QUARENTENA REVELA A FRAGILIDADE DO DIREITO

QUARENTENA REVELA A FRAGILIDADE DO DIREITO

 

Ivan Barbosa Rigolin

(mai/20)

 

I – Um dos efeitos da amaldiçoada praga do coronavírus que assolou o mundo em fevereiro ou março de 2.020 – e que poderá regredir  a humanidade em muito do que a duras penas conquistara, como num pesadelo de mórbida ficção – é demonstrar de modo cabal, à luz solar e com meridiana clareza, que nosso direito revela ser uma casquinha institucional, uma tênue camada de verniz sobre a barbárie e nada mais que isso.

Quando nosso cidadão imagina, após mais de um século de evolução e de fortalecimento dos princípios e das regras constitucionais e legais,  poder contar com um arcabouço jurídico que instrumentalize  as autoridades dos três poderes para enfrentar crises, solavancos e debacles naturais ou acidentais de toda ordem e que sempre acontecem, eis que uma pandemia de grande proporção, como desde 1.918 com a gripe espanhola não se via no planeta, expõe toda a fragilidade, toda a acidentalidade e todo o primitivismo de nosso sistema jurídico-institucional.

Sem dizer de outros países, nossa nação foi pega de calças curtas, absolutamente desprevenida e despreparada para lidar institucionalmente com a peste do dia – e que peste !   Não referimos o aspecto material dos estabelecimentos e do sistema de saúde brasileiro nem a rede pública de saúde, que são calamitosos há muitas décadas e envergonham o nacional como uma grande humilhação. Não é isso que aqui se questiona, mas o direito que está por trás de tudo.

Nada obstante o esforço que e se reconhece por muitas autoridades para aparelhar o sistema de saúde, entretanto não é de hoje e nem deste século XXI que nossa saúde é melancolicamente ruim, desassistida, desaparelhada, carente, em muitas regiões mambembe mesma, permanentemente jogada às traças governo após governo. Se no Estado de São Paulo é ruim o sistema, em Estados como o Amazonas, o Pará, o Ceará, o Maranhão  e o Rio de janeiro é melhor nem comentar.

Mas o tema, repita-se,  não é este, e sim o do descalabro jurídico que o país vive, senão vejamos.

II – A Constituição vem sofrendo, no mínimo, um duríssimo teste, uma prova de fogo, uma guerra campal.

O constitucional art. 5º, inc. XV, garante ao cidadão, como cláusula pétrea, o direito de ir e vir em tempo de paz, e de livremente locomover-se em território nacional. Mas a União  aprovou e promulgou, às pressas, a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2.020, que tenta legitimar o processo de cerceamento da liberdade constitucional do cidadão à livre locomoção, mesmo  em tempo de paz.  Logo à primeira mirada se revela inconstitucional, porque afronta a cláusula pétrea da Carta. Lei nenhuma revoga a Constituição.

Foi uma lei tão açodada e improvisada que em 20 de março de 2.020 foi emendada pela medida provisória (com minúsculas, enquanto essa excrescência jurídica ainda existir no país) nº 926, para esta acrescer-lhe artigos alfanuméricos sobre variados assuntos, como se a lei tivesse sido apenas um ensaio.

 Uma lei de 9 (nove) artigos precisou, 45 dias após publicada, de uma medida provisória que lhe promoveu 62 (sessenta e duas) alterações ! 

 Trata-se portanto da quintessência do non-sense e da pura esculhambação, e da mais fina extração da grossura e do primitivismo institucional, legislativo, administrativo e governamental dos últimos tempos !  É tão ruim quanto o mal que pretendeu combater !

Por exemplo, uma das alterações pela mp informa que a lei valerá enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, ou seja, a Organização Mundial de Saúde passa a deliberar sobre a validade da lei brasileira !  

Uma organização que se revela um reles braço da China – país que não divulgou os dados iniciais da sua epidemia sem merecer qualquer reação da OMS mas sob a sua cumplicidade – agora manda na legislação brasileira !   Quem, como a ONU, a OTAN e outras caríssimas inutilidades do mundo moderno  nem sequer cumpre o seu papel institucional agora determina até quando vale uma lei brasileira !

Mas atenção: tudo  isso se a medida provisória for convertida em lei, ou se a OMS, que agora manda na lei brasileira,  decretar o fim da emergência antes dos 120 dias a contar de 20 de março de 2.020, quando a mp perde validade se não for convertida. 

Se a mp não for votada e perder a validade - como tem ocorrido com grande freqüência no Congresso Nacional -,  então mais uma vez ninguém saberá o que fazer, nem mesmo dizer o que vale nem o que não vale.

