REAJUSTE ABUSIVO DE CONVÊNIO MÉDICO AFRONTA A DIGNIDADE HUMANA. A NOVA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

REAJUSTE ABUSIVO DE CONVÊNIO MÉDICO AFRONTA A DIGNIDADE HUMANA. A NOVA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Ivan Barbosa Rigolin
(jul/19)

Introdução ao tema


I – O assunto desta breve reflexão, de cunho entre civil e administrativo, atormenta a consciência dos brasileiros há mais de década. Nem de longe constitui novidade alguma para qualquer dos cinqüenta milhões de ditos conveniados da saúde, em verdade simples contratantes de serviços de assistência à saúde, ou de seguro-saúde, ambos os quais antitecnicamente são referidos de forma usual como convênios.

E é fato também certo que a imensa multiplicação desses contratos e das adesões que ensejam se devem às crônicas, esmagadoras e dificilmente superáveis deficiências dos serviços públicos de saúde, históricas e tradicionais em nosso país e que, pelo relato geral,  já começam a espraiar-se pelos países mais desenvolvidos. O custo da saúde com efeito é monumental em qualquer parte do mundo, e constitui um desafio agudíssimo e permanente para todo governo, por mais bem intencionado.

Em nosso país é institucionalmente péssimo, e o problema da saúde assume dimensão imensurável, perfilhando-se ao lado da educação como os maiores problemas nacionais. Por, principalmente, falta de educação da população – que jamais foi tão mal-educada na história - os problemas de saúde não param de se avolumar, revivendo-se inclusive, periodicamente, epidemias de males que já haviam sido sepultados em toda parte, num ressurgimento constrangedor.

Natural que assim seja onde a educação declina, pois que as doenças crescem inversamente ao ganho da educação: mais educação, menos doença, e menos educação, mais doença. Entenda-se por educação não a cultura em si e apenas - que ajuda em muito mas não é indispensável à pessoa educada – o conjunto de bons hábitos sociais, pessoais, higiênicos, alimentares, físicos, profissionais ou de qualquer outra natureza tão importante quanto aquelas, e os quais se adquirem em casa com a família, na escola com os professores e na vida social com a coletividade.

A deficiência da educação, ou o desprezo por ela, gera todas as outras deficiências conhecidas – inclusive maus governos, pois que não se imaginam  bons governos escolhidos por de maus eleitores -, e deve ser responsável pela quase totalidade dos males que afligem o planeta.  Com efeito, somente um planeta habitado por seres com pouquíssima  educação pode passar de 1,2 bilhão de habitantes em 1.900 para 7 bilhões em 2.000. Resulta difícil acreditar que um planeta assim possa dar certo na ordem evolutiva.

Como um só exemplo da deseducação coletiva que se observa, o número crescente e espantoso de obesos  nos países mais desenvolvidos significa sobretudo e antes de nada um imenso contingente de pessoas mal-educadas, ou deseducadas por completo. E tal quadro, patente e horripilante, desencadeia todos os males imagináveis da saúde, a começar pela obesidade só em si. E para conter aquilo não existe no mundo  serviço público de saúde suficiente: a causa vem antes...

Então, num quadro assim em que o poder público não dá conta do recado, vamos aos convênios.

Apenas se observe que para aquilo existem regras a serem observadas, sobretudo a partir da Constituição Federal – que costumeiramente é o último diploma a ser lembrado por alguém mesmo em seu favor, mas que muita vez, sozinha e isoladamente, resolve as questões mais cruciais, seja com a lei, seja sem lei nenhuma, seja apesar da lei existente (1)

Regras básicas para os reajustes

II – Os ditos convênios de saúde – contratos, repita-se, e o apelido de convênios não auxilia em nada mas  atrapalha em tudo – regem-se no Brasil pela Lei nº 9.658, de 3 de junho de 1.998.

Trata-se de uma colcha de retalhos – um ninho de rato – que já foi alterada de cabo a rabo  inúmeras vezes, e o texto atual apenas longinquamente lembra o original. Veja-se na internet, no utilíssimo site Planalto – entre mil rabiscos, tachamentos e um carnaval de cores -  o volume das alterações havidas até hoje, e se terá a dimensão da instabilidade que a matéria sofreu e apresenta,  tudo a indicar a insegurança do legislador e do governo na matéria.

