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CONCESSÕES, PERMISSÕES, PPPs, RDC. LICITAÇÕES MENOS COMUNS E SEUS EDITAIS (5ª E ÚLTIMA PARTE)
CONCESSÕES, PERMISSÕES, PPPs, RDC. LICITAÇÕES MENOS COMUNS E SEUS EDITAIS
Ivan Barbosa Rigolin
Quinta e última parte
RDC – regime diferenciado de contratação
Introdução ao tema
I – O RDC, regime diferenciado de contratações públicas – que grafamos em minúsculas porque não se trata de substantivo próprio nem deve contribuir para o infeliz maiusculismo que vem assolando a língua escrita – constitui, asseveram em coro as vozes mais autorizadas, um decidido ensaio para a substituição da eternamente amaldiçoada, mas ao que parece também eterna, lei nacional das licitações e dos contratos administrativos, a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993.
O seu escopo inicial era o de servir apenas para licitar contratos necessários à realização (Lei nº 12.482/11, art. 1º, inc. I) dos jogos olímpicos e paraolímpicos de 2.016; (inc. II) da copa das confederações da FIFA, em 2.013, e da copa do mundo de 2.014 – eventos todos também grafados com minúsculas porque inexiste letra menor que a minúscula -, e por fim (inc. III) de obras de infraestrutura e serviços para os aeroportos das capitais dos Estados distantes até 350 Km das cidades sedes dos eventos referidos nos incisos I e II, acima.
Foi entretanto logo ampliado aquele escopo por duas leis subseqüentes, a Lei nº 12.688, de 18 de julho de 2.012, e a Lei nº 12.745, de 19 de dezembro de 2.012, e com isso a lei do RDC passou a destinar-se também a respectivamente licitar (inc. IV) contratos relativos às ações integrantes do PAC – programa de aceleração do crescimento, e (inc. V) aqueles referentes às obras e serviços de engenharia no âmbito do SUS – sistema único de saúde.
É nítido o interesse do governo federal em incrementar o objeto do RDC, o que permite concluir que pode ser verdade que a lei do RDC seja mesmo o ensaio final para a troca da lei de licitações.
O que se tarda a admitir no entanto, como já foi iterado em parte anterior deste artigo, é que, se de fato o RDC deve substituir a Lei nº 8.666/93, então por que motivo se vale a todo tempo da velha lei de licitações como principal substrato e anteparo institucional para os novos institutos, como se observa de dispositivos como o § 2º do art. 1º; o inc. II do ; § 4º do art. 9º; o caput do art. 14 – que se vale de toda a parte de habilitação da lei de licitações; o inc. III do art. 23; o caput e o parágrafo único do art. 35; o inc. II do art. 38; o caput do art. 39; o inc. I do art. 40; o art. 41; o art. 42; o art. 43; o art. 44; o art. 46, e o § 2º do art. 47 ?
Pergunta-se: se se revogar a Lei nº 8.666/93, então o quê sobrará em pé da lei do RDC ?
Quando a lei do RDC copia a lei de licitações compreende-se que a queira substituir; mas quando encosta nela, e se vale como sanguessuga de inúmeras de suas disposições, não estará pretendendo eternizar a lei que – não sem razão - tanto se amaldiçoa no país, e que, dizem, o RDC veio para substituir ? Que raio de substituição seria essa, de um substituto que depende a todo tempo do ente que visa eliminar, e sem o qual não para em pé nem para dar a largada ?
A lei do RDC recorda o escorpião que, segundo a conhecida fábula de Esopo, ferroou o animal que cortesmente se dispôs a transportá-lo de uma à outra margem do rio, algo como o vegetal-parasita que acaba por matar a planta hospedeira que o sustenta.
E rigorosamente o mesmo se deve concluir sobre a lei do pregão, que também ao que se sabe se editou para arrombar a lei de licitações, mas que a todo tempo dela se vale e dela depende como o recém-nascido depende da mãe para sobreviver. E o mesmo ainda se observa da lei das concessões de serviço, a Lei nº 8.987, de 1.995, que jamais dispensa a lei de licitações como instrumento indispensável à sua aplicabilidade plena.
Mas não é só, porque igualmente a Lei das PPPs, a Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2.004, em muito importantes momentos e como se examinou na parte anterior deste artigo se ampara na velha e alquebrada Lei nº 8.666/93, e dela haure imprescindível sustentação institucional.
