O MAR NÃO ESTÁ PARA O SERVIDOR PÚBLICO

O MAR NÃO ESTÁ PARA O SERVIDOR PÚBLICO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jan/20) 



Sobre o tema

O tema dos servidores públicos no Brasil deve constituir  o mais importante assunto do direito público neste momento, e com isso,  por conseqüência inevitável, do   inteiro panorama institucional brasileiro.

Uma revolução sem precedentes nessa parte do ordenamento, tão forçada quanto inédita, e francamente assustadora para a categoria, já foi posta em andamento.

Estas são algumas rápidas reflexões sobre a matéria.

I - Desde que nos conhecemos por gente vimos alertando em cursos, seminários, simpósios e outros eventos técnicos sobre  a temeridade que o inegável privilégio funcional, remuneratório e previdenciário atribuído ao pessoal sob o regime jurídico estatutário.

Em nosso país e de longas décadas os ocupantes de cargos de provimento efetivo desfrutam de vantagens e de benesses dificilmente sustentáveis por muito tempo, e com isso manteníveis com segurança no futuro.

O dinheiro público ou particular, como todos sabem não dá em  árvore, mas depende de muita produção de bens e de serviços que a nação consiga gerar, o conhecido produto interno bruto, PIB, de que se origina a maior parte das receitas públicas, e que enriquece os países e os cidadãos. A sua ausência, ao revés, empobrece e brutaliza as populações.

Visto hoje o Brasil de algumas décadas atrás, parece bastante nítido que as coisas eram mais fáceis em termos financeiros, porque:

- a população era muito menor - de 1.970 até 2.020 a população nacional triplicou  de 70 para 210 milhões -  e com isso  os servidores contavam-se em número bastante menor, em todas as esferas, que aquele verificado  na seqüência da história;

- a visão unilateral daquela categoria – concebida, incrementada  e fomentada por políticos inescrupulosos com olhos postos tão somente na eleição seguinte e no voto dos servidores e seus relativos, e peritos em fazer cortesia com o chapéu alheio -, nas últimas décadas tornou-se crescentemente avassaladora ao erário;

-  com todo efeito, diante de tantos incentivos oficiais a categoria dos servidores gradativamente se encapsulou e se fechou em si, atenta apenas ao seu interesse material, e parecendo isolada da realidade que a todos cerca  - como se os meios para sustentá-lo fossem inesgotáveis e os benefícios hauridos dependessem apenas de leis e de decretos, e sem a incômoda preocupação com as fontes de custeio;

- a Constituição e a legislação, complacentes e até simpatizantes,  permitiam um tal estado de irresponsabilidade-inconseqüência-libertinagem oficial com o dinheiro público. As autoridades preferiam ver os entes que governavam irem à breca, à asfixia financeira e econômica, à ruína material e institucional, a planejar com austeridade um plexo exeqüível  de direitos quanto ao seu pessoal, que fosse sustentável tanto na criação quanto anos e décadas após dentro do que fosse viável prever e estimar;

- nada existia no ordenamento como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº  101, de 4/5/2000, que atrasadissimamente em nossa história de certo modo organizou as finanças públicas e impôs limites à gastança irrefreada e cem por cento irresponsável em que se constituíam as políticas remuneratórias dos servidores públicos em nossa imensa nação.

Hoje as coisas estão institucionalmente muito mais controladas – até porque, materialmente, mesmo  o mais cínico dos  governantes já reconheceu  a catástrofe econômico-financeira que se abateu sobre o poder público, como aquele Prefeito que em 2.019 fechou as portas da Prefeitura e fugiu da cidade, ou o maravilhoso Estado  federado que, dando de ombros ao ordenamento jurídico,  instituiu para o seu âmbito a figura da calamidade financeira. Com todo efeito, a necessidade é a mãe das invenções;

- a absoluta frivolidade,  inconseqüência e  leviandade dos governantes quanto ao erário dos entes que dirigiam – afinal são apenas quatro anos, e meu sucessor que se esfole com a conta impagável – era quase a regra única a reger a política de pessoal do serviço público. - Quando o cofre arrebentar eu já estou longe – assim pensava e assim agia o governante;

- Parece que o dia temido chegou. Quem ainda acalentar alguma dúvida quanto ao acima afirmado tenha em vista apenas um exemplo: o Estado do Rio de Janeiro destes últimos anos, e acidade maravilhosa que não consegue pagar seus servidores da saúde, da cultura e quejandos. Se  esse leitor ainda não admitir o que se afirma, então deixe este pequeno artigo de lado e não perca mais tempo, eis que de longa data o pior cego é o que não quer ver.