E, do que está em vigor, de importante para este momento são os seus seguintes dispositivos:

Lei nº 9.656/98:  (...)

Art. 15.  A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E

Parágrafo único.  É vedada a variação a que alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o, ou sucessores, há mais de dez anos. (...)

Art. 35-E.  A partir de 5 de junho de 1998, fica estabelecido para os contratos celebrados anteriormente à data de vigência desta Lei que:                 

I - qualquer variação na contraprestação pecuniária para consumidores com mais de sessenta anos de idade estará sujeita à autorização prévia da ANS;                     

II - a alegação de doença ou lesão preexistente estará sujeita à prévia regulamentação da matéria pela ANS;     (...)                      

§ 1o  Os contratos anteriores à vigência desta Lei, que estabeleçam reajuste por mudança de faixa etária com idade inicial em sessenta anos ou mais, deverão ser adaptados, até 31 de outubro de 1999, para repactuação da cláusula de reajuste, observadas as seguintes disposições:                    

I - a repactuação será garantida aos consumidores de que trata o parágrafo único do art. 15, para as mudanças de faixa etária ocorridas após a vigência desta Lei, e limitar-se-á à diluição da aplicação do reajuste anteriormente previsto, em reajustes parciais anuais, com adoção de percentual fixo que, aplicado a cada ano, permita atingir o reajuste integral no início do último ano da faixa etária considerada;                    

II - para aplicação da fórmula de diluição, consideram-se de dez anos as faixas etárias que tenham sido estipuladas sem limite superior;                     

III - a nova cláusula, contendo a fórmula de aplicação do reajuste, deverá ser encaminhada aos consumidores, juntamente com o boleto ou título de cobrança, com a demonstração do valor originalmente contratado, do valor repactuado e do percentual de reajuste anual fixo, esclarecendo, ainda, que o seu pagamento formalizará esta repactuação;                          

IV - a cláusula original de reajuste deverá ter sido previamente submetida à ANS;   

V - na falta de aprovação prévia, a operadora, para que possa aplicar reajuste por faixa etária a consumidores com sessenta anos ou mais de idade e dez anos ou mais de contrato, deverá submeter à ANS as condições contratuais acompanhadas de nota técnica, para, uma vez aprovada a cláusula e o percentual de reajuste, adotar a diluição prevista neste parágrafo. 

O caput  deste art. 15 fixa que a majoração das mensalidades por mudança de idade do segurado precisa estar prevista no contrato, e para aer exercitada depende de normação pela Agência Nacional de Saúde.

Esta ANS apenas expediu a divisão das faixas etárias, mas nada dispôs sobre limites de variação. E os contratos em geral são tudo menos claros quanto a isso, pois que seria dar um tiro no pé, ou uma antipropaganda das mais anacrônicas, por exemplo,  anunciar um reajuste de 100% (cem  por cento) na última faixa, como, regra geral, acontece.

Depois, o parágrafo único proíbe e majoração dos valores a segurados maiores de 60 anos que contrataram os planos há mais de dez anos.   Foi o grande motivo para a as administradoras carregarem no reajuste devido aos 59 anos do segurado.

O art. 35-E, caput e inc. I,  fixa que os reajustes anuais dos planos, para segurados idosos, somente poderão dar-se se autorizados pela ANS – e a agência os  autoriza, e indica os percentuais-limites.  Além do reajuste por faixa etária  os planos coletivos sofrem também o reajuste anual.

O § 1º. a seguir, impõe alteração dos contratos, como se isso fosse constitucional, e como se não violasse a regra de que a lei nova não prejudica o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, ambos assegurados pela Constituição, art. 5º, inc. XXXVI.

Ora, contratos são atos jurídicos perfeitos, e por isso a nova lei não lhes pode impor alterações unilaterais, nem obrigação a parte alguma de aceitar alterações com as quais não concorda.

É curiosíssimo o § 1º do art. 35-E, macaquice posterior do legislador, que inventou os artigos alfanuméricos para não ter de renumerar toda a lei que virou e revirou. 

Por ser alfanumérico sim, porém muito pior que isso é curioso por ter – pacificamente, impunemente, desassombradamente - violado a garantia  constitucional de proteção ao ato jurídico perfeito que foram  os contratos assinados antes da nova lei, garantia aquela a  qual desrespeitou ao impor alterações unilaterais em favor das empresas operadoras dos planos de assistência à saúde.