Num quadro semelhante, o aturdido aplicador deve dar-se tratos à bola e com justa razão questionar-se sobre se em verdade e de fato é assim tão maléfica a lei de licitações, se tantas leis sucessivas, ditas modernizantes e alardeadas como quase revolucionárias, dela dependem de forma tão descarada, e não hesitam em a ela recorrer sem o mínimo pejo ?
Fala-se com efeito muito neste país, mas a ação concreta e eficaz jamais ocorre com o mesmo vigor da fofoca, da chacrinha e da boataria, porque para falar basta falar e especular é só especular, porém agir eficientemente dá muito trabalho, algo situado no polo oposto ao do ideário nacional desde o descobrimento havido no ano de 1.500.
E neste específico caso teremos e haveremos a lei nacional de licitações e contratos administrativos, com todos os seus notórios e incontáveis defeitos – e difícil de acreditar que reunidos numa só lei - por tempo rigorosamente indefinido.
II - Seja permitido adiantar a opinião de que o RDC, em nosso penoso panorama institucional e legislativo quanto a matérias de administração e de meios de o poder público obter serviços, obras e equipamentos, em sua concepção ideal e em linhas gerais constitui uma grande idéia.
O tom propositadamente cáustico e mordaz em que nos referimos aos hodiernos institutos jurídicos e à técnica legislativa usual – algo sumamente refletido e explicável por mais de quatro décadas de experiência específica na área - não deve entretanto turvar a visão mediata e os horizontes de médio prazo que a lei do RDC permite entrever.
Representa inquestionavelmente uma evolução instrumental e institucional com relação ao tradicionalismo procedimental da lei das licitações, que desde 1.993 foi tisnado e agravado pela monstruosa falta de técnica daquele monte de disposições ajuntadas e amontoadas ao sabor das conveniências políticas e das implacáveis injunções corporativas atuantes na sua elaboração, cujo último vislumbre, se acaso sobrasse espaço e tempo, era o interesse público.
Semelhante iniqüidade de propósito, sempre apontada e denunciada desde a origem da lei de licitações pela doutrina, pelos aplicadores e ocasionalmente mesmo pela jurisprudência, sobretudo de contas além de pelas próprias autoridades federais ([1]), foi, sim, mais recentemente vista e reconhecida pelo governo federal, e a lei do RDC não veio ao mundo por outro motivo.
Contém nítidas vantagens operacionais ante a lei de licitações, a serem apontadas doravante nesta modestíssima resenha, as quais evidenciam a honestidade de propósitos dos seus autores – que apenas, e não sem alguma ingenuidade, se augura não seja vilipendiada na prática pelos mesmos roedores de sempre, praga infernal que existirá em nosso país enquanto seguir existindo.
O saldo da apreciação do diploma é positivo sem qualquer dúvida. Atecnias e imperfeições existem, que francamente se poderiam ter evitado, e o frequente recorrimento à lei de licitações é pouco compreensível se de fato este regime de contratação veio para substituir aqueles tradicionais, mas o cunho evolutivo da lei do RDC é nítido já ao primeiro exame. Observemos então a que se referem estas ponderações.
Objetivos, definições e diretrizes do RDC
III – Esta matéria está compreendida nos §§ 1º a 3º do art. 1º, no art. 2º e no art. 4º, todos da Lei nº 12.462/11.
O § 1º do art. 1º da lei do RDC estabelece os objetivos desse regime de contratações. Trata-se, tanto quanto se observa na lei das PPPs, de regras preceptivas e principiológicas, orientadoras de futuros editais e contratos, e portanto de eficiência circunscrita a isso, sem imediatismo algum. São “regras para as normas”, e mais nada que isso.
O inc. I desse § 1º visa aumentar a competitividade entre os licitantes, algo que jamais precisaria ser repetido. O inc. II tenciona promover a troca de experiências e tecnologias, em busca da melhor equação custo-benefício, e o comentário é idêntico. O inc., III pretende incentivar a inovação tecnológica, e o inc. IV visa assegurar tratamento isonômico entre os licitantes. Resta o leitor sem entender por que motivo o legislador, outra vez ainda, esperdiçou seu tempo a redigir as mais rotundas obviedades, tão importantes quanto a pedra na sopa, com a qual ou sem a qual a sopa resta tal e qual.
O § 1º, pouco menos ruim, informa que o edital deverá informar que se trata de licitação para contratação pelo RDC, o que afasta a lei de licitações salvo quando expressamente mencionado na lei do RDC – como se alguém imaginasse que pudesse ser diverso.
