O DESABAMENTO DAS BARRAGENS

PARECER, LAUDO TÉCNICO E LAUDO  PERICIAL – O DESABAMENTO DAS BARRAGENS 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/19)


I – A muito recente segunda tragédia brasileira da mineração – desastre mundial, porque o Brasil é por demais exíguo para circunscrever  semelhante catástrofe humana, ambiental, técnica  e  civilizatória -, que foi a explosão das barragens da cia. Vale do Rio Doce em Brumadinho, Minas Gerais, em janeiro de 2.019 e a menos de quatro anos da primeira hecatombe similar, em Mariana, também em Minas,  nos sugere um tema por certo mais afeto ao direito que aquele oceano de lama: que  diferença ostenta um parecer de um laudo técnico, e ambos de um laudo pericial ?

Que são trabalhos diferentes é fácil ver, mas até onde, e precisamente em quê, é o que se indaga.

A questão outra vez se coloca em nosso direito porque imediatamente após aquele débacle desencadeou-se a caça aos responsáveis, e  logo – no mesmo dia -  vieram à tona laudos técnicos que haviam sido expedidos sobre a segurança das barragens, apresentados pela empresa mineradora  na tentativa de justificar a sua atuação, ou a sua inação, no tétrico episódio ([1]).

Não é inédito o problema conceitual, mas sempre vale – perdoe-se a sinistra evocação – reventilá-lo.

Parecer

II – Os laudos e os pareceres são peças de importância extrema na condução de inúmeras atividades empresariais. bem como nas deliberações da Administração pública, nas decisões do Poder Judiciário, nas ofensivas do Ministério Público, no diuturno exercício da advocacia privada, na atividade policial a todo tempo  e, também, sob outra denominação mas com o mesmo conteúdo e a mesma natureza,  em áreas das ciências biológicas como a medicina e a odontologia. O resultado dos exames laboratoriais não deixam de constituir laudos técnicos, expedidos por máquinas programadas sob regras fixas e parâmetros objetivos.

Sem laudos e sem pareceres do mais amplo e variado espectro todas essas atividades se travariam melancolicamente, pois que deles dependem de modo umbilical para instruir cada passo, cada iniciativa e cada deliberação técnica a seu cargo e em cada caso. Existem atividades, aliás, para as quais os pareceres e os laudos são simplesmente pressupostos, ou condições preliminares de execução, sem os quais nada anda e nada se realiza – por primitiva questão de responsabilidade por parte dos agentes executores.

Nessas específicas atividades aqueles agentes amiúde se louvam inteiramente dos pareceres, dos laudos e das requeridas orientações técnicas, muita vez sem os discutir ou os comentar a fundo como seria desejável, para então, na sua conformidade, deliberar como agir, algo mais ou menos  como um organismo meramente executante do que outro organismo,  conceptor e  ideador, orientou fazer.

Mais que simplesmente sugeridor ou recomendador, o laudo e o parecer com toda freqüência desempenham função  de iluminar o caminho a seguir, clareando a senda do executor dos serviços por lhe emprestar guias, balizas, trilhas, bases, limites, cautelas, parâmetros, fundamentos.

E já por aí se inicia a fundamental diferença entre um laudo e um parecer.

III – Já escrevemos em recente artigo ([2]) que  “Parecer é tão só uma opinião, um entendimento, uma interpretação, uma leitura, a externação de uma reflexão, um arrazoado, uma tese, a manifestação de um pensamento, uma idéia que se exterioriza, uma convicção que se manifesta e que se justifica, um ensaio - desejavelmente fundamentado. Não pode ser mero palpite nem gratuita intuição, mas também não configura ato administrativo.

Por mais abalizado, erudito, consistente, coerente, responsável ou comprometido que seja com o que o autor entenda ser a verdade, o parecer nada mais é que aquilo: a leitura interpretativa de alguma realidade, jurídica quando é o caso. Mas parecer é opinião sempre, sobre o assunto que for.

(...)  O parecer veicula a mais irrestrita e sagrada liberdade de pensamento, de opinião, de ideologia e de crença. Pelo parecer o autor exercita toda a sua criatividade na área que for, constitucionalmente protegida como o sólido direito e  garantia individual que se alcunha cláusula pétrea da Constituição,  a salvo de oscilações ou modas congressuais, e de maus-humores do Executivo.  (...)

