POR QUE A DUPLA LICITAÇÃO? TEMOR OU MAL-ENTENDIDO?

POR QUE A DUPLA LICITAÇÃO?  TEMOR OU MAL-ENTENDIDO?

Ivan Barbosa Rigolin
(fevereiro de 2.012)


I – Tem chamado a atenção ultimamente, na rotina licitatória e contratual dos Municípios com que contatamos, uma prática por vezes exagerada em zelo ou cuidado, sendo certo que o excesso de zelo, onde quer que seja exercido - desde na educação dos filhos até higienizar  a casa ou escovar os dentes – como todo excesso constitui  um mal e não um bem, o qual  amiúde enseja conseqüências muitas vezes mais sérias do que se imagina de antemão.

Trata-se, chamemo-la assim para ganhar tempo,  da dupla licitação, ou seja uma pesquisa de preços e condições prévia à licitação, e após isso a realização da licitação propriamente dita, com base no resultado da primeira. O fundamento desse cuidado costuma ser indicado como sendo o art. 7º, § 2º, inc. II, da lei nacional de licitações, a exigir orçamento prévio do serviço ou da obra, prévio à licitação.

Exemplifiquemos desde logo. O ente público pretende contratar um serviço, digamos de limpeza e conservação de um prédio, por seis meses, ou por um ano.

Após definir com suficiente precisão esse objeto, nosso zeloso administrador sai à caça de orçamentos prévios, escritos e também dotados de equivalente precisão descritiva, junto a fornecedores do respectivo mercado.  Não informa aos fornecedores que pretende licitar o objeto, e que aquela pesquisa prévia de preços visa apenas situar o objeto,conforme o preço médio que for obtido,  em alguma das modalidades licitatórias quando não for o pregão, que não tem faixas nem limite de preço.

 
II - De início em geral a Administração solicitante os obtém, até com alguma boa vontade pelos fornecedores. Realiza então a licitação, a qual muitas vezes surpreende o fornecedor do orçamento prévio, que sempre gostaria de participar do certame.  Sim, porque se é da espécie de comerciante que fornece orçamentos à Administração, então sempre participaria das licitações.

Assim, quando fica sabendo que vai haver licitação no dia seguinte, ou, pior,  que já houve licitação, informada pelo orçamento que auxiliou a Administração a compor, frustra-se e se decepciona a fundo  o atencioso colaborador da Administração. Essa foi sua paga por ter colaborado coma a Administração, que quase nunca o informa de que vai haver licitação, e de que a entidade pública gostaria de contar com sua participação. Pedir favor a Administração soube; recompensar o fornecedor com a atenção mínima que era de esperar, disso não se lembrou...

Numa história assim, quando o elaborador do edital repete o pedido de cotação prévia aos mesmos fornecedores, e crescentemente se a prática se reitera no tempo, quase nunca merece a mesma anterior boa vontade daqueles, os quais, sabendo que o objeto será licitado, muita vez se negam a adiantar quaisquer orçamentos,  alegando que querem participar da licitação, e que quando o edital for à praça, então, aí sim, a Administração saberá o preço indagado, numa proposta fechada na licitação.

Não parece essa uma atitude natural e lógica?

Deve imaginar o fornecedor que errar uma vez é natural, mas perseverar no erro é inexigível a quem quer que seja.

III - Com efeito, para que motivo deveria ele expor seu preço antecipadamente, se sabe que o objeto será licitado e ele, fornecedor, poderá participar do certame e até vencer. Se abre antecipadamente seu preço, então seu orçamento, se for juntado ao processo tornar-se-á um documento publico, exigível por qualquer cidadão que demonstre interesse, conforme assegura a Constituição, art. 5º, incs. XXXIII e XXXIV.

Devassa-se potencialmente, então, aquele orçamento gentilmente fornecido ao poder público apenas para que esse consiga conhecer a faixa de preço do objeto no mercado, de modo a poder confortavelmente escolher a modalidade de licitação a seguir.

Se acaso aquele fornecedor que orçou vem a participar da licitação, vê-se subitamente em uma sinuca de bico: se repete o preço que adiantou é pouco inteligente pois que já abrira e anunciara seu preço; se propõe mais alto está pretendendo superfaturar, e se cota mais baixo então mentiu à Administração anteriormente, quando cotou mais alto...