III – Dentre outras medidas a lei acima referida permitiu – como se ela substituísse a lei de licitações, que já o permitia – a compra direta de bens  e de serviços sem licitação.

Ao tempo da lei escrevemos artigo alertando sobre os riscos e a impropriedade de comprar aqueles insumos a qualquer preço, como se a Administração pública fosse a festa do caqui, a casa da sogra ou a prosaica casa de Irene, da canção de Sérgio Endrigo.

Pois bem, no dia 11 de maio de 2.020 o jornal O Estado de S. Paulo publica na principal manchete que estão sendo investigadas pelo Ministério Público as compras emergenciais em 11 (onze) Estados da Federação.  E dizemos nós: são onze por ora.  As autoridades tiveram pressa extrema para as aquisições !

Noticia-se à farta que respiradores em alguns Estados foram adquiridos a 4 (quatro) vezes o seu preço. E o mesmo se diga de hospitais de campanha, de que se informa que tiveram preços agigantados sob o pretexto da emergência – tendo sido tudo isso muitas vezes pago adiantadamente e sem a competente entrega até este momento !  Ou então com entrega der respiradores defeituosos, já pagos mas que não operam adequadamente !

Trata-se de legislação que não presta, aplicada por alguns administradores que aparentemente não prestam. Os corruptos e os imprestáveis obviamente não são todos, mas, dentre as autoridades dignas desse nome,  a camada podre de abutres públicos sempre está presente, aquela dos carniceiros que se enriquece pelo crime e pela desgraça de seus conacionais.

IV – Mas ataquemos ponto importantíssimo: a competência para decretar medidas restritivas à locomoção -  se se aceita que isso seja constitucional como não nos parece.

A referida Lei nº 13.979/20, ensejadora basilar  da monumental balbúrdia jurídica,  reza:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:   (itálico nosso)

A lei federal, por arrevesada que seja, bem observou entretanto a divisão constitucional de competências administrativas por nível de governo: o governador delibera sobre assuntos de alçada estadual, e os prefeitos decidem sobre aqueles de sua alçada, a municipal.  Cada qual legisla para o seu nível, e estrutura o seu nível de administração.

Não cabe confundir, hierarquizar nem baralhar o que a Carta de 1.988 já delimitou bastante bem:

Art. 15 Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

§ São reservadas aos Estados as competências que não lhes forem vedadas por esta Constituição.

(...)

Art. 30 – Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local; (itálicos nossos)

Os Estados – e isso assim já se verificava nas Constituições anteriores – detêm a assim denominada competência residual, ou seja aquela que a Constituição não reservou nem para a União nem para os Municípios.  Essas são respectivamente privativas do poder federal e do poder municipal, e apenas o que não for privativo da União nem dos Municípios, ou, em outra palavra, o que não for reservado para União e Municípios,  apenas isso é que enseja o disciplinamento pelos Estados.

O Estado legisla portanto apenas sobre o que lhe sobra da competência legislativa da União, que é aquele vasto conjunto de matérias constantes dos arts. 21 a 23 da Carta, na forma como ali disciplinado, e o que lhe sobra da competência legislativa dos Municípios, que são os assuntos de interesse local, municipal. 

Fora dessa regra disciplinadora a  norma estadual é inválida por inconstitucional, por abusiva e por invasiva de competência de outra esfera de governo. Exatamente como um decreto municipal prevalece sobre uma lei federal, desde que a matéria seja para decreto municipal e não para lei federal.  É a simples regra da especialização - que neste caso é a vertical -, pela qual cada primata deve ater-se à circunscrição de sua rama. e apenas a ela.

V – O que se tem observado, entretanto, é que diversos governadores estaduais – extraordinariamente focados em entrar para a história – têm editado leis, restritivas de direitos de atividades e de locomoção dos cidadãos do mesmo Estado, as quais dizem abranger todas as comunidades, sic et simpliciter, sem indagar das realidades locais e, principalmente, da legislação local, acaso e porventura diversa.

O governador se tem julgado um rolo compressor que ignora a capacidade legislativa, política e administrativa  constitucionalmente reservadas aos Municípios, como se a Constituição o permitisse.

A tosca e rústica ideia de que a lei estadual predomina sobre a municipal, matéria de desavisados ou de quem finge imaginar que o direito é diferente,   baseada numa infantil imagem de hierarquia das normas jurídicas que em geral constitui uma falácia das mais pueris, tem justificado ante a população a verdadeira tirania de muitas normas estaduais por sobre outra municipais em sentido diverso.

