O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS DE EMERGÊNCIA

 

O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS DE EMERGÊNCIA

  

Ivan Barbosa Rigolin

(abr/20)

  

I – Considerando   que os artigos de  direito nunca foram tão jornalísticos   quanto nos dias que correm, em que as instituições são a cada momento  mais instáveis, mutáveis e impermanentes, e que com inquietante velocidade muitas instituições se invertem, um tema que oferece interesse no campo das licitações e dos contratos é o suscitado por esta praga unicamente asquerosa dentre todas as de que alguém se lembre, a do coronavírus, que alguém diz ter sido  vazada por erro em laboratórios de biologia, e algo de que o mundo parecia estar livre em definitivo.

Ainda que responsável por letalidade muitíssimo menor que as denominadas endemias, epidemias e pandemias conhecidas – a “gripe espanhola” matou bem mais de 50 milhões de pessoas em 1.918 e inclusive um Presidente da República do Brasil -, o rebuliço, a confusão planetária, e o quase pânico mundial que essa pandêmica peste  tem provocado, como não poderia deixar ser de espraia-se também pelo mundo do direito e  enseja  conseqüências jurídicas dignas de reflexão, interessando agora aquelas referentes ao tema das licitações e dos contratos.

Fala-se das emergências, ou das situações emergenciais, hipoteticamente previstas no inc. IV do art. 24 da lei nacional de licitações e contratos administrativos, a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993.

Mais grave ainda: invoca-se a situação de calamidade pública, tanto mais séria e abrangente que a emergência, sendo mesmo que o Congresso Nacional, atendendo a indicação do Presidente da República, decretou estado de calamidade pública nacional em razão da nova peste que paralisa o mundo, através Decreto Legislativo nº 2.020, de 20 de março de 2.020.

E o mais curioso talvez seja o efeito para o qual a calamidade foi decretada: poder desconsiderar as restrições e os limites de despesa estabelecidos no art. 65 da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101, de 2.000 ([1]).   Não foi portanto uma calamidade generalizada e para todos os efeitos mas apenas para aquele efeito, o que é também curioso. Eis a ementa do diploma:

DECRETO LEGISLATIVO Nº 6, DE 2020

Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 10, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2.020.

Temos portanto o estado de calamidade pública decretado, e para um fim específico que não é o de a Administração poder dispensar licitações. E a estranheza de que não tenha sido o Presidente da República a decretar a calamidade, mas o Congresso Nacional através de um decreto legislativo solicitado pelo chefe do Executivo.  O ambiente e o momento, dentro da barafunda e da quarentena forçada que imobiliza o país e boa parte do mundo, também contribui para entronizar   a casa-de-mãe-joana dentro do direito público, quando o Executivo pede ao Legislativo que exerça uma atribuição executiva.

A situação desde logo é de inegável emergência,  confirmada e agravada com decretações de calamidade pública, sendo esta de âmbito nacional, estadual e municipal porque Governadores e Prefeitos também vêm decretando o estado de excepcionalidade. 

O ambiente lembra o do antigo filme Nosferatu, de  Friedrich Murnau em 1.922, no qual a cidade alemã de Bremen verdadeiramente enlouquece após algum tempo do terror implantado pelo monstro-vampiro, com as pessoas ensandecidas a andar sem direção como autômatos. As autoridades brasileiras estão semelhantemente enlouquecidas, adotando péssimas decisões e, sem equipamentos de segurança, não fazem a  menor idéia do que acontece nem do que será cada dia seguinte, e com isso vêm  arrasando o país por impedir o seu funcionamento mais primário das empresas, dos serviços e de toda a economia. 

II - Reza o citado dispositivo da lei de licitações:

Art. 24  É dispensável a licitação: (...)

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

 O coronavírus,  cuja patologia se  passou a designar por Covid 19 (Coronavirus disease  2.019), enquanto ainda era apenas epidêmico e localizado já assustou significativamente, porém quando mais recentemente a Organização Mundial da Saúde o declarou pandemia hoje presente em mais de duas  centenas  de países, o pavor generalizado tomou conta dos habitantes de nosso planeta. Desde então pipocam por todos os países as decretações de emergências, a começar pelos Estados Unidos.

As medidas mais radicais na economia, na vida social, na política preventiva e terapêutica, ou para abreviar em qualquer outra província da existência de que alguém consiga  se lembrar, foram e vêm sendo crescente e rapidamente adotadas e implantadas manu militari pelos governos,  como de resto pelas empresas e pelas pessoas individualmente. O resultado para a economia está sendo catastrófico e, esse, sim, calamitoso. Talvez morra mais gente de fome dentro do episódio do que do mal em si.

Fácil é perceber que um quadro assim, se persistir, transportará o mundo de volta às cavernas, muito mais que as duas guerras mundiais, a quebra da bolsa de valores de New York em 1.929, a gripe espanhola de há um século ou as últimas pandemias como a da SARS (Severe Acute Respiratory Syndrom), de  2.002/3,  e a da chamada gripe suína – outro verdadeiro serviço de porco  engendrado pelo ser humano e ocorrido em 2.009.