II – Se o governante tivesse de sustentar com seus próprios recursos as benesses que defere aos servidores do ente que governa, ou se implantasse na Administração pública a política remuneratória que mantém  na sua empresa, então a história seria por certo bem diferente, e variadas calamidades seriam prevenidas. Em nosso país o dinheiro público parece ser tido e havido como de ninguém quando em verdade é de todos, e se for esbanjado em favor de poucos por seguro faltará para imensas multidões de cidadãos em suas  necessidades reais.

Não resulta por acaso que o concurso público ainda é vislumbrado como uma ansiada vereda da salvação por  vastos  contingentes de pessoas, já empregadas ou desempregadas, que sonham diuturnamente com ocupar algum cargo público e que em geral, tão logo nele ingressam imediatamente mergulham no sonho de desfrutar sua aposentadoria integral – que virá trinta ou quarenta anos depois !...

A atratividade dos cargos públicos, ainda hoje em dia, se deve a motivos, quanto aos servidores,  como os seguintes:

- em primeiro lugar o servidor, com muita freqüência,  não é muito demandado ou exigido, e muita vez quase nada. A miserável idéia que assola boa parte do funcionalismo estável  é a de que tanto faz trabalhar como um mouro ou folgar como um   gato doméstico, sabendo-se que inexiste qualquer  avaliação de desempenho, o resultado funcional é o mesmo, e a remuneração é invariável.

O bom servidor se perde entre os maus e improdutivos, e o reconhecimento oficial a todos é muito similar. Devido à rigidez das regras de promoções, evoluções e premiações por desempenho, mesmo que a chefia quisesse premiar seu bom servidor ver-se-ia  impedida de fazê-lo, como, diversamente,  sempre teria meios de fazer na iniciativa privada.

A improdutividade e a ineficiência por evidente não acontecem sempre mas acontecem muito, os  numerosos servidores públicos de produtividade admirável e exemplar de entremeio àqueles que apenas com vergonha denominam colegas;

- o servidor tem diversos e importantes adereços ao pagamento principal, desconhecidos  no  setor privado;

- tem possibilidade de subir em carreiras,  as quais,  ainda que indiretamente obrigatórias pela Constituição federal, ultimamente constituem  um conto de fadas;

- pode licenciar-se e afastar-se do serviço ativo de modos e por fundamentos inexistentes na iniciativa privada;

- desfruta de sólida estabilidade no serviço, quebrada ou ameaçada apenas, após processo administrativo com todos os meios de defesa e de contraditório constitucionalmente assegurados sob pena de nulidade,  em casos gravíssimos ou de declarado banditismo, que jamais seriam admitidos em instância laboral alguma;

- conta com o instituto da disponibilidade funcional, hoje remunerada proporcionalmente ao tempo de serviço;

- passa à inatividade  com aposentadoria integral, em vivo contraste com o trabalhador privado sujeito ao regime geral do INSS, que em geral se aposenta e permanece no emprego como se nada tivesse acontecido, risco de vir a perecer, com sua família, da mais negra inanição;

- desfruta, conforme o cargo, férias de 60 (sessenta) dias ao ano, caso dos  membros do Judiciário e do Ministério Público;

- com muita freqüência incorpora diferenças remuneratórias, por cada ano exercido, entre os cargos efetivos  de origem e cargos em comissão que ocupe por algum tempo. São elas  em geral de dez por cento a cada ano, até se incorporar a integralidade da diferença. A isso por vezes se denomina  estabilidade econômica;

- conta com remoções, acompanhamento de cônjuge, adicionais por tempo de serviço e por outros motivos laborais; gratificações variadas; auxílios os mais diversos e inimagináveis na iniciativa privada, como o auxílio-moradia a quem reside no próprio Município em que trabalha; apartamentos funcionais, mesmo para quem reside no próprio Município; excrescências repugnantes como licenças-prêmio por assiduidade, ou auxílio-reclusão; faltas abonadas;  horários especiais; verbas de gabinete e de representação; cartões de crédito corporativos - cercados do mais bem guardado segredo no planeta -; licenças para atividade política, desde o registro da candidatura; licenças não gozadas e pagas em dobro quando da aposentadoria do servidor,  etc, etc.

