TRANSPARÊNCIA NÃO É DEVASSA, NEM NA LEI Nº 12.527/2.011

TRANSPARÊNCIA NÃO É DEVASSA, NEM NA LEI Nº 12.527/2.011

Ivan Barbosa Rigolin
(julho de 2.012)

Para Carlos Pinto Coelho Motta



I –  É palpitante como certos temas jurídicos ou institucionais com freqüência têm o condão de nos fazer refletir sobre algo maior, anterior, mais da essência que da circunstância.  O direito é bastante apto a isso, pois que somente foi concebido e existe para regrar a vida da sociedade humana, e com tanto coibir que um homem esmague, estraçalhe e devore outro – se bem que nem sempre obtém êxito nessa função.

Carlos Heitor Cony escreveu em sua coluna, publicada na imprensa diária, uma pequena crônica denominada Mediocridade nacional ([1]), em que afirma, sobre a CPI que se desenrola no Congresso Nacional e que enche todos os espaços de todas as mídias todos os dias:

“Uma pauta que não deixa de ser interessante, mas que escancara em seus escabrosos detalhes a mediocridade dos tempos que vivemos, embora o Brasil, com raríssimas exceções e ao longo de seus 500 e tantos anos de existência, tenha insistido em produzir uma história menor, quase lamentável, em alguns casos vergonhosa.”

É típico das pessoas idosas – dentre as quais aquele grande literato e cronista, e este trivialíssimo escriba – querendo ou não atentarem cada vez mais às mazelas da vida que os cerca, do dia-a-dia, da evolução de todas as coisas em derredor dentro de cada nação, em cada comunidade – bem aquelas que compõem a insuperável mediocridade nacional relatada por Cony.

Natural que assim seja, pois que a percepção de tudo em volta se aguça dentro de cada pessoa com o só passar do tempo, e nestes tempos constrangedoramente bicudos que correm no planeta o pessimismo e a sensaboria gradualmente parecem ir se assenhoreando de todas as sensações que o homem experimenta - somente por olhar em volta !

Com todo efeito, cedo ou tarde  se observa que o homem para, com serenidade alegrar-se e se comprazer de fato, sem risco de ilusão sobre ilusão, necessita recluir-se em  si mesmo e olhar para dentro apenas, e o menos possível para fora. E aqueles, nem sempre endinheirados mas iniludivelmente ricos, em júbilo lograrão esse intento.

Quem hoje em dia se confundir com as coisas que observe em derredor estará frito. O panorama institucional atual do planeta é tenebroso, e nosso direito, pobrezinho, não lhe faz exceção nem o poderia, longe disso.

II - Outra vez dentre tantas a legislação brasileira nos dá recentemente ensejo e azo de constatar quão perigoso pode resultar  o divórcio entre a norma legal e o realismo da vida diária, e como a insidiosa demagogia, em geral puramente eleitoreira, 

Trata-se desta vez de episódios ensejados pela promulgação da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2.011, a denominada lei da transparência, que em sua ementa informa regular o acesso a informações na - alegada - forma da Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXIII, e em outros dispositivos constitucionais.

A idéia, vista só em si, é não menos que admirável, na medida em que visa assegurar a mais fácil e direta visibilidade das contas, dos negócios e das despesas públicas a quem por isso se interesse. A lei nesse sentido dá execução a uma meta, uma diretriz ou um princípio da Constituição Federal, que menciona já na ementa, mas como sói acontecer já se vislumbram sinais de excessos, exageros ou mesmo desvios de finalidade  na prática aplicação da lei, sobretudo, ao que se noticia reiteradamente e ao pouco que já se sabe de concreto, por alguns Municípios.

 
III - Com efeito, tem-se notícia da declarada intenção por alguns Municípios de promulgarem leis que determinem a publicação periódica de listas de todos os servidores municipais, identificando cada qual, com seus respectivos vencimentos, ou salários, totais e a discriminação de todas as parcelas que os integram, sob pena de processamento por violação à regra da transparência veiculada pela nova lei federal.

Nesse sentido são conhecidos, ao tempo em que se escrevem estas linhas, projetos já em tramitação em algumas Câmaras Municipais paulistas – cuja identificação neste momento seria precipitada – naquela exata direção, os quais impõem penalidades ao Executivo por descumprimento da ordem.