Mesmo dando a forte impressão de terem sido fabricadas pelo homem e como sempre por motivos exclusivamente econômicos, o fato é que a praga do dia, o coronavírus, já assumiu proporção mundial e o seu combate demanda um rigor inusitado, o que, repita-se, vem efetivamente acontecendo. 

Com efeito e como único exemplo, antever  a Itália inteira de quarentena, com tudo fechado e deserto, é algo excessivo até para a imaginação mais delirante e a fantasia mais mórbida -  mas está acontecendo.

Seja qual for sua maldita origem o fato está posto, e a calamidade planetária aí está presente. Como o direito foi inventado para assistir e auxiliar o homem, a começar  para impedir que um devore o outro em praça pública, então, ainda que pela rama,  vejamos a quantas anda o aparelhamento jurídico de nosso país diante do quadro unicamente tenebroso. 

III – Na jurisprudência  brasileira de contas e dentro da lei de licitações a hipótese de dispensa de licitação por emergência é uma das mais arriscadas, por motivos como os seguintes:

- subjetividade conceitual:  o que para uma autoridade configura emergência para outra não configura, e para os Tribunais de Contas em geral menos ainda. São eles bastante parcimoniosos para reconhecer urgências ou emergências, em face do freqüente abuso dessa categorização pelas autoridades contratantes, que como toda autoridade pública odeiam licitações ([2]).

Entretanto, o risco que a autoridade executiva corre ao contratar obras, serviços e compras diretamente, sem licitação, com base no art. 24, inc. IV, da lei de licitações, é grande, ou muito considerável, na medida em que  lida com conceitos indeterminados, com categorias jurídicas muito amplas e com isso vagas e pouco precisas, com pessoais e subjetivas avaliações

A emergência pode ser declarada em decreto do Executivo, como pode não o ser. Diferentemente da calamidade que sempre precisa ser decretada para que juridicamente se configure, a situação de urgência mencionada no inc. IV do art. 24, palavra essa tida como sinônima de emergência,  para juridicamente configurar-se depende apenas de uma convincente demonstração pelo contratante.

Todos os meios lícitos, usuais para a espécie ou pouco comuns, podem ser utilizados para ressaltar fatos reais que podem ter passado desapercebidos da população, dos fornecedores  - importantíssimo - das autoridades de fiscalização.

IV – Deficiente justificativa.

A preguiça é havida como o mais grave dos pecados mortais, porque um preguiçoso afeta o mundo e não apenas a si próprio. Por preguiça se assalta, se rouba, se trafica droga, se mata e se esfola - desde que não seja para trabalhar !    E lamentavelmente não somos um povo dos mais operosos, a ponto de se indicar com frequência que um operário norteamericano produz em média quatro vezes mais que um brasileiro.

A preguiça assola o serviço público de maneira avassaladora. Evidentemente existem, e em grande quantidade, magníficos e exemplares servidores públicos, daqueles que, mourejando como burros de carga em meio à indolência generalizada, empurram o piano, e levam a repartição nas costas como  sói ouvir dizer.

Ocorre que, naquele ambiente tão multifário das repartições, muitas vezes o encargo de justificar a situação de urgência ou de emergência incumbe não ao empurrador de piano, mas àquele barnabé que deseja que o mundo acabe numa ladeira para morrer encostado, e que, entre mil licenças e sabáticos,  só enxerga a hora e se aposentar. Um daqueles que se um dia cruzar com o inventor do trabalho o estraçalhará com as próprias mãos.

E, com isso, a justificativa da (não decretada) emergência dispensadora de licitação sai capenga, manquitola, acanhada, excessivamente lacônica, e econômica a ponto de não justificar coisa alguma.

Uma justificativa emergencial deficiente, que não pormenoriza a excepcionalidade da situação, que não se empenha em demonstrar quão difícil ou inadequada seria uma licitação naquele momento e naquela circunstância, a um só tempo (I) desmoraliza a dispensabilidade e (II) atrai a atenção da fiscalização para ou sobre contratações semelhantes,

Sim,   ainda que se saiba que, no Estado de São Paulo, o Tribunal de Contas não mais fiscaliza os contratos diretos por amostragem como no passado, mas por varredura, ou sejam todos. É que em razão do objeto, do valor e das reiterações comuns em contratos emergenciais,  alguns deles resultam  bastante mais atraentes para o fiscal que outros ([3]).

A lei de licitações no art. 26, parágrafo único,  oferece importantes achegas ao “justificador” da emergência, eis que reza:

Parágrafo único.  O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:

I -  caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, quando for o caso;                      

II - razão da escolha do fornecedor ou executante;

III - justificativa do preço.

