LEI COMPLEMENTAR Nº 173/2020. BREVE ANÁLISE (1ª PARTE)

LEI COMPLEMENTAR Nº 173/2020. BREVE ANÁLISE

 
Ivan Barbosa Rigolin

(jun/20)

 

Primeira parte

I – Nesta macabra, tétrica e insólita pandemia, assim como  ao isolamento social que está, em boa parte graças à visão caolha e canhestra de nossas autoridades, destruindo cada Município e cada Estado brasileiro assim como  a própria União – e a culpa não é apenas das autoridades brasileiras porque parece que o mundo inteiro, seguindo a absolutamente péssima e desastrosa Organização Mundial da Saúde que não vale o espaço que ocupa  ou a água que utiliza, parece ter mergulhado na mais impressionante onda de estupidez e de primitivismo que historicamente já o assolou por qualquer motivo – dentre outras medidas destinadas ao  enfrentamento  da crise foi editada pela União a Lei Complementar nº 173,  de 27 de maio de 2.020.

Essa LC trouxe  disposições importantíssimas, e não   apenas enquanto durar o estado de calamidade pública decretado pelo Congresso Nacional – Decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2.020 – para os entes federados, dos quais aqui interessa focar os Municípios.  Alguns efeitos desta LC se farão sentir por longo tempo após o fim da calamitosa decretação de calamidade pública.

Seleciona-se assim o seguinte longo excerto da LC 173/20, relacionado sobretudo a alterações da Lei de Responsabilidade Fiscal (a LC nº 101/2000):

Art. 7º A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 21.  É nulo de pleno direito:

I - o ato que provoque aumento da despesa com pessoal e não atenda:

inciso XIII do caput do art. 37 e no § 1º do art. 169 da Constituição Federalb) ao limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal inativo;

II - o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20;

III - o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20;

IV - a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefe do Poder Executivo, por Presidente e demais membros da Mesa ou órgão decisório equivalente do Poder Legislativo, por Presidente de Tribunal do Poder Judiciário e pelo Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, ou a edição de ato, por esses agentes, para nomeação de aprovados em concurso público, quando:

b) resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo.

§ 2º Para fins do disposto neste artigo, serão considerados atos de nomeação ou de provimento de cargo público aqueles referidos no § 1º do art. 169 da Constituição Federal

"Art         65.  (...)

§ caputa) contratação e aditamento de operações de crédito;

c) contratação entre entes da Federação; e

2º O disposto no § 1º deste artigo, observados os termos estabelecidos no decreto legislativo que reconhecer o estado de calamidade pública:

I - aplicar-se-á exclusivamente:

b) aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento de despesas relacionadas ao cumprimento do decreto legislativo;

II - não afasta as disposições relativas a transparência, controle e fiscalização.

§ 

Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:

I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública;

II - criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

III - alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV - admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do  caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares;

V - realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV;

VI - criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade;

VII - criar despesa obrigatória de caráter continuado, ressalvado o disposto nos §§ 1º e 2º;

VIII - adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º da Constituição Federal;

IX - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.

§ caput 2º O disposto no inciso VII do não se aplica em caso de prévia compensação mediante aumento de receita ou redução de despesa, observado que:

I - em se tratando de despesa obrigatória de caráter continuado, assim compreendida aquela que fixe para o ente a obrigação legal de sua execução por período superior a 2 (dois) exercícios, as medidas de compensação deverão ser permanentes; e

II - não implementada a prévia compensação, a lei ou o ato será ineficaz enquanto não regularizado o vício, sem prejuízo de eventual ação direta de inconstitucionalidade.

§ 4º O disposto neste artigo não se aplica ao direito de opção assegurado na Lei nº 13.681, de 18 de junho de 2018,5º  O disposto no inciso VI do deste artigo não se aplica aos profissionais de saúde e de assistência social, desde que relacionado a medidas de combate à calamidade pública referida no caput cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

§ 1º (VETADO).

§ 2º A suspensão de que trata este artigo se estende ao recolhimento das contribuições previdenciárias patronais dos Municípios devidas aos respectivos regimes próprios, desde que autorizada por lei municipal específica.

Art. 10. Ficam suspensos os prazos de validade dos concursos públicos já homologados na data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, em todo o território nacional, até o término da vigência do estado de calamidade pública estabelecido pela União.

§ 2º Os prazos suspensos voltam a correr a partir do término do período de calamidade pública.

§ 3º A suspensão dos prazos deverá ser publicada pelos organizadores dos concursos nos veículos oficiais previstos no edital do concurso público.

Art. 11.  Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação.

Comentemos brevemente estes dispositivos.

II – A LC 173/20 deu nova redação ao art. 21 da Lei de Responsabilidade Fiscal, a LC nº 101, de 2.000, ampliando-o como é de praxe em nossa legislação.