O § 2º do art. 1º, introduzido pela Lei nº 12.722/12, detentor de uma falta de técnica que faz corar aluno de primeiro ano do curso de utilidades domésticas por correspondência, ao invés de modificar os incisos do caput, informa que o RDC serve também para contratos de obras e de serviços de engenharia para os sistemas públicos de ensino.
Esta importantíssima matéria – que abre o RDC para toda sorte de construções escolares e de serviços os mais requintados como os de engenharia, todos destinados aos sistemas públicos de ensino de todo nível e natureza - precisaria figurar em destaque nos incisos do art. 1º, ao invés de num rabicho de artigo, como quem se lembrou do assunto muito depois do momento oportuno e anotou às pressas onde pôde no artigo para não deixar passar por completo o lampejo de consciência que os anglicistas denominam insight, mas não.
Na pior técnica imaginável, mereceu apenas um apêndice ao final do artigo, mesmo em se sabendo que construções escolares públicas constituem algo de que o país mais necessita dentre tudo o de que mais necessita, considerando-se que o que mais nos falta, mais do que o ar que respiramos, é educação, e que o estado evolutivo lastimável e degradante em que vivemos se deve à absoluta e integral falta de educação de que cronicamente padecemos, contra a qual parece que medida governamental alguma funciona, e que política alguma dá resultado.
Construções escolares, com todo efeito, mereciam mais destaque na lei do RDC, porém, mesmo do modo acidentário como ali constou, a previsão já dá idéia da relevância que o governo empresta ao RDC, sabendo-se os volumes estratosféricos de verbas públicas que se destina à educação por força do disposto no art. 212 da Constituição Federal, sejam 18% a União, e 25% os Estados e os Municípios, calculados sobre a receita de impostos e transferências que cada um desses entes receba, e que a Carta manda aplicar na manutenção e no desenvolvimento do ensino, despesa essa na qual evidentemente as construções escolares se incluem, e em destaque.
IV – O art. 2º, incs. I a VI, da lei do RDC contém as definições de que a lei se vale, em geral institutos jurídicos, todos casualmente já preexistentes, de que se vale.
Não faz mais que copiar algumas definições da Lei nº 8.666/93, sejam as de empreitada integral (lei do RDC, art. 2º, inc. I), empreitada por preço global (inc. II), empreitada por preço unitário (inc. III), projeto básico e projeto executivo (incs. IV e V), e tarefa (inc. VI).
Se a lei do RDC veio para incorporar a matéria da lei de licitações, aqui abreviou a matéria de inspiração, sobretudo em institutos como o projeto básico e o projeto executivo (v. Lei nº 8.666/93, art. 6, incs. IX e X, e art. 12), racionalizando a sistemática da lei de licitações e fazendo o direito voltar aos tempos do Decreto-lei nº 2.300, de 1.986, fonte da lei de licitações e neste ponto mais econômico e melhor que ela.
E nessa toada o parágrafo único do art. 2º do RDC nada mais realiza que praticamente copiar as als. a até e do inc. IX do art. 6º da lei de licitações, não tendo repetido a al. f porque esta se refere a orçamento detalhado, o que realmente, em boa técnica, não é matéria essencial em projeto básico algum, pois que um projeto básico ou mesmo executivo pode ser completo, cada qual dentro de seu escopo, sem conter orçamento algum ([1]).
A matéria de todo o art. 2º da lei do RDC é, portanto, velha, e conhecida há quase três décadas em nosso ordenamento jurídico.
V – O art. 4º da lei do RDC estabelece diretrizes a serem observadas nas licitações e nos contratos por ela regidos. São regras mais ou menos normativas, mais ou menos principiológicas e preceptivas. Situam-se entre princípios abstratos e subjetivos, de um lado, e normas concretas e objetivas, de outro lado. São no mérito absolutamente saudáveis, e merecem todo prestígio pela Administração. Inspiraram-se em parte em regras da lei de licitações, e em parte inovaram o direito.
As primeiras diretrizes constam dos incs. I a VI do art. 4º, que entretanto contém o § 1º com outros seis incisos, também de diretrizes tão importantes quanto as primeiras, sendo por isso que todas poderiam perfeitamente ter vindo agrupadas em um só elenco.