Quem postula que um parecer determine alguma coisa pode estar se referindo ao direito de Júpiter ou de Vênus, mas não ao de nosso planeta.  Em nosso mundo o parecer jurídico tem essencialmente a mesma natureza  de um comentário de futebol ou de moda, ou de uma crítica de cinema ou de teatro,  ou ainda a de uma crítica literária ou política, apenas que versando sobre matéria jurídica. Nada além disso se pode vislumbrar  num parecer jurídico, por mais invejável que seja a erudição do autor ou a fantasia do observador.”

IV – O foco destes comentários acima é no parecer jurídico, porém qualquer parecer, sobre o assunto ou a matéria que for, mantém a característica fundamental de constituir mera opinião, desejavelmente fundamentada e lastreada em fatos e em realidades que evoque, porém, sendo tecnicamente respeitável ou não, sendo mais ou menos fundamentado, sendo realista ou fantasista, o parecer nada mais significa que o entendimento pessoal de alguém sobre o problema indagado ao seu autor.

Ninguém vislumbre no parecer mais que isso, como por exemplo algum efeito liberatório para a autoridade que o pediu, ou alguma impositividade, ou qualquer ato de império – nada disso.

Parecer nem sequer um ato é, nem administrativo, nem jurídico, nem de outra natureza: sendo mera opinião – ainda que tenha duzentas páginas, sessenta ilustrações em quatro cores, trinta tabelas, bibliografia e índice onomástico, somente expressa o que ao autor parece ser a verdade acerca dos quesitos formulados. Tem a mesma natureza, como se disse,  de um comentário sobre a última rodada do campeonato de futebol, ou sobre o baile à fantasia de sábado passado.

Por isso o parecer não obriga ninguém a nada ([3]), e assim, também por esse mesmo motivo,  não gera responsabilidade alguma ao seu autor, ainda que esteja totalmente errado, com fundamento falso ou de propósito nitidamente desonesto,  ou de outro modo seja inconsistente e inconclusivo – e daí existirem pareceristas respeitáveis, sempre requisitados,  a par de  pareceristas vendilhões que por alguns dinheiros escrevem o que lhes é encomendado escrever, quando não apenas assinam o que já lhes veio pronto.   Até por isso o parecer, como mera impressão de alguém, nunca vincula a  vontade da autoridade, nem a obriga a observar as  suas conclusões. Como os astros o parecer no máximo inclina, mas não determina.

Laudo técnico

V – Laudo é outro assunto.

Se parecer é a impressão subjetiva de alguém – por mais que seja fundamentada -, o laudo nada tem de subjetivo, pois que sintetiza a conclusão de medições e de enquadramentos que se aplicam ao objeto sobre o qual se investiga.

Um laudo de engenharia, por exemplo, resulta da sujeição do objeto do questionamento a medições físicas e científicas, realizadas por máquinas pré-programadas ou por homens que aplicam regras técnicas e objetivas ao objeto, das quais não participam e nas quais não interferem com conteúdos pessoais.

Num laudo não sobra espaço para conclusões pessoais dentro do resultado, o que por vezes frustra algum observador desavisado que espera comentários e considerações humanas e calorosas na paisagem fria e distante da avaliação automática a que o objeto foi submetido.  Nem sempre é automático o resultado, porém a discricionariedade do responsável pelo laudo, abundante e completa que é no parecer, nos laudos técnicos  não tem vez.

Sabe-se que o azar da autoridade ao exercer seu poder discricionário é escolher mal, dentre as opções de conduta que a lei lhe faculta adotar.  Esse risco, esse azar desaparece – ou deve desaparecer – na elaboração de um laudo técnico, para cuja conclusão  o autor lava as mãos, pois que pessoalmente não interferiu na avaliação.  Tal resulta ao final muito cômodo a ao autor do laudo, e muito incômodo ao autor do parecer. 

Ressalte-se, porém e entretanto, que o autor do laudo responde pela conclusão no caso de algum erro nas premissas, ou de falsa leitura dos resultados gerados pela aplicação das premissas, enquanto que o autor do parecer não responde por coisa alguma, por mais esdrúxulo, sesquipedal e estapafúrdio que tenha sido seu parecer.  Sua renomada profissional em caso assim e para o futuro deverá se ressentir, mas em matéria de responsabilização ficamos no zero absoluto.