Tais iniciativas legislativas – ou a própria e simples notícia delas – desde logo ensejaram polêmicas e acirrados debates sobre os contornos admissíveis da publicidade que tanto se alardeia como uma “conquista da sociedade” ou um notável avanço institucional do nosso direito, envolvendo-se técnicos e estudiosos, e autoridades de toda natureza e todo nível, bem como, naturalmente, os servidores públicos direta ou potencialmente atingidos pelas medidas publicitárias.

E semelhantes debates ganharam a atenção da imprensa, como não tardaria a suceder,  porque assuntos assim logo obtêm grande divulgação.

O que se noticia com insistência é que, como se disse,  alguns Municípios estão editando, ou estão por editar, leis que obrigam os dois Poderes municipais, ainda as autarquias, fundações e ocasionalmente também as empresas estatais, a divulgar listagens completas dos servidores com todas as suas informações remuneratórias, o que inclui as vantagens pessoais que, por vezes, são obtidas graças a decisões judiciais oriundas de penosas e intermináveis ações.  Abre-se desse modo toda a relação remuneratória entre a Administração e seus servidores nominalmente identificados, sem maior preocupação com as potenciais conseqüências, os efeitos e todas as demais depreendências de semelhantes abertura de dados, até então tidos como matéria ao menos reservada.

IV – É bem certo que remuneração paga som dinheiro público não pode constituir segredo particular de ninguém, ou apanágio conhecido apenas por quem a recebe, qual se tratasse de negócio privado que deva permanecer sigiloso a começar por questão de segurança.

Ocorre entretanto que para tudo existem regras, e maneiras adequadas de agir e de proceder.  Não podem as bandeiras de transparência e de ampla visibilidade das contas públicas descambar para o terreno da devassa, da violação à intimidade pessoal de ninguém, nem da afronta a normas de segurança e de proteção individual dos agentes públicos, ao título que for e sob a alegação que acorra à mente da autoridade política.

Não existe razão, dessa forma, para que sejam publicadas listas periódicas dos nomes dos servidores, cada qual acompanhado da sua remuneração total e de todas as parcelas que a compõem a cada caso individual.

Nada na Lei nº 12.527/11 manda – e nem sequer insinua como implicitamente obrigatória – a publicação de listas de remunerações dos servidores e dos demais agentes públicos, muito menos nominalmente identificados, e muito menos ainda contendo toda a radiografia daquelas remunerações, com sua decodificação em todas as parcelas integrantes.

De onde surgiu essa idéia é um desses mistérios ainda a desvendar, porque nem sequer a Constituição de 1.988, na redação originária do seu art. 37, inc. XI – que mandava a lei local estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração paga aos agentes públicos de cada ente federado – determinava nada parecido com a publicar listagens de servidores e de suas remunerações.

Mas a demagogia de muitos políticos – exacerbada grandemente em ano de eleições municipais como é 2.012 – caprichosamente inventou este despautério sem pé nem cabeça, para tanto valendo-se do esfarrapado pretexto de que o advento da lei da transparência a tanto os obriga.

 
V - Nada mais falacioso e falso, pois que nada, absolutamente nada na Lei nº 12.527/11 sequer remotamente conduz a semelhante obrigação, ou mesmo a semelhante raciocínio. E quem entender diverso disso por gentileza aponte o artigo.

A Constituição prescreve no art. 5º, inc. II, como a anterior Emenda Constitucional nº 1/69, art. 153, inc. II, também já o fazia, que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

E em que momento a atual Lei nº 12.527/11 obriga a Administração pública a publicar listas de servidores, com nomes e remunerações, sendo estas detalhadas em suas parcelas Quem o disser ganhará um doce – se não for diabético, pois que então o prêmio se converte em castigo.

Assim, não se criam obrigações em detrimento da segurança e da intimidade de pessoas por inventar obrigações que povoam apenas cérebros desprovidos de algo mais sério a que se dedicar, e que em absoluto jamais constaram de regra jurídica alguma, desde a Constituição até a última lei regedora do assunto e portanto aplicável.

Moralidade e transparência, ótimo; moralismo fácil e devassa ao patrimônio moral alheio, péssimo.  Cortesia pública à custa da imagem e da honra alheias não é bem cortesia mas vilania, torpeza, maliciosidade, desvio de finalidade e desonestidade de propósito. 

E regra jurídica alguma manda ou sequer permite violar direitos e garantias individuais em nome de valores públicos, sejam quais forem os direitos e os valores. Prevalece sobre o que algum dia possa ser chamado interesse público – que ninguém sabe bem o que é, o que significa, onde se localiza, que contorno tem e que nova forma ganhará amanhã – o direito e a garantia individual, que são cláusulas pétreas da Constituição, do seu art. 5º no qual nem sequer emenda constitucional interfere se não for para melhorar e garantir ainda mais. 