E o relato de muitos prefeitos que vêm à imprensa é dramático, de que vêm sofrendo pressões, coerções e intimidações de toda ordem para se sujeitarem às normas estaduais, que muita vez em nada correspondem nem com a realidade nem com a necessidade de cada  Município – mas que, antes de tudo, desrespeitam a autonomia legislativa que a Constituição reservou para cada Município brasileiro.

Um só exemplo dessa tirania estadual é a decretação do chamado lock down, ou a paralisação de toda e qualquer atividade e de toda a locomoção urbana, que alguns Estados decretaram em desfavor da autonomia dos respectivos Municípios.

O lock down, que deve ter inspiração em filmes de ficção científica sobre o fim do mundo,  é algo tão patético quanto anitijurídico, constituindo-se em violência material e institucional da pior catadupa, e que a todos faz pensar como seria um daqueles ditadorezinhos estaduais se, por exercício de mórbida imaginação, fossem eleitos presidentes da república...

VI – Mas não se trata apenas de lock down o impasse, porque -  o que deve ser pior - os governadores têm enfrentado decretos presidenciais sobre a lista das atividades essenciais, que o presidente da república enuncia em decreto conforme é de sua competência. Ignoram as novas atividades declaradas essenciais e, baseados em normas estaduais, mantêm a proibição daquelas atividades nos seus Estados.  Se o presidente declara essencial uma atividade – conforme a Lei nº 13.979/20 lhe assegura nos §§ 8º e 9º do seu art. 3º - então por evidente não pode ser governador nem prefeito nenhum que proíba o  exercício livre e desimpedido daquelas atividades pelos particulares.

O ridículo vergonhoso dessa situação, com conflito de competências instaurados pelos governadores - que a um só tempo ignoram normas municipais sobre assuntos de interesse municipal e também normas federais dentro da competência federal -, ultrapassou qualquer limite de decência.

E não cabe aos governadores invocar a recente decisão do Supremo Tribunal pela qual se declarou que Estados e Municípios têm competência para regular o trânsito cada qual em seu âmbito, porque agora se trata de exercício de atividades comerciais privadas, e não de trânsito. Os governadores baralham e misturam tudo, na ânsia de fundamentarem as ditaduras estaduais que impuseram e tentam ampliar.  Jamais se ouviu falar em ditaduras estaduais no Brasil – até a pandemia do coronavírus ! 

Os governos estaduais aparentam não se dar conta da juridicamente ridícula situação que estão provocando nas instituições brasileiras, e no farrapo em que se converteu nosso direito constitucional e administrativo. Ninguém se entende.

Todos os chefes de Executivo parecem perdidos num nevoeiro  institucional, chutando em todas as direções, improvisando medidas como mágicos a tirar coelhos da cartola, desprovidos por completo de um assessoramento que preste ou, de outro modo,  desprezando pura e simplesmente qualquer assessoramento, como se o direito fosse invenção sua e lhes pertencesse.  Os prefeitos, atarantados,  lembram a prosaica figura do cachorro que despenca de caminhão durante a mudança de seus donos.

A Constituição dificilmente foi, um dia,  tão vilipendiada.  Poucas autoridades se recordam mesmo  de que ela existe, ou de para quê serve.   Acusa-se a idade média de ter sido a noite dos doze séculos. Ocorre que não foi, porém o direito brasileiro vive, este sim, um pesadelo que lembra a noite mais tenebrosa.

E o  Judiciário, a iniciar pela mais alta corte, não ficou livre da escuridão, e suas decisões não têm assegurado nem a mais remota noção de segurança jurídica ao cidadão. Que esperar então, num tão tenebroso cenário nem um pouco institucional, das decisões das instâncias judiciais inferiores, se lhes manca o indispensável respaldo superior ?

VII – Como melancólica conclusão augura-se que passe o mais rápido possível esta presente tragédia sanitária, que ensejou, ao menos em nosso país, a correspondente tragédia institucional e jurídica.

Todos os males têm entretanto alguma função educativa,  didática, evolucional.   Nesse sentido todos  os males vêm para bem.

Falando apenas do direito, sirva ao menos esta   pavorosa pandemia para elucidar os profissionais da área jurídica sobre o primitivismo de nossas instituições,  sobre a insuficiência de regras que poucos compreendem e ainda menos querem compreender ou observar, e, em suma,  sobre a insuportável fragilidade do nosso direito para atender a crises – já que é nas crises que a verdade vêm à tona.