Não se concebe, portanto e desde logo, uma justificativa da contratação emergencial que não se debruce dedicadamente ao menos sobre esses itens, como através de

a) anexação de fotos, mapas, reportagens, matérias do noticiário – quando não mesmo filmes com áudio -, depoimentos, relatórios e documentação sobre a emergência que se pretende demonstrar;

b) motivo da escolha do fornecedor, com juntada de currículo ou acervo, inclusive, se houver,  de realizações para o ente ora contratante; publicidade do fornecedor e descrições do produto; pareceres ou laudos atestando a conveniência daquele produto para o caso concreto se for possível;

c) prova da adequação do preço sugerido com base no mercado, através de reportagem de preços constantes de revistas e publicações especializadas se houver e se forem acessíveis;  orçamentos de fornecedores – que se disponham a fornecê-los, algo  cada vez mais difícil por compreensíveis motivos de resguardo comercial fora de licitação; cópia de preços anunciados na internet, que são possivelmente mais idôneos que os de orçamentos  particulares fornecidos a pedido.

A atenção da fiscalização, não apenas dos Tribunais de Contas mas também do Ministério Público e dos milhões de zelosos e patrióticos denunciantes quase sempre anônimos, vem nas últimas décadas se esmerando em crivar com especial dedicação, dentre todos os contratos diretos elencados nos 35 incisos do art. 24 da lei de licitações e mais os infinitos possíveis pelo seu art. 25 sobre inexigibilidade, os contratos de emergência, cuja  licitação foi dispensada com fundamento no inc. IV daquele art. 24.   

E é nesse momento que se evidencia a fundamental relevância da boa justificativa que legitima o negócio: se está presente no caso, ótimo para os envolvidos; se foi fraca, claudicante, imprecisa ou desatenta, espere-se uma conta rejeitada, quando não uma ação civil pública que aí se origine, ambas com possíveis consequências muitíssimo indesejáveis.

Tudo isso sem falar de ações populares, cujo risco acompanha a contratação tão logo efetuada.

V - Demora na contratação emergencial.

Um importante elemento a ser considerado pelo ente público que pretende contratar emergencialmente sem licitação é o prazo decorrido entre (I) o fato que gerou a emergência de atendimento e (II) a contratação nessas condições.

O Tribunal de Contas da União firmou já há tempo o entendimento de que esse prazo não pode ser superior a 30 (trinta) dias, pena de não ser considerada emergencial a situação.

Com efeito, uma alegada emergência que pode esperar mais de trinta dias para ser atendida será tudo no mundo, menos emergência. Na emergência, como na técnica de muitas polícias, primeiro se atira, depois se pergunta.

Mas por favor, isso não significa suprimir, aliviar ou abrandar os cuidados mencionados no tópico anterior para se caracterizar a emergência e se justificar a contratação. Significa apenas que o trabalho de justificar, além de ser cuidadoso e atento, precisa ser rápido. E convenhamos, trinta dias parecem mais do que razoáveis para se justificar a urgência e se contratar.

Ninguém se esqueça do pregão eletrônico.

Pessoalmente, e sobretudo devido à avançada idade, detestamos essa modalidade de licitação, por motivos já exaustivamente expostos em outros artigos.

Mas como o pior cego é sempre o que não quer ver, é igualmente preciso reconhecer que um pregão eletrônico bem anunciado e conduzido pode resolver - e em geral resolve se não houver atropelos administrativos e judiciais - as necessidades urgentes da Administração  em algo como vinte dias, ou menos.

E ninguém duvide de que os fiscais das contas públicas têm sempre esse argumento em stand by, na ponta da língua para sacá-lo com a velocidade do raio e o impacto do trovão contra incautas ou desavisadas autoridades envolvidas na contratação emergencial.

E para se concluir tenha sempre presente o gentil leitor a filosófica ponderação, extraída de bilhete de papagaio de realejo, de  que amigo não é quem enxuga lágrimas, mas quem as previne.  E outra ainda, provinda de biscoito chinês da sorte, de que quem avisa amigo é.

 

[1] Reza aquele dispositivo da LC 101/00:   Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;  II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

[2] E com essa afirmação não se está detratando a autoridade, porque a lei de licitações é tão ruim, mas tão espantosamente ruim, que apesar de obrigatória a licitação via de regra conduz ao pior negócio imaginável para o poder público. Se por exemplo uma séria e honesta autoridade corre as agências de veículos para negociar pessoalmente a compra de uma frota para ser paga à vista, deverá conseguir a mais vantajosa transação ao  alcance de alguém. Se entretanto licita aquela frota – porque precisa, porque a lei lha manda licitar -, talvez afinal provoque o riso escárnio dos licitantes, porque numa licitação eles se sentem desobrigados de reduzir os preços até onde lhes é possível em nome da venda. E a frota possivelmente sairá por muito mais dinheiro. E assim como a frota, obras, grandes serviços, grandes fornecimentos, grandes negócios de toda natureza.  Só o que se exigiria da autoridade é honestidade no propósito de servir ao seu ente e ao interesse público, e não o de enriquecer à custa do primeiro.

[3] Com efeito existem ondas de objetos malditos de contratos emergenciais. Está por exemplo na moda, ou na ordem do dia, apostrofarem-se os contratos de pavimentação asfáltica como se fora esse objeto  obra de Satanás fumegante  ou a oitava praga do Egito, dádiva do Nilo.   Já foram outras as modas, e novas ondas ainda virão.