública possa ser transformada em um negócio de família. Este argumento, não obstante o seu acentuado cunho ético, não subsiste por si só.

Com efeito, a partir do momento em que o Constituinte consagrou a existência das funções de confiança e dos cargos em comissão, é tarefa assaz difícil sustentar que os valores que informam a moralidade administrativa, originários das normas que disciplinam o ambiente institucional, não autorizam que o agente nomeie um parente no qual tenha ampla e irrestrita confiança. Note-se que nos referimos à moralidade administrativa, princípio densificado a partir dos standards de conduta colhidos no ambiente institucional e inerentes ao bom-administrador.” (Grifos originais) ([3])

São refletidas palavras, observe-se bem, de um visivelmente qualificado Promotor de Justiça, e não de um  aventureiro   a desabafar-se, em matéria de direito,  à falta do que mais fazer ...

Com todo efeito, em nosso país juridicamente positivista e no qual a fonte primária de direito é a Constituição escrita e a lei escrita, conduta alguma de autoridade pode ser considerada principiologicamente inconstitucional por  apenas fazer exercitar  um  direito que a Carta expressamente conferiu àquela autoridade.

Repetindo, então, para fechar o raciocínio: se a Constituição, art. 37,  inc. II, deu ao agente nomeador o expresso direito de admitir quem bem entender (que preencha os eventuais requisitos da lei) para um cargo de confiança regularmente criado por lei, então não será princípio algum que poderá negar-lhe aquele direito, e com isso negar vigência à Constituição Federal.

Por mais relevantes e essenciais que sejam os princípios constitucionais, não se concebe que se situem acima da Constituição.

 
VI – Se a Constituição só em si não combate o nepotismo na Administração – e como se viu até o prestigia sob certo aspecto -   resta de um lado às leis locais, se o respectivo ente federado assim o quer, fazê-lo, mais ou menos apertadamente, com maior ou menor tolerância e flexibilidade.  Recorde-se, en passant, que não poderia ser uma lei nacional que o fizesse, porque à falta de fundamento constitucional expresso lei nacional alguma com esse teor poderia ser validamente editada.

A Lei federal nº 8.112, de 11 de dezembro de 1.990, que é o regime jurídico único dos servidores federais (o seu estatuto, em verdade) em seu art. 117, inc. VIII, proíbe ao servidor estatutário pertencente aos quadros dos cinco Poderes da União – pois que ninguém duvide de que o Ministério Público  e o Tribunal de Contas são o quarto e o quinto, ao lado dos tradicionais três - e aos órgãos de linha do Executivo como autarquias e fundações públicas,  a todos os quais se aplica aquela lei, “manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil”.

A Lei federal nº 11.416, de 15 de dezembro de 2.006, que dispõe sobre as carreiras do Poder Judiciário da União, reza: “Art. 6o  No âmbito da jurisdição de cada tribunal ou juízo é vedada a nomeação ou designação, para os cargos em comissão e funções comissionadas, de cônjuge, companheiro, parente ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros e juízes vinculados, salvo a de ocupante de cargo de provimento efetivo das Carreiras dos Quadros de Pessoal do Poder Judiciário, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para servir perante o magistrado determinante da incompatibilidade.”

Quanto ao Ministério Público da União, a Lei Complementar federal nº 75, de 20 de maio de 1.993 prescreve, semelhante e muito anteriormente à Lei nº 11.416/06“Art. 293. Ao membro ou servidor do Ministério Público da União é vedado manter, sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro, ou parente até o segundo grau civil.”

Existem leis estaduais e leis municipais, dentre as quais diversas leis orgânicas municipais, que aqui não se citam por desnecessário (e de resto interminável), que consignam, similarmente às leis federais referidas, disposições restritivas ao nepotismo, em termos sempre inspirados na legislação federal. 

Quanto às LOMs observa-se até mesmo a introdução da regra antinepotismo por força de  emendas parlamentares e não oriundas do Executivo - como pela abrangência da finalidade ante a dimensão dos quadros das Prefeituras ante a das Câmaras Municipais seria de esperar -, as quais iniciativas já mereceram acolhida judicial, como pelo e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo  na ADIn nº 96.334-0/1-00, originária do Município de Biritiba Mirim ([4]).


VII – Mas não foram e são  apenas leis as regras locais que se editaram na tentativa de parametrar – em verdade apertar, restringir, coibir, desestimular  - o nepotismo na esfera pública, pois que os Poderes do Estado também o vêm topicamente fazendo.

O Poder Judiciário por exemplo, nessa esteira, antes de fazer editar a Lei nº 11.416/06 fora autor do até este momento mais divulgado e notório dos atos tendentes a limitar o nepotismo dentro daquele Poder, e apenas dentro dele e na sua exclusiva circunscrição: a Resolução nº  7, de 18 de outubro de 2.005, do Conselho Nacional de Justiça, CNJ, que atualmente já sofreu modificações pela Resolução CNJ nº 9, de 2.005, e pela Resolução nº 21, de 2.006.  Essa Resolução, observe-se,  destinou-se a todo o Judiciário brasileiro, e não apenas ao da União, como o fez a já citada Lei nº 11.416/06.

Revelou-se extremamente severa e coercitiva aquela resolução do Poder Judiciário como se lê de seu art. 2º, que proíbe o nepotismo direto (parente sob as ordens diretas da autoridade nomeadora) e o indireto ou cruzado (parente da autoridade servindo a outra autoridade, a qual reciprocamente empresta um seu parente para servir ao primeiro). Mas vai além a resolução, eis que (art. 2º, inc. V) proíbe até mesmo a contratação administrativa de empresa da qual seja sócio parente de autoridade, sendo tal contratação pela lei de licitações.