A Carta de 1.988 teve até março de 2.012 não menos que 70 (setenta) emendas, mais 6 (seis) de revisão. Responda-se a esta difícil questão: quantas prejudicaram algum direito e alguma garantia individual Alguma delas buliu com o art. 5

O primeiro e insuperável limite natural à configuração do que quer que seja o assim denominado interesse público – que hoje é um porque o partido do governo é um,  amanhã é o inverso porque o partido é outro, e depois de amanhã volta a ser o primeiro porque o primeiro governo também voltou – é exatamente o conjunto dos direitos e das garantias individuais existentes na Constituição em favor do cidadão.  Há outros limites, mas este é sempre o primeiro.

E o tão alcandorado interesse público, camaleão em metamorfose permanente e viravolta incessante, ajeite-se onde couber...

 
VI – Muito inversamente à idéia de a Administração pública dever ou mesmo poder devassar a vida pessoal dos agentes públicos, a Lei  nº 12.527/11 reza o seguinte:

“Art. 31  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”

Observa-se quão acendrado e elogiável foi o cuidado com que lei tratou as informações pessoais que possam ocasionalmente ser objeto de pesquisa, divulgação ou publicidade.

Qualquer publicação de lista de nomes de servidores, acompanhada de sua remuneração, dificilmente pode ser tida como regular e jurídica diante desta transcrita previsão da Lei nº 12.527/11.

Ora, como se imaginaria preservada a intimidade, a imagem, e eventualmente mesmo a honra, de quem tem seus dados pessoais escancarados por publicações incondicionadas e entregues à sanha de veículos de comunicação e de populares que somente desejam ver sangue, ruína, desgraças e tragédias pontilhando a vida alheia – porque é principalmente disso que vive a imprensa falada, televisiva, radiofônica, escrita e informatizada, e disso que se compraz o minúsculo e amplamente desprezível ser humano que povoa o planeta nestes idos do século XXI - ?

É certo que a remuneração de agentes públicos não ´pe matéria secreta nem segredo de Estado, porém para toda divulgação de dados pessoais existem e precisam existir regras e normas em  prol da dignidade do ser humano e de informações pessoais, pena de se permitir instaurar uma caça às bruxas própria da idade média ou da inquisição religiosa dos séculos XVI até  XVIII, sedenta de sangue humano e por isso tão tristemente célebre.

Ora, quem precisa conhecer as remunerações públicas já as conhece, e são os entes e os órgãos de fiscalização do Estado, institucionalmente criados também para isso.  São entes técnicos, e sabem o que fazer com tais informações – diferentemente das massas humanas absolutamente impetuosas, ignaras, cada vez mais deseducadas e crescentemente despreparadas para qualquer função técnica ou para qualquer atividade profissional séria, inquestionavelmente recalcadas e maldosas, que

Como defender a preservação da imagem, da intimidade e da honra de quem tem seus dados pessoais devassados sem requisito e sem condicionamento algum na imprensa ?

 
VII – Não foi por acaso que o Tribunal de Justiça do Paraná decidiu no dia 18 de junho deste ano de 2.012 julgar inconstitucional a divulgação das remunerações dos servidores dos três Poderes daquele Estado, numa ADin movida por um Deputado Estadual ([2]). Cabe ainda recurso – que deve ter sido interposto -, mas já se tem uma decisão de Tribunal de Justiça sobre o tema.

E também não foi por acaso que o dr. Nelson Calandra, Presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, fez publicar na Folha de São Paulo de 26 de maio de 2.012 matéria, à fl. A3, intitulada Transparência, desde que bem manejada, parte de um debate sobre se devem ou não ser divulgados todos os dados pessoais dos servidores, de que se transcreve este excerto:

“Ainda assim, é preciso adotar critérios para a publicação de dados salariais, no intuito de compatibilizar a finalidade de transparência com a necessária proteção da privacidade e da segurança dos servidores e juízes.

Dentro dessa nova e arejada sistemática, mantendo hígida a intenção de propiciar a sindicância por parte de todo e qualquer cidadão,os dados salariais podem ser publicados da seguinte forma:

1) Cargo;

2) Vencimentos brutos;

3) Descontos: (a) especificando cada item tocante a tributos e contribuições, como Imposto de Renda e Previdência Social, e (b) informando a totalidade das consignações (sem especificações, para evitar invasão de privacidade, mesmo porque desinteressa à finalidade almejada na citada lei);

4 ) Vencimentos líquidos.