Os incs. I e II do art. 4º remetem ao importante tema da padronização. Matéria de gente civilizada e racional, deve merecer sempre todo prestígio das autoridades, até porque, uma vez efetivada qualquer padronização, facilita-se bastante o trabalho que virá sobre o assunto ou o tema padronização, uma vez que parte, por vezes grande, das características da coisa padronizada já é prefixada nos futuros certames e aquisição - e para isso serve essa prática.
O inc. I não especifica o que se recomenda padronizar, podendo ser obra, serviço, compra ,material, equipamento, mesmo práticas procedimentais, o tudo enfim que for padronizável, total ou parcialmente, sob o ponto de vista que for.
E o inc. II se recomenda padronizar editais de licitação e instrumentos de contrato, o que é até mesmo incompreensível se nao for assim. Imagine-se, com efeito, conceber desde o início cada edital de cada licitação que se realize, sem se aproveitar experiências e trabalhos anteriores – isso aliás não passa pela cabeça de ninguém, sobretudo nesta época do “recorta e cola” dos computadores, em que os padrões de absolutamente tudo o que se produz tem importância máxima para o trabalho de cada dia e de cada pessoa. Mas para que não remanesça dúvida a lei do RDC reitera a diretriz da padronização.
O inc. III repisa um tema em parte desnecessário por óbvio (busca de economia e vantagens financeiras, sociais e ambientais) e em parte muito salutares, como a perseguição à melhor manutenção de bens e ao melhor desfazimento de resíduos, assim como a atenção a fatores da depreciação que sempre incide sobre bens e equipamentos, tudo isso a ser previsto como fatores de desempate e mesmo de classificação de licitantes.
Essa já era uma moderna diretiva de editais, e cada vez mais quando se conhecem as licitações sustentáveis, excelente e indispensável preocupação de toda autoridade consciente e acordada para o mundo. Estas inserções de diretrizes como estas nos editais são neste momento expressamente legitimadas pela lei do RDC, o que dá mais força aos entes administrativos para de um lado somente classificar proponentes que as atendam, e de outro lado afastar os que não evidenciem esse cuidado nas usas propostas – sem que se alegue “dirigismo” nos mesmos editais, acusação essa muita vez desprovida de qualquer procedência.
O inc. IV , em parte inspirado na lei de licitações, elege como diretriz do RDC a exigência de seguros e mesmo de pagamento compatíveis com as do setor privado.
Compreensível e dificilmente superável previsão, revela-se porém, e sem dúvida, perigosa, e a ser muito judiciosamente exercida. Exemplificando já: se para pintar a casa de alguém o autônomo pintor exige metade do pagamento antecipado, alegadamente para a compra do material, então essa conhecida prática da vida negocial privada acaso legitima o mesmo procedimento pela Administração ? E o mesmo se afirme quanto ao carpinteiro, o pedreiro, o ajulejista e o eletricista, para só lembrar algumas profissões.
Como fica nessas hipóteses, e em incontáveis outras, a proibição, clássica e também principiológica, de antecipação de despesa pública, e de pagamento de despesa pública não liquidada, que se verifica prevista não só na lei de licitações como antes disso, na lei de orçamentos e contabilidade públicos, a Lei nº 4.320, de 1.964, além de na lei de responsabilidade fiscal, e eventualmente ainda em outras normas absolutamente necessárias a consignar essa regra conhecida de todos na Administração e fora dela ?
A conciliação possível entre a vida privada e a contabilidade pública está em uma meia-medida que em geral é possível, não se admitindo uma total antecipação, do pagamento integral ou parcial, sem que nada do objeto seja liquidado, mas sempre se pode conceber um pagamento após a liquidação de uma pequena, por vezes ínfima, parte do objeto total, em prol de se viabilizar o fornecedor em casos em que se evidencie essa necessidade sob pena de o negócio inteiro não se viabilizar.
Esse procedimento é particularmente necessário no trato de profissionais autônomos, muita vez desprovidos de reservas financeiras, mas de que o poder público necessita sobretudo em pequenas comunidades. Outra hipótese é a exigência ocasional de garantias do contratado, sempre que isso também não inviabilizar o negócio. A lei nesse caso permite uma aproximação entre o poder público e as negociações usuais na iniciativa privada, mas cautela é de se recomendar em grande medida, ou a fiscalização das contas públicas tenderá a julgar irregular qualquer contrariedade às regras usuais dos contratos administrativos.