E contra o desrespeito resta ao segurado recorrer ao Poder Judiciário, movendo a competente ação que recoloque o contrato nos termos assegurados pela Constituição da República.

Por fim, os incs. II a V do art. 35-E indicam que o legislador parece estar caminhando sobre ovos, tentando ser razoável, procurando encontrar fórmula conciliatória entre o interesse/necessidade  das operadoras dos planos e os direitos dos segurados.  Ensaia passos com cuidado mas, evidentemente e como sói acontecer, faz pender a balança em favor das empresas, parte forte dos contratos, de modo que o segurado vê seu direito se esgarçar e se diluir quase que inapelavelmente.

Não é novidade, também por esse motivo,  a extraordinária judicialização dos serviços de saúde no país, assunto que já ensejou a edição de importantes obras monográficas no país (2). 

III - Existem dessa forma dois reajustes aplicáveis aos contratos de assistência à saúde, um anual, que é desde  a , a regra dos reajustes contratuais no Brasil, aplicável  a contratos relativos a planos individuais e familiares, e outro por variação da faixa etária do segurado, aplicável a planos coletivos, que se sujeitam também aos reajustes por faixas etárias.

Os  coletivos são a grossa maioria dos planos de saúde em nosso país, uma vez que as empresas administradoras  dificultam ao máximo a contratação de planos individuais e familiares em face de que não podem aplicar a estes o reajuste por faixa etária, grande mina de ouro   que perseguem, e que têm causado a ruína dos filiados a planos coletivos, e a sua evasão em massa dos seus contratos originários para outros sempre mais baratos.  Quase se pode recomendar ao último que saia que por gentileza apague a luz.

É desse último reajuste, por mudança da faixa etária, que aqui se cuida.  


A questão da faixa etária e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade


IV - Os princípios constitucionais, legais e doutrinários da razoabilidade e da proporcionalidade prevalecem sobre a letra escrita do direito, ou o ordenamento jurídico positivo isoladamente considerado. Antes de nada porque, como princípios informativos, devem sempre informar a própria lei, já que uma lei desproporcional ou irrazoável, e portanto desinformada daqueles princípios,  sempre pode ser combatida em juízo  com base em regras e em princípios constitucionais, mesmo que não explícitos mas apenas subsumidos e extraídos do conjunto de regras escritas. 

E não raro são invalidadas desde a primeira instância, sem necessidade de maiores ginásticas exegéticas ou malabarismos interpretativos: a racionalidade humana deve sempre prevalecer sobre o direito escrito do momento, ditado por conveniências políticas, econômicas ou ideológicas de cada momento. E é significativo que, como a experiência denota, quanto maior é a instância judicial, mais  predominam os princípios sobre o teor seco das leis. A idade dos julgadores, como se espera de toda pessoa,  lhes abre janelas de consciência até então cerradas.

Ora, somente o que se pretende ressaltar nesta curta reflexão é que a dobrada do valor mensal cobrada do segurado que completa 59 anos, ou por outro critério 60 anos, contraria os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade de forma gritante, aterradora.

Não tem o menor propósito imaginar que o 59º, ou o 60º aniversário do segurado tenha o condão de dobrar os riscos da operadora do plano de saúde.

Reconhecem-se os riscos das operadoras, como se reconhecem os bons – por vezes ótimos – serviços que algumas, conforme os planos, prestam aos segurados.  Não se negam os prejuízos que alguns segurados acarretam àquelas operadoras, em contraposição à legião daqueles que somente lhes dão lucro, desde o momento em que subscrevem algum plano.

E não se desconhece que de tempo em tempo dezenas de empresas operadoras são simplesmente encerradas pelo governo através de seus entes fiscalizadores, por inadimplentes com seus compromissos, ou de outro modo impedidas de angariar novos filiados: calcularam mal os riscos, ou administraram mal suas finanças.

O capitalismo vive de lucros, e da sua própria expansão, é bem certo; mas não poderia haver lugar para aventuras como dobrar o valor mensal devido pelos segurados, apenas porque completaram seu 59º ou seu 60º ano de vida.  Ó dia mais infortunado de suas vidas !..

Não existe explicação racional para se “arredondarem” tão grosseiramente as prevenções de atendimento a quem tão somente completa mais um ano de vida, e nada faz além disso. 