VI – Em geral laudos são atestações relativas a matéria de ciência exata, enquanto pareceres – sempre falando genericamente - se referem a ciências humanas, e até por isso o laudo tende  a ser “exatista”, algo que para um parecer não faz muito sentido. Se um parecer acabar sendo muito científico e exato, em dois tempos será chamado de laudo...

É da essência do laudo ser cientificamente programado para enquadramentos rígidos, categorizações precisas e conclusões forçadas, enquanto que o parecer trilha o roteiro operacional inteiramente livre que seu autor tenha em mente, já que o resultado será tão somente a síntese de sua opinião. 

O laudo, nesse sentido e por assim dizer, pisa chão firme, enquanto o parecer deambula com liberdade máxima dentro do raciocínio que o autor escolhe para demonstrar sua tese. Mas isso não significa que o laudo seja técnico e confiável e o parecer não o seja, porque a verdade se obtém por infinitos meios, cada qual próprio de cada autor e adequado a  cada veículo que utilize. O que existe, isto sim,  são autores  sérios e autores  irresponsáveis ([4]).

Dois pareceres do mesmo autor sobre o mesmo assunto podem desembocar na mesma conclusão por caminhos absolutamente diversos, como podem também, e de outro modo,  concluir de modo diferente - caso o autor demonstre por exemplo – o que é bastante comum -   que evoluiu seu entendimento sobre o assunto. Mas em um laudo técnico é difícil imaginar alguma “evolução do entendimento” que não seja em verdade a correção de algum erro,  se as premissas e os parâmetros permanecem os mesmos.

Laudo pericial

VII – Todo laudo é pressupostamente técnico. Não faz sentido imaginar um laudo sobre algo de domínio público e generalizado,  que não dependa de conhecimento especializado do autor, particularizado sobre a matéria em análise. Laudo é relatório técnico de um especialista, não raro detentor de exclusividade  legal para o exercício da profissão. Um laudo de engenharia somente pode ser expedido por engenheiro, ou se configura o exercício ilegal da profissão.

Se todo laudo é técnico, entretanto nem todo laudo é pericial. Este é o laudo requerido a respeito de um problema que demanda análise técnica para determinado fim também específico. Por exemplo existe o laudo da polícia técnica em caso de um acidente, elaborado para produzir efeito no processo de investigação ou no processo judicial que se instaure. Outro exemplo é, dentro do processo, um laudo pericial que a parte ou o juízo requeira, para esclarecimento do mesmo juízo sobre de algum ponto sobre o qual precisará decidir.

São laudos técnicos invocados especificamente para permitir um julgamento, ou uma avaliação dos efeitos de uma ocorrência.

Outra hipótese é de laudos periódicos obrigatórios para o funcionamento de estabelecimentos e a prática de certas atividades. O laudo denominado AVCB – Atestado de Vistoria do Corpo de Bombeiros, é um laudo técnico que precisa ser produzido um dia e renovado a cada lapso certo na forma da legislação estadual e urbanística de segurança, e não visa responder questão específica nenhuma, nem esclarecer dúvida alguma suscitada em expediente administrativo ou judicial, mas tão só atestar que tal ou qual estabelecimento atende as normas de segurança cuja fiscalização compete ao corpo de bombeiros. 

É técnico porque segue padrões de exame e análise, mas não pode ser classificado como pericial, até porque segundo entendemos pode ser produzido por servidor que não detenha a qualidade de perito no tema envolvido.  Pericial é o laudo de um perito, o que não se coaduna com a natureza, estrutura e organização do (heróico) corpo de bombeiros.

Dentro da antiquada e francamente ruim legislação brasileira sobre atividades privativas de engenheiros – como de resto sobre as atividades privativas de qualquer profissão disciplinada em lei, descrição quase sempre da pior qualidade imaginável - não nos parece enquadrar-se como de engenharia aquela atividade, uma vez que o roteiro para a expedição daquele atestado é rigidamente padronizado e segue normas que independem do conhecimento especializado ou privativo de engenheiro – é nosso entendimento jurídico sobre questão da legislação de engenharia ([5]).