É conhecida, por exatamente essa razão, uma piada sobre o que acontece a quem ajuda os outros – e o seu conteúdo infelizmente não permite reproduzi-la neste artigo.  Mas é o que ocorre aos fornecedores de boa vontade ou ingênuos o suficiente para adiantar orçamentos à Administração pública, referentes a objetos que serão a seguir licitados. O fornecedor ao fazê-lo só pode perder, jamais ganhar nada – senão talvez ser lembrado pelo poder público alguma vez no futuro, sabendo-se que dor de barriga não dá apenas uma vez. 

Mas a regra é que perca sempre, a tal ponto que  nos inúmeros cursos e simpósios sobre esta matéria que ministramos há mais de três décadas na profissão, com espantosa freqüência os participantes informam  que em seu pequeno Município eles praticamente não mais podem contar com aqueles anteriores fornecedores que tanto colaboravam com a Administração, adiantando orçamentos dos objetos que diuturnamente fornecem, dentre produtos,  serviços e mesmo obras.

 
IV – Sabendo à farta de todos esses acontecimentos – que se repetem diuturnamente em todos os órgãos públicos – os Tribunais de Contas em geral são os responsáveis direta ou indiretamente, por eles. Com efeito, é comum ouvirem-se relatos, de autoridades municipais, que os Tribunais de Contas exigem esta pesquisa prévia de preços, com ao menos três orçamentos escritos juntados ao processo, antes mesmo de o ente escolher a modalidade licitatória.

Se tal fato é verdadeiro, pergunta-se de onde teriam surgido os três necessários orçamentos, se artigo algum da lei de licitações, ou de lei alguma  que se conheça no Brasil, sequer remotamente mencionam essa necessidade, essa exigência ?

De onde saiu a idéia dos três orçamentos ?  Por que três e não dois, ou quatro, ou quiçá dezenove ?  O número três parece de fato ser cabalístico, tal qual o sete para o homem, e por isso originar as mais variadas  lucubrações, beirando amiúde o realismo fantástico.

Compreende-se a preocupação generalizada com o erário, e que os entes de fiscalização se possam certificar de que o órgão público cuidou desse aspecto nas contratações que realiza. Mas daí a se exigir o cumprimento de um rígido formalismo que não está escrito em momento algum da legislação parece ser ir longe demais, na medida em que se sabe que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão e virtude de lei, como está escrito na Constituição brasileira, art. 5º, inc. II.

Quando, adicionalmente, se sabe que essa exigência, além de juridicamente descabida, pelas razões acima declinadas é potencialmente prejudicial e danosa aos interesses dos órgãos públicos, então tanto mais difícil resta compreender porque é formulada aos entes públicos – se é que de fato o é, porque somente nos baseamos no relato de servidores com os quais temos convivência profissional.

 
V – Se a exigência é apenas para as compras diretas, ou se é para que a entidade pública saiba em que faixa de preço atuará na licitação que realizará, e com isso poder escolher a modalidade licitatória, mesmo assim não se justifica.

A lei de licitações somente exige “ampla pesquisa de mercado” quando  das licitações para registro de preços (art. 15, § 1º), e nunca além disso.  Se exige orçamento prévio nas licitações para obras e serviços (art. 7º, § 2º, inc. II), e ainda se exige o mesmo orçamento da Administração como anexo do edital (art. 40, § 2º, inc. II),  cessa por aí exigências de tal jaez, e os três orçamentos prévios tanto à aquisição direta quanto à própria abertura da licitação não encontram respaldo em momento algum do ordenamento.

Por esse motivo claríssimo, não se pode julgar irregular nem uma compra direta nem um procedimento licitatório que não tenha sido precedido daqueles três orçamentos. Se a lei não exige, não é dado a órgão algum exigir normativa ou regimentalmente de ente público algum aquele prévio apreçamento.

Qualquer pesquisa de preço, ou qualquer segurança que a entidade pública tenha acerca de faixa de preço do objeto que deseja servem-lhe à suficiência para  comprar diretamente, ou para licitar o mesmo objeto. Apenas esteja ciente a entidade de que precisa estar sempre dotada de meios de provar que conhecia a faixa de preço do seu objeto, eventualmente com documentos, se acaso lhe for exigido indicar por que trabalhou com aqueles preços nas contratações  diretas, ou com aquela determinada modalidade licitatória.

 
VI – Não se pode, com todo efeito, imaginar, ou aceitar a idéia, de que  algum ente público necessite de orçamentos fornecidos pelo mercado para saber que modalidade licitatória escolher.  Isso, respeitosamente, não tem propósito nem cabimento, na medida em que existem os sites da internet, os jornais, as rádios, as televisões, os folhetos publicitários  e os mais variados meios de comunicação comercial, todos a permitir cotar e orçar o que quer que esteja à venda na face de o planeta, muitas  vezes em menos de um minuto – e com absoluta confiabilidade.

