HIPOCRISIA DERROTADA: A LEI Nº 14.230/21

HIPOCRISIA   DERROTADA:   A   LEI   Nº 14.230/21

 

Ivan Barbosa Rigolin

(dez/21)

 

 

I – Nestes tempos mais do que bicudos em quase todos os assuntos humanos, e nos quais a asquerosa pandemia viral contribuiu decisivamente para o grassamento de um pessimismo poucas vezes igualado na história recente; nesta época, verdadeiro fim de ciclo  em que as instituições em todo mundo passam por crise também de dimensão quase inédita após a segunda grande guerra, e em cujo ambiente o direito brasileiro se convulsiona como se em  estertores sem volta, nesse quadro unicamente nauseabundo ao menos uma novidade alvissareira espocou no nosso combalido horizonte jurídico: a Lei nacional nº 14.230, de 25 de outubro de 2.021.

Fruto e resultado de uma árdua e demorada negociação parlamentar na qual por evidente não faltaram pressões, intimidações, ameaças e estrebuchamentos dos mais variados segmentos sociais, pela imprensa leiga e desinformada como sempre e pelas mais diversas entidades públicas e particulares com seu moralismo de circo, foi enfim aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente da República para o fim de modificar, em espantosa amplidão, a Lei nº 8.429, de  2 de junho de 1.992, a lei que dispõe sobre improbidade administrativa.

Fazia uma falta extraordinária, e nessa medida foi extremamente bem-vinda pelos profissionais honestos de propósito e intelectualmente idôneos, e pelos homens sensatos e ponderados graças aos quais o mundo evolui para a frente e não se arrasta para trás – como diversas facções da sociedade desejam.

 

II – O fulcro da nova lei, e todo o seu escopo, foi extirpar da lei da improbidade as infames previsões que constavam, uma,  do seu art. 10, pelo qual constituía ato de improbidade qualquer ação dolosa ou culposa de que resulte prejuízo ao erário, e, outra,  a generalizante previsão do art. 11, de que qualquer ação ou omissão também poderia caracterizar improbidade contra os princípios de administração.

O art. 10 portanto admitia uma ‘improbidade culposa’, sendo que culpa é, na clássica categorização do direito penal,  a característica do ato praticado com negligência, imprudência ou imperícia, nada além disso. E o art. 11, na sua leviana e irresponsável generalização ‘qualquer ação’, também fazia incluir os atos culposos na potencial categoria de ímprobos.

Não se sabe até onde, naquela lei,  ia a simples  ignorância vernacular, ou o desprezo pelo idioma, ou mesmo o puro cinismo para com a língua portuguesa, até este ponto de imaginar uma improbidade por imprudência, por negligência ou por imperícia.

Se o legislador não sabia em 1.992, deve ter agora aprendido que improbidade significa, apenas e tão somente,  desonestidade, inidoneidade, intenção fraudulenta, má-fé, mau propósito, malandragem, golpismo, indecoro, torpeza, burla, ou a atitude ou o comportamento  da mesma natureza sabidamente ilícita.  Uma consulta aos dicionários não faz mal nem nada custa a ninguém que tenha receio do ridículo ou que preze a sua  seriedade pessoal.

Assim, ninguém pode ser velhaco por imperícia, nem inidôneo por negligência, nem desonesto por imprudência, nessas ou em quaisquer outras combinações dessas palavras.

Ninguém é inidôneo se não quiser sê-lo, nem será estelionatário por imprudência, nem vendedor de lotes no Vale do Anhangabaú  ou no Ibirapuera por imperícia.

Ninguém é bandido por negligência, nem estuprador por imperícia, nem traficante de drogas por imprudência. Só o é porque quer ser, e porque atua nesse sentido, com absoluta ciência do caráter delitivo do que faz.

E, também junto aos erários públicos, ninguém pratica ato doloso se não o quiser fazê-lo. Não existe delinquente público por acaso, nem por azar, nem por imperícia ou por negligência. Os vigaristas contra o erário apenas o são porque querem, não por serem imperitos em algum mister, ou negligentes.

 

III - Culpa é atitude que carrega irregularidade muito mais leve que dolo – que vem a ser a intenção de praticar o ato  ou a inescusável responsabilidade por praticá-lo. O agente acaso pode ser (até mesmo culposamente) desavisado,  porém,  se não atuar com dolo, então ímprobo não será jamais.

dolo específico  contamina a ação de quem, por exemplo, atira em alguém para matá-lo, enquanto que o dolo genérico é o  de, seguindo no exemplo, alguém sair desferindo tiros numa rua cheia, não visando ninguém em específico porém não podendo alegar ignorância dos possíveis e quase certos efeitos de sua atitude.

Essas são as duas grandes categorias de dolo, porém qualquer dolo jamais pode ser confundido nem similarizado com culpa.  Quem baralha essas categorias ...  desse vamos fugir às pressas !

 

IV – A Lei nº 14.230/21 alterou apenas os seguintes dispositivos da Lei nº 8.429/92 – quase três décadas após a sua promulgação:

- ementa  (por Júpiter Capitolino !   Até mesmo a ementa precisou ser alterada !..);

- art. 1º, parágrafo único;

- art. 2º,

- art. 3º,  § 3º;

- art. 7º;

- art. 8º;

- art. 8º-A (criado);

- art. 9º;

- art. 10;

- art. 11;

- art. 12;

- art. 13;

- art. 16;

- art. 17;

- art. 17 - B  (criado);

- art. 17 - C  (criado);

- art. 17 - D (criado);

- art. 18;

- art. 18-A (criado);

- art. 22;

- art. 23;

- art. 23 - A (criado);

- art. 23 - B (criado), e

- art. 23 - C (criado).