A novidade se inicia no inc. III da al. b do novo art. 21da LRF, sendo a matéria anterior mero rearranjo da redação anterior deste art. 21 da LRF.

Pelo inc. III é nulo de direito o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20.  Tal significa que não são nulos apenas ao atos onerosos com pessoal  praticados pelo chefe de Poder nos 180 últimos dias de seu mandato, mas também são nulos os atos que venha a praticar a qualquer tempo, mesmo antes daqueles 180 dias finais, e que estabeleçam parcelas a pagar após o fim do seu mandato.

Vale dizer: é proibido ao chefe do Poder fazer cortesia com o chapéu alheio, dando algo que o seu sucessor irá pagar – e neste  caso a lei não se preocupou em saber se o generoso mandatário será reeleito, e ele mesmo os pagará no mandato seguinte.

Não mais se permite portanto que uma lei publicada dentro dos últimos 180 dias acarrete despesa com pessoal mesmo depois do fim do mandato; a proibição se estendeu com relação à redação anterior da LRF, mais ou menos com o seguinte sentido: autoridade, esqueça a concessão de vantagens financeiras ao pessoal dentro dos últimos 180 dias, para ter efeito ou dentro ou além desse período.

Tudo se tornou proibido, porém desde já se alerta para o pouco claro inc. II do § 1º deste art. 21, comentado adiante.

Ainda neste art. 21, o disposto no inc. IV, als. a e b, são mera repetição do inc. III, e tão úteis quanto uma gripe ou um aquecedor no verão da Suazilândia.

O seguinte § 1º tem dois incisos, sendo o inc. I igualmente rebarbativo e inútil, pois que seu dispositivo já estava implícito no inc. III, sobre reeleição e recondução do titular do Poder ou da entidade.

O inc. II do § 1º, entretanto, é de morder a nuca. Neste claro ambiente de contenção de despesas com pessoal e no qual quase tudo parece ser proibido, este dispositivo informa que a restrição constante dos incs. II, III e IV se aplicam apenas aos titulares de cargos efetivos das entidades a que se destina a lei.

Ora, então toda a restrição de aumentar a despesa com pessoal nos últimos 180 dias do mandato cai por terra se se tratar de celetistas ?  Só vale para efetivos ?   E o Município que somente tenha celetistas, porque escolheu a CLT como regime jurídico único e não tem nenhum servidor estatutário efetivo, então para esse Município não vale a regra restritiva a novas despesas com pessoal, da LRF, art. 21, a qual  já conta vinte anos e já está inteiramente incorporada à cultura jurídica brasileira ?  É isso ?  A LC 173 terá querido isso ?

Recusamo-nos a crer nisso aí escrito, e recomendamos enfaticamente ao aplicador ignorar o disposto no inc. II do § 1º do novo art. 21 da LRF, redação dada por esta LC 173/20.  Aparentemente recorda um serviço de insano, que não tinha a menor idéia do que fazia e fez. 

Recomendamos enfaticamente ignorar a disposição enquanto infelizmente existir, porque simplesmente não tem pé nem cabeça. Quando algum Tribunal de Contas apontar como ilegal essa nova despesa com celetistas, ou então quando o Ministério Público contra o ato ingressar com alguma ação civil pública, por certo não será a União que correrá em socorro da autoridade local...   O dispositivo lembra também uma eventual ordem legal de que o Prefeito pule da janela do seu gabinete, no 10º andar do paço. Faz tanto sentido quanto.

Encerra o novo art. 21 da LRF o seu § 2º, que também repete o que já fora repetido, dando a impressão de que a lei se destina a crianças do ensino fundamental, que necessitam diversas repetições de qualquer matéria para que aprendam. Não foi ainda desta vez que o legislador brasileiro evoluiu da sua tradicionalmente péssima técnica de escrever a mais não poder, em verdadeiro furor legislativo que atrapalha horrivelmente a compreensão e a executoriedade da lei.

III – No novo art. 65 da LRF, dado por esta LC 173/20, foi substituído o antigo parágrafo único por três parágrafos, bastante importantes no contexto atual do país e que já ensejaram confusão suficiente ([1]).

O § 1º, inc. I,  prescreve que durante a atual calamidade pública simplesmente serão dispensados os limites, condições e demais restrições aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como sua verificação, para: a) contratação e aditamento de operações de crédito; b) concessão de garantias; c) contratação entre entes da Federação; e d) recebimento de transferências voluntárias.

Até este ponto se observa que todos os entes federados estão livres dos limites, das restrições e até mesmo das condições   (??)  no caso de pretenderem (I) contratar ou aditar operações de crédito, ou de (II) conceder garantias com o patrimônio público, ou de (III) contratar com outro ente federado, ou por fim de (IV) receber transferências públicas voluntárias.