Um empregado da iniciativa privada diante desse elenco se pergunta que diabo disso é aquilo;

- registram-se ainda  outras ocasionais vantagens, folclórica e localmente instituídas e as quais seriam  matéria para espetáculos de humor se não fossem pagas com dinheiro público, tais quais salário-esposa, salário-aniversário,  gratificações inominadas e inexplicadas na lei de criação e aleatoriamente atribuídas, em valor de livre escolha pela autoridade,  a quem aquela autoridade entenda merecer...  tudo a denotar que quando existe dinheiro disponível a imaginação dos governantes  não tem limite.

Todas estas elencadas são vantagens remuneratórias ou indenizatórias que não têm paralelo  no mundo particular, em que o empresário, se quiser beneficiar alguém, fá-lo  com seu dinheiro e não com dinheiro público.

Prodigalidades  como salário-esposa, devida apenas porque o servidor é casado,  ou licença-prêmio por assiduidade – que premia quem apenas cumpre o dever de ser assíduo ao trabalho -, desprovidas completamente de qualquer laivo ou vestígio de interesse público, somente provocam o escárnio do empresário, e a descrença do cidadão no poder público, e a indignação.

Quem não nasceu ontem, e quem for honesto de propósito, sabe exatamente do que se fala.

 

III – Um marciano que vislumbrasse um tal panorama imaginaria tratar-se, o Brasil, do paraíso no universo.  Mas que não descesse ao planeta e examinasse com detença aquele quadro, pena de grave desilusão.

E ao que tudo indica o desmoronamento do mundo encantado da fantasia no serviço público já se inicia, ou, melhor,  já está em curso. O dinheiro como se afirma não aceita desaforos, e não constitui matéria para digressões humanísticas ou palestras bem-soantes: ou existe ou não existe. E o dinheiro público, quando existe, positivamente não se presta a pagar salários-aniversário ou prêmios a quem apenas é assíduo ao serviço.

Ao que se vislumbra por toda parte finalmente caiu a ficha do governante público, e a sua administração financeira do pessoal precisará ser outra. Sabe-se que lidar com esse assunto e tentar reformar a secular deformidade institucional  equivale a explodir artefato atômico na Administração,  tal é a força e a influência do funcionalismo em todas as esferas ([1]).

Acontece entretanto que, como se recordou, contra a frieza da matemática de nada servem as movimentações humanas nem a eloqüência dos discursadores, por mais justas e arrazoadas que acaso sejam ou pareçam, nem o inconformismo das multidões.  Por mais dura que seja a solução, não existe alternativa humana à realidade material, que é gelada e impassível, nem aos números, que são exatos e não humanos.

 

IV – Particularmente relevante na totalização da despesa com pessoal do serviço público, como é de conhecimento absoluto de todos, é a questão da previdência social, abrangendo tanto estatutários efetivos aposentados quanto seus pensionistas.

Não passa pela cabeça de nenhum  ser racional como pode um cidadão que por toda a vida contribuiu para a previdência nacional, muita vez pelo teto contributivo,  receber seus dois ou três mil reais mensais do INSS, vendo despencar seu nível de vida até um  ponto insuportável e aviltante, ao lado de funcionários efetivos que se aposentam com cinqüenta, sessenta ou setenta mil reais, muito acima do teto constitucional, como se isso fosse a coisa mais natural  deste mundo.  Outra vez: essa não é a regra geral, mas isso existe em grande quantidade.

Tanto aquilo não é normal que a previdência social foi toda alterada, por uma uma penosa e extensíssima emenda constitucional (EC 103/19)  que consome 25 (vinte e cinco) páginas impressas do site planalto.gov.br, seguramente a melhor fonte de legislação existente e que tem uma formatação concisa e econômica.

É muito raro mesmo alguma lei ser tão extensa, e a graças à EC 103/19 a Constituição não mais pode ser consultada sem a inserção dessa  emenda, e, nesse panorama meio esotérico, os editores não se aventuram a editar a Carta por enquanto. Sim, porque  tramitam no Congresso outras PECs, uma das quais chamada “PEC paralela” e que estenderá a Estados e Municípios as regras da EC 103 – regras essas que jamais poderiam ter sido excluídas para esses entes federados.