Nenhum critério técnico, matemático, atuarial ou ideológico justifica uma tal atitude, que precisa ser judicialmente combatida muito mais do que atualmente o é – ainda que o venha sendo de forma crescente.

O estatuto do idoso - Lei nº 10.741/2003

V – Há uma década e meia existe no país o dito Estatuto do Idoso, a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2.003. Diploma de cunho altamente civilizado e meritório, introduziu novas proteções aos idosos no país, ainda que cada vez menos, e felizmente, sexagenários mereçam ser considerados idosos.

Com a expectativa de vida que não para de crescer, e com a saúde amparada por inéditos conhecimentos, práticas,  equipamentos  e medicamentos, todos  em permanente e espantosa evolução técnica, não será de estranhar que a pessoa em breve apenas seja tida por idosa aos setenta anos – como mais ou menos já acontece em alguns  países europeus, e como a legislação previdenciária ensaia decididamente implementar.

Seja como for, é sempre alvissareira uma legislação que por novos meios ampare as faixas etárias mais avançadas da população, como este Estatuto.

Interessa neste momento o art. 15 e seu § 3º, que rezam:

Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.  (...)

§ 3o É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade. (Destaque nosso).

Causa estranheza, a quem lê o parágrafo, saber que o aumento de valor da penúltima para a última faixa etária admitida pela ANS é simplesmente o dobro, quando a lei parece proibir até mesmo que exista reajustes por implemento de idade nos contratos de assistência à saúde.

Mas não é o que parece. No Brasil dá-se jeito para tudo, e os reajustes de 100% aos 59, ou aos 60 anos, continuam a ser cobrados.

Com muita freqüência o Poder Judiciário provê ações que o coíbam, mas de nada servem esses precedentes para as operadoras dos planos, porque enquanto um segurado recorre e ganha dez mil outros pagam, de modo que compensa, e muito, cobrarem o que queiram (3)

O acórdão do Superior Tribunal de Justiça que adiante é transcrito esclarece razoavelmente o que a esse respeito sente o Judiciário, relativizando a lei e tentando conciliar interesses.


A Constituição Federal


VII – A Constituição de 1.988 não descurou o idoso, e previu no art. 230 que

A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Já à sua abertura Constituição fixara que

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)

III – a dignidade da pessoa humana;

A dignidade da pessoa humana é portanto um dos fundamentos, uma das pilares e um dos baluartes da República.

Pode a mandamental previsão  até mesmo parecer demagogia institucional, porém muito longe disso constitui o principal fundamento da perseguição pessoal, administrativa ou judicial dos direitos mais essenciais do cidadão. Com efeito, de uma prédica como a proteção à dignidade humana as aplicações mais inimaginadas podem legitimamente eclodir em favor do ser humano, para o qual o mundo e o direito todo foram erigidos.

O muito saudoso Geraldo Ataliba, em suas aulas e conferências, sempre recomendava a todos os perseguidores do melhor direito que, antes de dedicaram muito tempo e esforço em torno das leis, dos decretos, das portarias, das instruções normativas ou dos telegramas de ministros, devassassem a Constituição da República, revirando-a ao avesso, e não seria tempo perdido...   Prefiram a Constituição, asseverava.

Para quem tem olhos para ver,  a solução de quase todo problema jurídico verdadeiramente essencial se contém nas linhas preceptivas e principiológicas da Constituição, quando não a solução inteira do problema, sobretudo  numa Carta tão detalhista quanto a nossa; muita vez, acredite-se,  não é preciso descer até o plano infraconstitucional para se ter o problema completamente equacionado ante nossos olhos (4).

Jurisprudência recente

VIII – É evidente que suscitamentos judiciais sobre questão tão relevante quanto as cláusulas dos planos contratuais de assistência à saúde – destacando-se dois temas principais que são (I) a negativa de atendimento e (II) o percentual dos reajustes – se multiplicam avassaladoramente no país.

O assunto dá pano para manga, e cada vez mais, crescentemente até não se imagina onde nem quando, sendo o mais provável que em breve futuro essa avalanche de ações culmine numa radical e drástica alteração das regras contratuais, uma vez que a corda se estica até dado ponto, mas explode se a torção ainda aumentar. 

O seguinte acórdão do egrégio Superior Tribunal de Justiça que segue inteiramente transcrito é bastante diáfano – como nem sempre acontece... – na sua didática exposição dos fundamentos em que se apoiou aquele sodalício para decidir sobre a questão em comento.