Num quadro assim, se um ente público quer contratar um serviço comum por algo como R$ 50.000,00, pouco mais ou menos, segundo a informação informal que tem do mercado – sim, porque como visto ninguém precisa de orçamentos escritos para saber quanto custa determinado serviço no mercado respectivo -, e se  então realiza um convite para tanto, e a proposta mínima é de R$ 100.000,00, que não cabe num contrato por convite, então de duas uma: ou repreende severamente seu orçamentista francamente desatualizado,  ou remete coletivamente os participantes ao quinto dos infernos dantescos, por concluir que se trata apenas de espertalhões oportunistas e aproveitadores, algo assim.

Ou seja: em circunstância como tal, sabendo os preços do mercado pelos mais variados meios que não orçamentos escritos adrede solicitados,  ou  esse ente contrata por convite ou não contrata -  e enfaticamente não admite que possa precisar de uma tomada de preços para contatar. Daí, entretanto, a esse ente público necessitar de orçamentos prévios para saber quanto custa o que pretende adquirir vai distância enorme, e jamais uma coisa implicou a outra.

A idéia daqueles três orçamentos necessários, portanto, se esboroa e se esvai por terra num átimo, sem supedâneo algum à guisa de  justificativa, se nada na legislação os exige, e se regra jurídica alguma os reclama.
 

VII – Mas o descalabro técnico, que uma idéia mal gerada enseja, não para por aí.

Certos objetos são por sua intrínseca natureza ilicitáveis, não cabendo o certame competitivo em face da sua natureza, e nessa categoria se incluem muitos serviços técnicos profissionais especializados como consultorias, assessoramentos, projetos básicos ou executivos, perícias, levantamentos e outros ainda cuja natureza singular é mais do e que evidente, impedindo qualquer espécie, forma ou modalidade de competição entre os vários prestadores, cada qual singularíssimo no seu modo de operar e de enfrentar o problema colocado.

Existem efetivamente inúmeros, incontáveis desses serviços que diariamente são necessitados pelos órgãos públicos, todos absolutamente singulares na sua concepção e na sua fatura, e que ninguém em são consciência colocaria em disputa licitatória, 99,99% das vezes de menor preço,  tal qual se isso fosse tecnicamente correto ou institucionalmente saudável, e como se em direito uma competição dessas fizesse algum sentido - porque não faz sentido nenhum nunca.

Pois bem, mesmo em casos extremos como estes relata-se que a fiscalização impõe à entidade pública que saia caçando orçamentos de serviços como uma apelação no Tribunal de Justiça, ou  um recurso judicial em Tribunal Superior, ou uma pesquisa de campo sobre determinado assunto sociológico, ou um projeto arquitetônico absolutamente inusitado, ou um estudo de impacto ambiental em local jamais perscrutado pelo homem, ou uma consultoria altamente especializada sobre a gestão de um contrato de construção de uma usina nuclear em alto mar, ou consultoria sobre um inédito projeto de prospecção de petróleo em mar ainda mais alto e jamais encetada anteriormente – tudo que não se sabe se algum dia existiu no mercado.

 
VIII - Um só exemplo real e não fictício de objeto insólito,  ocorrido e noticiado faz alguns anos na imprensa: o estádio do Maracanã foi recentemente  vítima da ação do ácido úrico presente na urina dos zelosos e refinados torcedores que durante décadas para lá acorreram em busca das mais acendradas  emoções futebolísticas, e o seu concreto denunciava os efeitos de semelhante prática, jamais fora  imaginada anteriormente  pelo ser humano como possível, e muito menos pela engenharia civil - sobretudo aquela da década de 50, época da construção do estádio e na qual o brasileiro ainda lembrava um ser humano e não a espécie antediluviana de animal que atualmente recorda.

Como jamais ocorrera algo semelhante na história da humanidade, então restou a municipalidade do Rio de Janeiro sem saber como proceder para evitar o comprometimento definitivo da imensa estrutura de concreto armado que sustenta o maior estádio do mundo. Este foi um fato real, noticiado há alguns anos no Brasil e que embasbacou o mundo inteiro.

Então, a prevalecer a idéia dos orçamentos prévios à licitação, quem pode assegurar  não ter ocorrido a alguma ilustre autoridade local a idéia de procurar três orçamentos desse serviço (ou obra ?   Ou compra ?   Ou projeto ?), que era algo que jamais existira no mercado - e oxalá jamais volte a existir ?  