Os incs. V e VI do art. 4º, nitidamente inspirados na lei de licitações, não contêm novidade alguma, e não a conteriam mesmo que inexistisse a lei de licitações. Recomendam dentro do tecnicamente seguro a utilização insumos, tecnologias e mão-de-obra locais (inc. V), e o parcelamento do objeto se dele resultar maior competitividade (inc. VI).
Nem precisariam existir ante uma entidade administrativa consciente e preocupada com o interesse público que tutela, porque sempre cumpre à autoridade prestigiar o produto e os serviços locais, se não prejudicar com isso a qualidade do objeto que contrate. Nada pode ser mais racional nem mais econômico, bastando que a indicação das características locais daqueles bens e serviços não constitua discriminação de fornecedores de objetos de qualidade similar, ocasionalmente a preços ainda inferiores aos locais, e que sempre possam ser justificados.
Cumpre sempre ter presente que cada especificação do edital tem de ter uma explicação lógica e racional, que não precisa ser antecipada no edital – até porque edital não é exposição de motivos nem palco para justificativas -, mas que precisa existir e ser passível de produção se e tão-logo requisitada ou necessária.
VI – O § 1º do art. 4º contém outras diretrizes para os contratos, que como se disse poderiam constar da lista do caput. Aqui o dispositivo manda às contratações pelo RDC “respeitar, especialmente”, e seguem as diretrizes. O que precisa ficar claro é que deve ser o edital da licitação que precisa atentar para estas observâncias, de modo a incluí-las na anexa minuta do contrato, e jamais deixar para cuidar depois do assunto – porque depois de morto o paciente nada mais adianta recomendar-lhe cuidado com a saúde.
As preocupacões dos seis incisos todas se referem a proteção ambiental e compensações; economia de energia e recursos naturais; avaliação dos impactos de vizinhança; proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial, e acessibilidade dos usos por deficientes. São altamente civilizadas e meritórias todas estas orientações, que na elaboração das minutas de editais para as respectivas licitações, sempre que for o caso e que materialmente couberem, já precisarão estar contempladas às claras.
Têm evoluído muito e rapidamente o estudo e as técnicas de proteção ambiental e do patrimônio cultural, assim com as regras de aumentar a acessibilidade das obras e dos bens e equipamentos públicos a pessoas com deficiências físicas, e tal salutar onda desta vez foi listada como obrigatória para contratos pelo RDC.
Trata-se, repita-se, de algo sumamente elogiável sob todo aspecto, e cuja ausência poderá ensejar a invalidação de todo o certame ou a contratação, sendo comum a ação do Ministério Público nessa direção, e ainda mais comum a paralisação de grandes obras ou eventos por medidas liminares concedidas ao parquet e que lamentavelmente se perpetuam, em direto desfavor da população usuária. Seja de quem for a culpabilidade por isso, é de todo indesejável que ocorra, e um acurado planejamento reduzirá tal risco ao mínimo ([2]).
O § 2º do art. 4º apenas repete a regra do inc. II do § 1º, mandando a autoridade degradadora do patrimônio cultural compensar essa degeneração que provocou, e isto deve estar também expressamente previsto na licitação e no contrato, ainda que em termos genéricos e compreensivos, mas que permitam uma ação eficaz de cobrança de tais medidas.
Algumas regras da licitação
VII – Os arts. 5º a 11 enunciam algumas regras informadoras das licitações pelo RDC. Mais tinta do que se devia foi gasta, porque as obviedades são freqüentes, tão necessárias quanto a pedra na sopa uma vez que já existe uma cultura licitatória no país que a esta altura dispensa repetições de uma lei em outra, ou rearranjos de outras leis a cada novo diploma que se promulgue.
Assim, o art. 5º é absolutamente inútil, e se acaso inexistisse o direito preexistente em nada se alteraria e já seria aquele mesmo, dado como foi por diversas outras leis, pela doutrina, pela jurisprudência e pelo mais primário bom senso.
Em suma, o edital não deve exigir o que não se pode justificar, e a explicação disso é que se exigir estará provavelmente dirigindo o certame para o fornecedor a, b ou c, que já devem ter informado o que é para ser exigido e já combinaram a comissão a ser paga à corrupta autoridade licitadora, extraída do preço quadruplamente superfarturado que também é conhecido de antemão. Para evitá-lo, ou tentar evitá-lo, a regra arquiconhecida e mil vezes repetida do art. 5º. Veja-se o art. 3º, § 1º, inc. I, da lei de licitações, e o art. 3º, inc. II, da lei do pregão.