E como uma boa decisão judicial, por  resumir e sintetizar muito proveitosamente o direito aplicável, sempre poupa discursos intermináveis, vejamo-lo sem mais delonga:

(STJ)  RECURSO ESPECIAL Nº 1.280.211 - SP (2011/0220768-0)
RELATOR : MINISTRO MARCO BUZZI
(...)
EMENTA
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA DO CONTRATO DE SEGURO SAÚDE QUE PREVÊ A VARIAÇÃO DOS PRÊMIOS POR MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA REFORMADA PELO ACÓRDÃO ESTADUAL, AFASTADA A ABUSIVIDADE DA DISPOSIÇÃO CONTRATUAL.
INSURGÊNCIA DA SEGURADA.

Sentença de procedência reformada pelo acórdão estadual, segundo o qual possível o reajuste por faixa etária nas relações contratuais inferiores a 10 (dez) anos de duração, máxime quando firmadas antes da vigência da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).

1. Incidência do Estatuto do Idoso aos contratos anteriores à sua vigência. O direito à vida, à dignidade e ao bem-estar das pessoas idosas encontra especial proteção na Constituição da República de 1988 (artigo 230), tendo culminado na edição do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), norma cogente (imperativa e de ordem pública), cujo interesse social subjacente exige sua aplicação imediata sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, a exemplo do plano de assistência à saúde. Precedente. 

2. Inexistência de antinomia entre o Estatuto do Idoso e a Lei 9.656/98 (que autoriza, nos contratos de planos de saúde, a fixação de reajuste etário aplicável aos consumidores com mais de sessenta anos, em se tratando de relações jurídicas mantidas há menos de dez anos). Necessária interpretação das normas de modo a propiciar um diálogo coerente entre as fontes, à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da equidade, sem desamparar a parte vulnerável da contratação.

2.1. Da análise do artigo 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, depreende-se que resta vedada a cobrança de valores diferenciados com base em critério etário, pelas pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, quando caracterizar discriminação ao idoso, ou seja, a prática de ato tendente a impedir ou dificultar o seu acesso ao direito de contratar por motivo de idade.

2.2. Ao revés, a variação das mensalidades ou prêmios dos planos ou seguros saúde em razão da mudança de faixa etária não configurará ofensa ao princípio constitucional da isonomia, quando baseada em legítimo fator distintivo, a exemplo do incremento do elemento risco nas relações jurídicas de natureza securitária, desde que não evidenciada a aplicação de percentuais desarrazoados, com o condão de compelir o idoso à quebra do vínculo contratual, hipótese em que restará inobservada a cláusula geral da boa-fé objetiva, a qual impõe a adoção de comportamento ético, leal e de cooperação nas fases pré e pós pactual. (inclinado nosso) 

2.3. Consequentemente, a previsão de reajuste de mensalidade de plano de saúde em decorrência da mudança de faixa etária de segurado idoso não configura, por si só, cláusula abusiva, devendo sua compatibilidade com a boa-fé objetiva e a equidade ser aferida em cada caso concreto . Precedente: REsp 866.840/SP , Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 07.06.2011, DJe 17.08.2011.

3. Em se tratando de contratos firmados entre 02 de janeiro de 1999 e 31 de dezembro de 2003, observadas as regras dispostas na Resolução CONSU 6/98, o reconhecimento da validade da cláusula de reajuste etário (aplicável aos idosos, que não participem de um plano ou seguro há mais de dez anos) dependerá: (i) da existência de previsão expressa no instrumento contratual; (ii) da observância das sete faixas etárias e do limite de variação entre a primeira e a última (o reajuste dos maiores de setenta anos não poderá ser superior a seis vezes o previsto para os usuários entre zero e dezessete anos); e (iii) da inexistência de índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem excessivamente o consumidor, em manifesto confronto com a cláusula geral da boa-fé objetiva e da especial proteção do idoso conferida pela Lei 10.741/2003.

4. Na espécie, a partir dos contornos fáticos delineados na origem, a segurada idosa participava do plano há menos de dez anos, tendo seu plano de saúde sido reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos. A celebração inicial do contrato de trato sucessivo data do ano de 2001, cuidando-se, portanto, de relação jurídica submetida à Lei 9.656/98 e às regras da Resolução CONSU 6/98.  