Alguém neste mundo está dispensado de atender as condições que existem para alguma concessão  ?  Concede-se, dá-se, empresta-se, outorga-se por acaso sem condições ?  Alguém já viu algo semelhante, que lembra a rendição incondicional do Japão na guerra após sofrer dois ataques atômicos ?

Quando se conhecem as restrições que o princípio da  indisponibilidade dos interesses públicos impõe aos gestores públicos, então a alguém parece minimamente lógico este arrombamento das categorias jurídicas ?   Seria acaso  a festa do caqui ?

E quanto ao próprio princípio da legalidade, será que esta farra do boi resiste a uma análise mais detida ?..   O legislador teria perdido todo o seu senso crítico ? 

Outra vez recomendamos extrema cautela ao administrador público ante este aparente desmando da lei, neste estado de pandemia no qual o cérebro do legislador parece estar pior do que o de sempre. 

Não se olvide o Prefeito, o Presidente da Câmara, o presidente da estatal ou da autarquia, que tudo de institucional e de juridicamente regular lhe será cobrado após dissipada esta medonha situação de doença, e quando esse torpor mental não mais puder ser alegado em defesa de insânias e de delírios da própria lei.

Lembre-se de que o mundo não é isto que atualmente vem acontecendo, e que as coisas, oxalá o mais breve possível, voltarão ao seu patamar de sanidade no qual hoje não estão situadas. A pandemia foi realmente demasiada para o administrador e para o legislador brasileiros. Obstruiu-lhes a capacidade de pensar.

IV – O inc. II do § 1º do novo art. 65 da LRF informa que serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública ([2]).  

Trate portanto o administrador que pretender valer-se desta liberalidade – ou o que já se estiver dela valendo – de ter presentes todos os elementos de demonstração de que os recursos envolvidos se voltam ao combate à pandemia de coronavírus, ou terá inelutavelmente rejeitadas as respectivas contas.

O grande condicionante da licitude destes gastos agora muito simplificados é a demonstração de que se destinam ao enfrentamento da pandemia, e desse obstinado foco não se pode afastar em hipótese nenhuma o administrador. Antes de gastar tenha presente a comprovação de que a despesa se verte a combater a nova praga; conseguindo-o, então efetue a despesa, mas jamais antes de evidenciar o seu propósito e a sua matiz antipandêmica ([3]).

E o inc. III do § 1º do mesmo art. 65 prescreve que durante a calamidade serão afastadas as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública  ([4]).

Outra vez se revela mais importante demonstrar que a despesa se destina a combater a excrescente pandemia do que comprovar o seu positivo mérito.

E outra vez se recomenda à autoridade máxima cautela, modicidade e ponderação ao se valer destas excepcionais concessões dadas pela lei da pandemia; não se olvide de que a pandemia passa, e as instituições jurídicas, e os princípios constitucionais de administração, e a austeridade da despesa pública, todos ficam, e que o dia seguinte, o do fim da festa  e o dia em que as cabeças voltam a pensar, em geral não é tão alegre e divertido.

V – O § 2º deste art. 65 fixa que todo o § 1º se aplica apenas aos entes federados – e aqui o foco são os Estados – (I, a) localizados no âmbito do territorial objeto do decreto legislativo  reconhecedor da calamidade pública,  e (I, b) às despesas relativas ao combate da insidiosa e pestilencial praga. Não seria diferente, porque não se fala em outra coisa no decreto, e nada além da referida peste é matéria do diploma. Cuidado, outra vez, a autoridade, para bem justificar e enquadrar a despesa.

O inc. II deste § 1º, demagogia deslavada, tenta preservar o princípio da transparência, como se isso fosse necessário, e como se os entes de fiscalização e de controle já não o exigissem.

Encerra o artigo o § 3º, que consigna a segurança dada pela União de manter as garantias federais já existentes às operações atuais de aditamento dos respectivos contratos de crédito.

Assim, mesmo que aditados os contratos pelo ente público e a entidade financiadora as garantias federais anteriores permanecem  válidas, apenas não tendo esclarecido o dispositivo se no mesmo valor ou se proporcionalmente aos aditamentos serão maiores, se acaso forem em valores monetários.

Com isso, à falta de expressa previsão de qualquer proporcionalidade,  ninguém está autorizado a imaginar algo assim. A União conta, com absoluta certeza, com manter as garantias nos mesmos termos estabelecidos na origem.

(conclui na segunda parte)

                                                                               

[1] Talvez até o mandato do Governador do Estado do Rio de Janeiro em breve.

[2] Os arts. 35 e 37 cuidam de operações de crédito, e o art. 42 proíbe aos  titulares de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito. 

[3]  Mais ou menos como o que se passa com os advogados ao receber novo cliente. A primeira pergunta é sobre o prazo; em sendo suficiente, então a segunda pergunta: - qual é o caso ?

[4] Os arts. 14 a 16 da LRF se referem a renúncia de receita e à licitude de algumas despesas.