Publicar os cargos, conforme ressaltado, permitirá uma análise do perfil remuneratório de cada um, sem exposição própria de sua família e ameaças à sua privacidade e à segurança.”

Não é absolutamente razoável ?

 
VIII – Não se pode admitir, em nome de transparências do que quer que seja, é a irrupção de moralismos fáceis e espontâneos que jorram dos discursos de alguns técnicos e de algumas autoridades,  geralmente interessados em votos – e no de palpiteiros e demagogos de todo gênero.

Resulta virtualmente intolerável  que regras primárias de proteção à pessoa e a seus valores imateriais como a imagem, a honra, a intimidade, a segurança e a incolumidade pessoal sejam ameaçados por genuínas fantasmagorias que muitos interessados vendem a quem interessar possa – e como brotam os interessados !...

Ora, num estado democrático de direito, muito longe de constituir direito do cidadão a incondicionada transparência sobre a vida alheia a avançar sobre os dados pessoais de cada pessoa, é a própria democracia que, assegurando direitos e garantias fundamentais ao cidadão, protege constitucionalmente aqueles valores da invasão indiscriminada, não raro tisnada por sangue na boca  contra alegados privilégios – os quais todos do povo odeiam e execram, quando deles não participam.  A democracia não devassa nem expõe o cidadão, antes o protege de abusos e de vilipêndios.

Não foi por acaso que o inc. X, do art. 5º da Constituição,  mereceu a seguinte redação:

“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”

É a própria Constituição Federal, portanto, que assegura estes essenciais direitos imateriais ao cidadão, até mesmo contra qualquer eventual lei que diga em contrário, assegurando corolariamente indenização ao prejudicado por violação à sua intimidade, à sua honra e à sua imagem.

Ninguém, portanto, banque o engraçadinho. E a lei que não se atreva...

 
IX - O moralismo fácil é ainda uma praga contra a qual o cidadão de propósito sério e dotado de discernimento deve se postar permanentemente – sempre o dissemos e escrevemos, mas parece que o mal piora e se agrava sempre e sempre.  Denegrir os outros é sempre uma delícia, desde que estejamos protegidos e não soframos o menor risco.

O que reside por detrás dos motivos de imensa parte dos fiscais do alheio, muito longe de altruísmos humanísticos ou de arroubos civilizatórios, e muito lamentavelmente, em verdade são recalques íntimos, frustrações por metas ou sonhos irrealizados, autodescontentamentos plúrimos, inveja cáustica e corrosiva, aridez espiritual, vacuidade evolutiva, e todos os restantes imagináveis mordentes da pequenez humana.  É mais ou menos, em direito, o caso da ação popular: nunca existiu uma só de propósito sério desde a primeira em nosso país, senão como forma de perseguição do inimigo político.

Fora o cidadão médio mais satisfeito de si mesmo e mais cônscio do que veio a este mundo realizar, então decerto bem menor haveria de ser a quase doentia preocupação em perscrutar e escrutinar seu semelhante, com seus circunstanciais atributos.  Para não generalizar em excesso, é nítido que em algumas nações – aquelas em que não se constroem muros gigantescos cercando as residências - uma tal zelosidade com o alheio simplesmente inexiste, e o cidadão olha antes para dentro de si que em derredor à caça de mazelas com quê se regozijar.

Jamais se postula aqui a impunidade de corruptos nem a salvaguarda de larápios do dinheiro público, como muito menos se prega o segredo de informações sobre despesas públicas – algo assim jamais nos acorreu à idéia.

O que apenas não se tolera é a eclosão de mais um epidêmico surto da demagogia institucional e jurídica que tanto estrago já produziu e sempre produz na história do homem, a mesma que, dentre tantos outros motivos hauridos do dia-a-dia instaram Cony a desabafar contra a mediocridade nacional de sua crônica, a qual todo cidadão de boa cepa merece ver, gradual mas seguramente, desaparecer da paisagem.

Transparência nos negócios públicos, a necessária e a excessiva, um bem que pode converter-se em um mal, esse é apenas o mote do dia.

 

[1] Na Folha de São Paulo de 17 de junho de 2.102, p. 2.

[2] In site da UOL, em Curitiba, que na matéria de 19 de junho de 2.012 não divulgou o nº da ADIn.