Seria talvez como perquirir três orçamentos para construir uma ponte de Nova Iorque à Lua, ou então da obra de levantar Veneza de seu leito,  que afunda a cada ano que passa e crescentemente ameaça a sobrevivência de uma das mais belas cidades do mundo.  Alguém sério acaso daria orçamento informal de algo assim ?

 
IX - Se alguma alta autoridade governamental fosse acusada de um delito gravíssimo, extremamente complexo e por isso mesmo inédito na história da Administração pública, então deveria porventura o seu departamento de administração precipitar-se à caça de três orçamentos do serviço advocatício especializadíssimo de elaborar e conduzir sua defesa ante os atônitos tribunais que o julgariam Com os prazos judiciais a correrem, céleres como o tufão e implacáveis como a certeza da morte ?

E, tudo isso, para depois possivelmente se abrir uma licitação, na modalidade indicada pelos orçamentos – que provavelmente jamais se obteriam  ?   

Uma licitação - !! - para esse serviço que jamais poderia ser licitado nem no mais remoto pesadelo da história universal do direito, nem  na mais longínqua e mais antitécnica de todas as hipóteses concebíveis ?

Um técnico jurídico comum, de nível mediano de consciência sobre os misteres de sua profissão, arrepiar-se-ia ao ventilar essa hipótese, e se beliscaria para saber se não está a sonhar.

X – Com todo o máximo respeito que de todos merecem as instituições de fiscalização e de controle, como o são os Tribunais e de Contas e o Ministério Público em especial, algo precisa ser reiterado neste momento sobre parte de sua conhecida - e de resto elogiável - atuação.

O  temor a ações civis públicas de pouco ou nenhum nexo, com pouco ou nenhum cabimento técnico – que vêm sendo uniforme e sistematicamente destroçadas por admiráveis e repetidos acórdãos dos Tribunais de Justiça e mesmo dos Tribunais superiores em Brasília -, e o temor de fiscalizações e relatórios iniciais de Tribunais de Contas em nosso país, assim como de ações populares, tanto quanto a fantasmagórica e abantesmática figura da improbidade administrativa tanto e tão abusivamente vibrada tanto contra culpados  contra infelizmente um sem-número de inocentes, em grande parte explicam esses relatados acontecimentos.

Referidas ações, referidas fiscalizações e referidos enquadramentos, manejados muita vez com um açodamento e uma precipitação que custa crer provirem das altas e muito bem qualificadas autoridades titulares desses procedimentos, chegam a traumatizar  grande coletividade de outras autoridades administrativas que, nem sempre mas também muitas vezes, procedem com a maior lisura que conhecem, e a mais  rematada honestidade de propósito que é dado a um ser humano deter.

Com todo efeito, as incontáveis decisões tribunalícias que se conhecem e que se espalham pelos meios informáticos globais a cada novo dia – e não a nossa imaginação isolada –, reformando condenações de primeiro grau ou confirmando aquelas improvedoras das ações,  são a prova mais eloqüente do indisfarçável excesso com que muitas dessas ações são a todo tempo intentadas com vezo punitivo de quem, por exemplo, não encontrando na lei a obrigação de obter três orçamentos previamente a uma licitação, realiza-a sem esses orçamentos.

 
XI - O que se dá, então pensando, quanto a quem se curva ante uma imposição que não tem guarida no direito – como os três orçamentos para comprar direto ou mesmo para licitar, por vezes algo ilicitável ?

Temor da simples autoridade fiscalizadora, como um timor reverencialis pouco claro e nada nítido a ninguém Intimidação ante o chamado argumento de autoridade, que nada no ordenamento jurídico respalda ou fundamenta ?   Nada disso integra nem prestigia o constitucional estado democrático de direito no mais tão apregoado e alardeado pela imprensa e por todas as instituições governamentais sem exceção.

Ou será que nesta quadra atual  presenciamos tão-somente um gigantesco mal-entendido a sobrepairar o ambiente administrativo nesta matéria de licitações e contratações, reflexo quiçá de um excesso de zelo que, posto que compreensível ante as circunstâncias conhecidas da incivilidade reinante em nosso país, acaba por ensejar outros males institucionais, na medida em que os excessos por sua própria natureza sempre prejudicam ?

Seja o que for que ocorre, certo e seguro é que se o império da legalidade não vigorar soberanamente – na  prática  e  nas rotinas das autoridades  e  não apenas no papel onde figura tão bem -, então pouco se terá evoluído do estado de trevas que até ha poucas décadas assombrava o panorama institucional de nosso país.

E não é nada disso que ninguém, salvo as criaturas que rastejam pelas sombras e temem expor-se à luz solar, quer para a nação.