O rigor restritivo daquele ato é fulminante, e com esse exato espírito inspirou outra resolução em menos de um mês após sua edição,  desta vez pelo Ministério Público por seu órgão administrativo máximo, o  Conselho Nacional do Ministério Público – e portanto dirigida a todo o Ministério Público brasileiro - , que foi a Resolução CONAMP nº 1, de 7 de novembro de 2.005, de redação mais sintética mas nem por isso menos dura que a do CNJ, como o demonstra seu último considerando:

“Considerando que o nepotismo é conduta nefasta que vicia flagrantemente os princípios maiores da Administração Pública e, portanto, é inconstitucional, independentemente da superveniente previsão legal, uma vez que os referidos princípios são auto-aplicáveis e não precisam de lei para ter plena eficácia”.

O e. Ministério Público seguiu de perto, portanto, os passos do e. Poder Judiciário nacional no radicalizar  o combate ao nepotismo dentro de suas fileirasMas quanto à conclusão da direta e imediata inconstitucionalidade de toda e qualquer prática de nepotismo, friamente considerada e sem absolutamente ingressar no mérito da questão, na sua secura e dureza extremas, data venia   parece simplesmente negar vigência à Constituição Federal, art. 37, inc. II, que permite  e fundamenta explicitamente a prática do nepotismo.

 
VIII – Quanto à jurisprudência sobre o tema do nepotismo, vêm se multiplicando, ao lado da doutrina,  em acórdãos que merecem detida atenção, antes que  o tema seja nacionalmente pacificado através de uma emenda constitucional – se algum dia de fato vier a sê-lo.

Constitui um  exemplo daquelas decisões – e será a única parcialmente transcrita - o acórdão do Supremo Tribunal Federal na ADIn nº 2.364, na qual se lê o seguinte excerto do voto do rel. Min. Celso de Mello, bastante significativo e, mesmo sem ferir diretamente o tema do emprego de parentes das autoridades nomeadoras no serviço público, é já denotador de provável tendência dos tribunais superiores no julgar esta matéria de nepotismo na administração pública:

“A razão adjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedando-se, desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios a alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros.” ([5]).

Em sentido muito similar e a merecer exame são também a decisão do STF na ADIn nº 1.521 – RS, rel. Min. Marco Aurélio (julg. em 12 de março de 1.997, in RTJ  173/424), e do Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma,  no ROMS nº 2.284 - SP, rel. Min. Pedro Acioli (julg. em 25 de abril de 1.994, in DJU de 16 de maio de 1.994) ([6]).


IX – A conclusão a que se permite chegar após esta rápida vista d’olhos sobre o delicado problema do nepotismo na administração pública é a de que sem lei local expressa, ou sem ato infralegal competente expresso, que clara e explicitamente indique as condutas vedadas aos agentes públicos em matéria de nepotismo e de empregar parentes em cargos estatutários em comissão, ou em empregos celetistas de confiança,  nenhuma restrição que se pretenda impor a essa prática será juridicamente consistente.

Temos para nós, por tudo isso,  que apenas uma Emenda Constitucional dotada da devida e nacional amplidão e abrangência, somente algo assim poderá pacificar e uniformizar os comportamentos relativamente ao problema do dito nepotismo na Administração. 

Tudo mais que se faça, ou que se tente, enquanto não ecloda uma tal Emenda constituirá ao que parece, ainda que localmente disciplinado, pouco mais que casuísmo e acidentalidade numa matéria que francamente, se é assim tão grave e séria como dela é usual afirmar,  não se deveria tentar equacionar fragmentária e topicamente, mas de  modo amplo e generalizado no país, em suas esferas todas de governo e em todos os Poderes do Estado.

Evitou-se até aqui ingressar no mérito da prática nepotista, porque o mundo jurídico não precisa de mais um discursador.  Tentamos, antes, ater-nos ao direito objetivo e frio que cerca toda a questão, tanto formal quanto material.

O nepotismo desenfreado ou descontrolado, à luz do direito, sem direito ou apesar do direito, é um mal - o que se imagina fora de discussão.

Determinados exercícios de nepotismo entretanto, ante o direito objetivo e desapaixonado que precisa informar o juízo crítico de todo profissional da área jurídica, não padece da mesma negativa configuração – amparados expressamente como estão pelo próprio texto constitucional.

E  investir de forma indiscriminada e generalizante contra todo e qualquer ato de nepotismo, a julgar pelo só que existe até este momento em nosso ordenamento jurídico parece-nos constituir atitude pouco técnica, e perigosamente tendente a um moralismo que nem sempre conduz à técnica, fria, constitucional e, para nós,  verdadeira moralidade.


[1]  Sendo que nepote é, classicamente, nada menos que o sobrinho do Papa, o que precisaria desde logo afastar a infame conotação que o nepotismo ostenta...

[2] Artigo citado, in BDA – Boletim de Direito Administrativo, ed. NDJ, SP, jan/2004, p. 42/43.

[3]  Artigo citado, in BDA – Boletim de Direito Administrativo, ed. NDJ, SP, jun/2003, p. 461 e seguintes.

[4] In BDM jun/2.004,  da  ed. NDJ, SP, p. 492 e seguintes.  E aproximadamente na mesma direção o artigo Direito municipal e vedação ao nepotismo: uma hipótese de conformação constitucionalmente possível, de Horácio Augusto Mendes de Souza, in BDM jan/2.006, mesma editora, p. 17 e seguintes.

[5]  Cf. transcrito no artigo citado de Horácio Augusto Mendes de Souza.

[6] Ambos parcialmente transcritos no citado artigo Nepotismo, de Emerson Garcia.