O art. 6º introduziu uma novidade que deu o que falar ao início da lei do RDC: o orçamento da Administração não é público desde o início do certame, porém será dado a conhecer apenas após o encerramento da licitação. Os quantitativos e as especificações naturalmente são divulgados desde o primeiro momento, desde a publicação do edital, mas não o orçamento.
O artigo, com seus três parágrafos, é de técnica irregular, e com freqüência contém obscuridades redacionais que jamais precisariam existir.
O § 1º informa que quando o critério de julgamento for o do maior desconto, ä informação de que trata o caput constará do instrumento convocatório.” Ora, o caput contém diversas informações, e por seguro o autor pretende que se adivinhe que é o orçamento que constará, desde logo aberto, do edital. Por que o tortuoso e mal-resolvido legislador não o disse diretamente ?
Pelo § 2º quando o julgamento for o da melhor técnica o edital deve incluir o valor do prêmio ou da remuneração. Natural que assim seja, já que esse valor é uma constante, e o julgamento se dará em função da variável melhor técnica, não cabendo ao edital fazer mistério quanto à constante.
O § 3º descobre o fogo e inventa a roda ao prescrever que não serão levadas em conta, em favor ou em desfavor de licitante algum, vantagens que estes ofereçam por conta própria, não exigidas no edital – como se pudessem ser consideradas...
Os critérios de julgamento, mencionados ao longo do artigo, são matéria para os arts. 18 e seguintes da lei do RDC, porém de mais importante neste art. 6º é a regra do segredo orçamentário até o final do procedimento – que se dá após esgotado o último recurso administrativo existente -, algo que suscitou polêmica e discussão sem fim, a qual entretanto a seguir arrefeceu e atualmente não desperta quase nenhuma inquietação.
Abriu-se aqui uma clara exceção à clássica regra proibitiva de qualquer segredo na licitação além do preço e das condições comerciais dos proponentes, cuja adequação apenas o tempo julgará, mas que vem sendo exercitada sem maiores percalços.
VIII – O art. 7º cuida de licitação para aquisição de bens, e, sem trocadilho, não anda mal, iterando vantajosamente alguns pontos que a doutrina pisa e repisa mas que a lei não ventilava.
O inc. I, com suas als. a a c, pretende resumir quando o edital pode indicar marcas, ou seja em caso de padronização do objeto (al. a); quando determinada marca for a única a atender a necessidade da Administração (al. b), e como referência comercial para melhor compreensão pelos fornecedores, neste caso devendo ser acompanhada de algumas marcas similares, se existentes (al. c).
Está razoável a relação, porém longe de resumir todas as possibilidades. Uma peça de reposição, por exemplo, precisa ter a marca e o modelo, e por vezes também o ano de fabricação do respectivo equipamento, rigorosamente indicados no edital, pena de se comprar virabrequim marca Lada para o Rolls Royce da Prefeitura.
Em outra hipótese pode ver-se o poder público compelido, em dado momento, a experimentar diversas marcas de um equipamento ou material, como único método de conhecer resultados e desempenhos, para futuras padronizações e aquisições do que resultar melhor. E nenhum desses casos consta do incompleto rol do inc. I deste art. 7º, porém admitem indicação de marcas sem laivo de dúvida.
O inc. II do art. 7º contém uma das raríssimas – ou mesmo a única que a combalida memória alcança – alusão legal a amostras.
Um tema tão importante e tão praticado nas licitações, apenas agora é referido na lei, sendo que toda a teoria se dá com base na prática. Neste caso a alusão a amostras pouco contribui para o aperfeiçoamento da teoria e da doutrina, mas ao menos o tema deixa de ser estranho à lei.
Se forem exigidas amostras, então que o edital as exija para o certame, podendo ser ou na pré-qualificação se houver – e raramente há -, ou na fase de julgamento das propostas escritas ou de lances orais que ocorre após aquilo, devendo as amostras ser então exibidas e julgadas, podendo ser aprovadas ou reprovadas. Por vezes a proposta escrita é aceitável, mas o proponente é rejeitado pela insuficiência da amostra que apresentou.