Assim, o laudo pericial parece constituir uma espécie do gênero laudo técnico.  Técnicos ambos são, mas pericial é apenas aquele demandado para esclarecer ponto obscuro específico no curso de alguma investigação, algo que outros laudos técnicos não fazem necessariamente.

VIII – Alguns exemplos mais ajudarão a compreender algumas diferenças.

A justiça norteamericana  já há algumas décadas tem decidido que não mais aceita certificados de autenticidades de violinos antigos, sempre que esse assunto vem à baila em processos judiciais, devido ao subjetivismo que os cerca, na medida em que atestam algo como “ em meu entendimento, diante da análise efetuada, este instrumento foi construído pelo liutaio x, no final do século XVIII”. 

Pouco tem valido atestados como esses ainda que por renomados especialistas, devido ao subjetivismo da conclusão, à falta de prova objetiva.  Tais atestados têm portanto natureza de pareceres, já que afinal ao autor parece isso ou aquilo.  Em vez disso o que os tribunais americanos exigem são laudos técnicos produzidos por laboratórios, como análises dendrocronológicas, testes de carbono 14, radiografias analisadas, até mesmo ressonâncias magnéticas (!), tudo a constituir um laudo técnico pericial  ao invés do tradicional certificado, que nada mais é que um – ocasionalmente abalizadíssimo – parecer.

É que a matéria, que tem seu lado humanístico mas a cada dia que passa mais assume caráter científico, comporta ambos os trabalhos: parecer pessoal, repleto de conteúdos particulares do autor,  e laudo pericial frio e impessoal, lastreado em exames laboratoriais.

Outro exemplo, para encerrar, e outra vez se retorna à tragédia recente, é o caso da barragem da cia. Vale do Rio Doce, em Brumadinho.

Pela notícia da televisão e da imprensa, e apenas por essa sumaríssima fonte, a conclusão do atestado de que a barragem era sólida e segura, pergunta-se, que natureza tem ? Laudo técnico ? Parecer ?

Teria obrigatoriamente de ser um laudo técnico, não pericial mas técnico de engenharia, aquele documento.

Mas o curto excerto da conclusão, lida na televisão pelo presidente da cia., de um sintetismo atordoante numa matéria tão intricada e fundamental, leva a crer que a natureza daquele documento é a de um mero parecer.

Se  de fato for, e se aquele documento afinal for  considerado um parecer, então efetivamente que Deus  nos acuda, porque um tal assunto, estritamente de engenharia e de tão monumental relevância, jamais se pode orientar por um pessoal, subjetivo e “humanístico” parecer, porque um parecer, repita-se, sendo mera opinião do autor, não gera a este nenhuma responsabilidade, o que neste caso é impensável. Ninguém é preso preventivamente por expedir um parecer.

Restou clara a diferença ?

 

[1] E tão sérios eram os laudos que dois engenheiros seus autores, e três servidores da Vale, foram presos temporariamente na terça-feira, 29 de março, sob a suspeição de homicídio qualificado. É a inédita figura do laudo assassino, o que reforça a necessidade de reflexão.

[2] Responsabilidade do parecerista. o parecer normativo, em vias de publicação em algumas revistas jurídicas.

[3] E as vacilantes orientações jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal sobre esse tema constituem uma das mais lamentáveis perdas de tempo que a Corte já teve ao longo de sua história, após ter resolvido  o problema magnificamente ao tempo do Min. Carlos Velloso, o qual emprestou à questão a simplicidade que merece: parecer não enseja responsabilidade ao autor, porque é mera opinião e porque está constitucionalmente assegurado a todo cidadão  o direito de livremente pensar, e de desembaraçadamente defender suas idéias.

[4] Voltamos à mesma tecla: se todo laudo fosse sério, então seguramente os responsáveis pelo laudo que atestou a segurança da destruída barragem em Sobradinho não teriam sido presos preventivamente pouco tempo após a hecatombe. Observa-se a gravidade dos fatos, eis que um laudo técnico é peça científica, e a ciência não pode ser traída ou malbaratada por profissionais irresponsáveis que muita vez praticam crime sem se dar conta.

 [5] E não se sintam usurpados os engenheiros, porque o mundo, queiramos ou não,  começa jurídico e termina jurídico. À exceção de em um acampamento de ciganos como é hoje a Venezuela, as coisas somente são o que o Judiciário disser que são.  O Criador possivelmente contava com advogados a seu lado...