Ou seja: não se sabe quando o país, cuja Constituição já há tempo é um periódico,  terá uma Constituição editável.  Coisas do Brasil, e azar do direito.

Foi adiada a reforma previdenciária por diversos governos federais que não conseguiram fazê-la sequer tramitar no Congresso, e somente neste momento e sob este governo – que se deu conta de que o país estava prestes a falir e fechar – foi enfim aprovada e promulgada, após muita modificação ao projeto executivo originário, e uma guerra congressual insana.

A previdenciária  constitui a despesa mais gigantesca do pessoal do serviço público, a ponto de na União já quase superar a despesa com os ativos, e sempre está à beira do insuportável e do impagável... até o dia que Deus quiser.  A mais segura e confiável instituição brasileira sempre foi e continua sendo, por conseguinte, o anjo da guarda.

 

V - A imprensa diária dá notícia de que, no dia de hoje, apenas sete dos 26 Estados brasileiros desfrutam situação financeira saudável, e que, mesmo sem a aprovação da PEC paralela, por conta própria 10 Estados já aprovaram suas reformas previdenciárias à imagem da federal, e outros sete Estados estão processando as suas equivalentes reformas ([2]).

Desse modo, quando for aprovada a PEC paralela – e é claro que o será - quanto a esse específico ponto talvez não mais seja ela necessária para os Estados, esses  que, repita-se à exaustão,  estupidamente, bisonhamente, como se o país fosse o reino  da fantasia da Disney World,  foram excluídos da EC 103/19.

São cada vez mais freqüentes as notícias de que alguns Estados não conseguem pagar em dia seus servidores, destacando-se Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro para não precisar ir longe.  Com muitos Municípios o mesmo acontece, e ter chegado ao fim de 2.019 para esses entes da federação foi uma façanha...

De nós para conosco, no convívio com os entes públicos há quase meio século sinceramente não compreendemos como uma tal situação pode ter chegado até o dia de hoje sem acarretar tragédias verdadeiras e o desmantelamento da ordem econômica, jurídica e institucional do serviço público todo inteiro. 

Não se rata de discurso – antes o fosse... -, mas de amarga reflexão sobre a realidade vivida e arquiconhecida por quem nutra alguma preocupação com o destino da Administração pública, com os milhões de servidores públicos existentes e, por via indireta, com o futuro da população mesma.

O poder público ultimamente parece estar operando o para apenas pagar-se a si mesmo e manter a máquina funcionado, como aquele prosaico automóvel que somente tinha potência  para mover a si próprio, sem suportar passageiro nenhum...  O governo mantém a administração para apenas permitir que sobreviva, pouco podendo investir e construir para o desenvolvimento.

 

VI - O servidor público seria  então o grande vilão desta história, como com boca fácil se assevera  e com ouvido ainda  mais fácil se propaga aos quatro ventos ?

Não é bem essa a verdade. Em primeiro lugar o servidor não é culpado nem responsável pela situação inquestionavelmente séria em que todo o funcionalismo está envolvido,  e pelas vantagens, e pelos privilégios, e pelas regalias  que o estado lhe deu. Pode tê-los pedido, como todos fazem por melhorar, porém se a autoridade não quisesse tirar proveito da generosidade com o  dinheiro público como na maioria das vezes é o único que acontece, então nem sequer veicularia aquele anseio em projetos de lei, em decretos legislativos ou em quejandos, cortando a pretensão inviável no nascedouro, e dando seqüência apenas ao merecido e suportável.

Afirma-se que perguntar não ofende, como pedir ou pleitear também decerto não ofende. O que ofende a consciência comum  é conceder sem responsabilidade, temerariamente, sem cálculo do impacto a curto, médio e longo prazo.

Em segundo lugar não deve o servidor passar a ser crucificado de uma hora para outra porque a despesa que enseja ao erário, apenas agora no vigésimo primeiro século da era cristã, alguém percebeu que é muito alta, demasiada.

Ora, terá sido apenas neste momento da história que alguém se deu conta dessa evidência que sempre foi claríssima e indiscutível ?

Alguém imaginou que o saco não tivesse fundo, ou que a mina de dinheiro público fosse uma cornucópia inesgotável, como dádiva dos deuses ou bem-aventurança bíblica ?..  Ora, quanta irresponsável ingenuidade !  Que parolagem flácida para dormitar bovino !..