Há quem postule que a amostra só pode ser exigida do vencedor do certame, mas isso não tem fundamento algum, e parece de pouca inteligência, pois se evidencia que não se deve deixar transcorrer todo o certame e apenas após se eleger um vencedor examinar-se a sua proposta, porque ela pode ser insuficiente e o vencedor é então desclassificado. Momento para e se examinar amostra é durante o certame, e após a certeza de que a proposta escrita não está desclassificada. De quantos licitantes se examina amostra é matéria para o edital decidir.
IX – O inc. III deste art. 7º admite que o edital requeira a certificação da qualidade do produto ou do processo industrial, o que costuma ser uma péssima idéia, que somente tende a prestigiar os conhecidos picaretas inventores dos certificados ISO ou quejandos, inutilidade absoluta e rebarbativa que somente se presta a dar dinheiro a alguns espertalhões, seres mais inúteis que desodorante para canadenses. Quanto menos exigir esta futilidade, melhor o edital.
E o inc. IV, outra ridicularia difícil de imaginar de que cérebro desequilibrado e torpe saiu, permite ao edital exigir que o proponente apresente “carta de solidariedade” do fabricante, pela qual este assegure a execução do contrato. Torna-se difícil elogiar uma lei que contenha uma tal insânia, pela qual o legislador imagina que um terceiro, não contratado, possa assegurar que o contratado da Administração cumpra o contrato que assinou com o poder público.
Não pode ser mais ridículo e alienado o dispositivo, na medida em que apenas um alienígena poderia imaginar algo assim, que tem o mesmo condão de se exigir que numa certidão de casamento conste o aval de alguém que se responsabilize pelo sucesso do matrimônio. Coisas assim retiram a idoneidade da lei que as veicula, e condenam o ordenamento jurídico nacional a manter-se no fundo de uma caverna. E em nome da sobriedade é melhor cessar aqui o comentário a esta regra mentecapta.
X – O art. 8º contempla os cinco regimes de execução de obras e de serviços de engenharia, sendo quatro já conhecidos pela lei de licitação (empreitada por preço global, por preço unitário, tarefa e empreitada integral) e um introduzido pela lei do RDC, a contratação integrada, definida e tratada no art. 9º.
Os §§ 1º a 6º do art. 8º são da mais rematada inutilidade ao repetir regras clássicas existentes há décadas no direito e na lei de licitações, e que já seriam obrigatórias com lei do RDC, sem essa lei ou apesar dela. O § 7º introduz a novidade de que não poderá ser licitada obra ou serviço de engenharia pelo RDC sem projeto executivo, seja qual for o regime de execução que se adote.
Não se atina com o motivo disso, uma vez que se a lei de licitações dispensa o projeto executivo, não ase compreende o que o RDC tem a mais que aquela lei que exija o projeto executivo, Apenas porque é licitado pelo RDC, então a velha obra, ou o velho serviço de engenharia, milhares de vezes licitados pela lei de licitações apenas com projeto básico, agora exige o executivo, que chega a custar 6% (seis por cento) do valor da obra – e pode ser dinheiro público jogado fora, ou embolsado pelos profissionais que realizaram o lobby junto ao legislador para introduzir na lei a novidade. O legislador e o lobista não dão ponto sem nó.
XI – O art. 9º, como se disse, cuida da contratação integrada.
[1] É emblemática a passagem, que procuramos perpetuar, em que um duradouro ex-Ministro da Administração acusou a Lei nº 8.666/93 de ser a pior lei do mundo. Foi o Min. Bresser Pereira. Terá ele a nossa anuência até o dia do suspiro final.
[2] Ora, o dinheiro, essa vulgaridade… Oxalá o poder público, perseguindo a excelência nas suas realizações, pudesse proceder como se diz dos adquirentes de Rolls Royces, que escolhem tão-só o modelo e a cor, jamais se rebaixando ao ponto de perguntar o preço.
[3] Somente dois exemplos ilustram isso afirmado: o caso da pavimentação da estrada que liga a via Dutra a Paraty, emperrada há décadas por questão ambiental, e o caso de um trecho do Rodoanel, ao redor de São Paulo, também paralisado por longo tempo graças a medidas judiciais em face de questões ambientais. E demoram tanto para se resolver esses impasses que, quando isso ocorre, ninguém mais se recorda sobre se a paralisação foi ou não acertada, e até porque as condições físicas do meio circundante já forma drasticamente alteradas. Uma tal situação expõe às claras o nosso primitivismo institucional, as obras públicas sendo realizadas aos trancos e barrancos, com uma autoridade a degladiar com a outra e a mais absoluta inexistência de planejamento integrado.