4.1. No que alude ao atendimento aos critérios objetivamente delimitados, a fim de se verificar a validade do reajuste, constata-se: (i) existir expressa previsão do reajuste etário na cláusula 14.2 do contrato; e (ii) os percentuais da primeira e da última faixa etária restaram estipulados em zero, o que evidencia uma considerável concentração de reajustes nas faixas intermediárias, em dissonância com a regulamentação exarada pela ANS que prevê a diluição dos aumentos em sete faixas etárias. A aludida estipulação contratual pode ocasionar - tal como se deu na hipótese sob comento -, expressiva majoração da mensalidade do plano de saúde por ocasião do implemento dos sessenta anos de idade do consumidor, impondo-lhe excessivo ônus em sua contraprestação, a tornar inviável o prosseguimento do vínculo jurídico.

5. De acordo com o entendimento exarado pela Quarta Turma, quando do julgamento do Recurso Especial 866.840/SP, acerca da exegese a ser conferida ao § 3º do artigo 15 da Lei 10.741/2003, "a cláusula contratual que preveja aumento de mensalidade com base exclusivamente em mudança de idade, visando forçar a saída do segurado idoso do plano, é que deve ser afastada". 

5. 1. Conforme decidido,  "esse vício se percebe pela ausência de justificativa para o nível do aumentoaplicado, o que se torna perceptível sobretudo pela demasia da majoração do valor da mensalidade do contrato de seguro de vida do idoso, comparada com os percentuais de reajustes anteriormente postos durante a vigência do pacto. Isso é que compromete a validade de norma contratual, por ser ilegal, discriminatória". 

5.2. Na hipótese em foco, o plano de saúde foi reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos, majoração que, nas circunstâncias do presente caso , destoa significativamente dos aumentos previstos contratualmente para as faixas etárias precedentes, a possibilitar o reconhecimento, de plano, da abusividade da respectiva cláusula.

6. Recurso especial provido, para reconhecer a abusividade do percentual de reajunte estipulado para a consumidora maior de sessenta anos, determinando-se, para efeito de integração do contrato, a apuração, na fase de cumprimento de sentença, do adequado aumento a ser computado na mensalidade do plano de saúde, à luz de cálculos atuariais voltados à aferição do efetivo incremento do risco contratado.


ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA SEÇÃO do Superior Tribunal de Justiça, preliminarmente, por unanimidade, prosseguir no julgamento do feito, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, e, no mérito, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Vencida a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti, que lhe negava provimento. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Antonio Carlos Ferreira e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 23 de abril de 2014 (Data do Julgamento).

Em conclusão a que facilmente se chega, e sem necessidade de reiterar nem de destacar o que está claríssimo no entender do denominado tribunal da cidadania, reajustes contratuais abusivos – e um reajuste de 100% é absolutamente abusivo sob qualquer ótica ou perspectiva – fere de morte a garantia constitucional de proteção ao idoso, como vulnera sem apelação o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana.

 

[1] Com todo efeito, muita lei existe que auxiliaria tremendamente a nação se fosse revogada hoje mesmo. São diplomas cujo desaparecimento preencheria uma grande lacuna no ordenamento.

[2] Uma recente e importante dessas obras, de Sandra Krieger Gonçalves, é  Judicialização do direito à saúde e o sistema de saúde suplementar no Brasil, ed. Lumen Juris, RJ, 2.016, na qual a autora, em paralelo ao valioso conteúdo, compila impressionante bibliografia a  indicar a dimensão do problema.

 [3] O site Consultor Jurídico, consultado no início de jul/19, em matéria assinada por Tadeu Rover, onde o autor cita  o IDEC,   informa: 75% dos reajustes em planos de saúde coletivos são considerados abusivos. A maioria dos usuários que ingressam no Judiciário questionando o aumento dos planos de saúde coletivo saem vencedores. Uma pesquisa feita pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) com mais de 100 julgados mostra (que) três em cada quatro consumidores que entram na Justiça questionando o reajuste abusivo de seu plano de saúde conseguem suspender o aumento.  E segue o artigo, com dados e informações bastante proveitosas e atuais.

[4] E já que o ambiente é saudosista recordemos quanto a isto afirmado a obra de Hely Lopes Meirelles, da qual se comentava, até a década de  ou mesmo além, que continha ao menos o início e o encaminhamento da solução de qualquer problema de direito administrativo – quando já não o resolvia  por inteiro.