Em terceiro lugar seja recordado que, ainda que existam as aberrações remuneratórias e previdenciárias em alguns setores da Administração e do Estado, o fato é que, fora do plano federal em que o patamar remuneratório é melhor, o funcionalismo estadual e o municipal é em geral mal remunerado.

Nos Municípios, sobretudo nos menores, a paga ao funcionalismo é proverbialmente ruim, mais do que modesta e, em média,  longe  de configurar qualquer esbanjamento.

Acontece que o estado tornou-se muito grande, muito dispendioso, muito  abrangente. Quis até bem pouco tempo estar presente, dominando-as,  em todas as áreas, por mais estranhas à função estatal que fossem, como em empresas que nada oferecem de serviços públicos ou essenciais; em empresas financeiras que jamais deveriam ser estatais; em atividades industriais perfeitas para o empresário e aberrantes para o poder público, em tudo e em mais um pouco.

O resultado, todos sabem, é e foi  inegavelmente péssimo: onde qualquer empresa bem gerida dá bom lucro, o estado acumulou prejuízos monumentais, insuportáveis, fracasso após fracasso e frustração após frustração.  Manejadas politicamente e nada tecnicamente, as estatais comandadas por afilhados  políticos que mal desenham um zero na areia com um copo, são o retrato mesmo do fracasso brasileiro, que ninguém mais tolera, nem o próprio governo.

Ficando assim gigantesco, o estado o que se meteu em tudo  precisou equivalentemente agigantar os seus quadros de pessoal, e o fez década após década, insensível à bola de neve que engendrou e à inevitável catástrofe que fomentou, a qual apenas agora parece começar a ser debelada.

 

VII – O choque da realidade, num quadro  semelhante, somente poderia ser avassalador, e o é.

Não existem mais meios, nem recursos, nem combustível, nem estoques, nem possibilidades de o pessoal público manter o patamar  institucional e remuneratório de que sempre desfrutou.

Se aquele contraste entre o mundo privado e o mundo público dificilmente desceu pela garganta do cidadão indiferenciado  ([3]), a esta altura dos acontecimentos, entretanto, a manutenção do privilegiamento remuneratório e previdenciário se tornou insustentável.  Técnica e moralmente intragável já parecia ser, porém neste momento tornou-se intolerável, e materialmente insuportável.

Tempos novos já chegaram às instituições brasileiras.

Ninguém se iluda quanto a redução gradual, porém fatal, daquele contraste, que é inevitável em prol da própria sobrevivência.  Pode o mundo pegar fogo; pode o céu desabar; podem aportar outra vez  no planeta as sete pragas do Egito.  Novo dilúvio, novo bombardeio astral, nada disso importa para o caso  porque a matemática continuará exatamente a mesma, impassível e fria como o olhar do agente 007, e dura qual  certos bifes de rodoviária.

Ridendo castigat mores, com carradas de razão o antigo visionário (de comédias) Jean de Santeuil preconizou. E mieux est de rire que de larmes écrire, também reconheceu Rabelais em 1.514 no seu Gargântua.  E sempre que humanamente viável, como nessa mesma esteira  insiste o jusfilósofo  Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, riamos e gargalhemos ante as agruras  da vida. É o melhor que se tem a fazer. Com todo efeito, a quem tiver sobranceria e serenidade para fazê-lo as agruras serão sensivelmente menores.

Com humildade aconselha-se portanto a todos os envolvidos na barcaça daquelas mudanças institucionais  já desencadeadas que convictamente abracem os ensinamentos de referidos sábios, e naquela conformidade, com a galhardia que lhes for disponível,  procurem pairar  acima dos ocasionais  e aparentemente inevitáveis, porém superáveis, desconfortos. Como, desejavelmente e de resto,  de quaisquer outros desconfortos.

 

 

 

[1] Veja-se apenas o caso da França na transição 2.019/20, país que os sindicatos paralisaram por um mês apenas em face da anunciada intenção governamental de unificar os 42 sistemas de previdência existentes. Se somente pelo anúncio o país parou, é de imaginar s que se for aprovada a medida  será incendiado, mais ou menos como Notre Dame de Paris ou o nosso Museu Nacional.

[2] O Estado de S> Paulo, 8/1/00, editorial A agenda fiscal dos Estados, p. A3.

[3] Aquele de quem se diz que não tolera privilégios, sobretudo se deles não participar...