 

E a Lei nº 14.230/21 revogou os seguintes dispositivos da Lei nº 8.429/92:

- parágrafo único do art. 1º;

- arts. 4º a 6º;

- Seção II – A  do Capítulo II;

- parágrafo único do art. 7º;

- inc. XXI do caput do art. 10;

- incs. I, II, IX e X do caput  do art. 11;

- inc. IV do  caput, e parágrafo único do art. 12;

- §§ 1º a 4º do art. 13;

- § 1º do art. 16;

- §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 8º, 9º, 10, 12 e 13  do art. 17, e

- incs. I a III do art. 23.

 

Observa-se assim que a chamada lei de improbidade (LI) passou a ser completamente outra após a edição da Lei nº 14.230/21. Quem a conhecia antes não a reconhece depois, e precisará reestudá-la do começo, revendo por completo as suas estatuições e as suas diretrizes institucionais.

A mentira durou três décadas menos um ano, mas foi desmascarada.

 

V – Como se disse e se sabe não caiu do céu esta nova lei, nem foi fruto do acaso ou de algum câmbio  de humor dos deuses.

O teor insuportável da hipocrisia constante dos originários arts. 10 e 11 da LI, moralismo de fariseus e de estelionatários jurídicos, não desceu pela garganta dos doutrinadores desde a origem da lei.

Até onde a vista alcança o primeiro jurista a se rebelar contra aquela infâmia da ‘improbidade culposa’ foi Marcelo Figueiredo, com estas palavras:

De fato, ao deitarmos alguma reflexão sobre o dispositivo comentado, algumas apreensões nos vêem à mente. A primeira relativa à elasticidade  do conceito legal de ato de improbidade administrativa. É certo que a Consttituição (art. 37, § 4º) determina que os atos de improbidade administraiva importarão a suspensão dos direitos políticos, a indisponivilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei. Contudo, a lei integradora da vontade constitucoinal foi além do razoável ao dispor que ‘constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa ou culposa...’  Ao que parece o legislador infraconstitucional levou longe demais o permissivo da Lei Maior, ausentes proporcionalidade e e razoabilidade no dispositivo legal. (Destaques originais, da obra Probidade administrativa – Comentários à Lei 8.429/92,  ed. Malheiros, SP, 1.995, pp. 49/50).  

E adiante, na mesma obra, assevera o autor:

Novamente não podemos imaginar como razoável ou  proporcional um dado servidor público punido com as severas cominações do art. 12, III, por ter, de modo culposo, violado seu dever de imparcialidade ou mesmo de legalidade. (p. 60).

 

VI - Essas lúcidas manifestações iniciais, que com o passar dos anos foram ganhando volume  definitivo e irreversível na doutrina, e ecoando cada vez mais na consciência jurídica nacional, também acabaram sendo decisivas para a formação e na consolidação da jurisprudência brasileira de todo nível, a iniciar pela do Supremo Tribunal Federal e que se  espraiou pela do Superior Tribunal de Justiça e pela  dos Tribunais de Justiça estaduais e a dos órgãos judiciários de  primeira instância.

A marcha da restauração do tremendo e terrível estrago que o abantesma da  ‘improbidade culposa’ provocou no Brasil era a essa altura irreversível.  Não se pode – nem a lei pode – mentir a todos por todo o tempo, e em dado momento a máscara cai.

Um só acórdão-símbolo da vocação jurisprudencial que entre nós,  mesmo antes da Lei nª 14.230/21,  passou a dominar o cenário nos últimos anos é o seguinte, do Superior Tribunal de Justiça, e bastará para ilustrar o que a seguir  se consolidou.

STJ, Recurso Especial nº 1.038.777/SP, com relatoria do Ministro Luiz Fux, por votação unânime, julgado em 03/02/2011, atuando Gina Copola como advogada:

 EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE DMINISTRATIVA. ART. 10, CAPUT, DA LEI 8.429/92. CONTRATAÇÃO. ESPECIALIZAÇÃO NOTÓRIA. AUSÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO E DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DOS DEMANDADOS. MÁ-FÉ. ELEMENTO SUBJETIVO. ESSENCIAL À CARACTERIZAÇÃO DA IMPROBIDADE  ADMINISTRATIVA.


1. O caráter sancionador da Lei 8.429/92 é aplicável aos agentes públicos que, por ação ou omissão, violem os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições e notadamente: (a) importem em enriquecimento ilícito (art. 9º); (b) causem prejuízo ao erário público (art. 10); (c) atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11) compreendida nesse tópico a lesão à moralidade administrativa. 

2. A má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-intenção do administrador.

3. A improbidade administrativa está associada à noção de desonestidade, de má-fé do agente público, do que decorre a conclusão de que somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a sua configuração por ato culposo (artigo 10, da Lei 8.429/92).

4. O elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa, sendo certo, ainda, que a tipificação da lesão ao patrimônio público (art. 10, caput, da Lei 8429/92) exige a prova de sua ocorrência, mercê da impossibilidade de condenação ao ressarcimento ao erário de dano hipotético ou presumido. Precedentes do STJ: REsp 805.080/SP, PRIMEIRA TURMA, DJe 06/08/2009; REsp 939142/RJ, PRIMEIRA TURMA, DJe 10/04/2008; Resp 678.115/RS, PRIMEIRA TURMA, DJ 29/11/2007; REsp 285.305/DF, PRIMEIRATURMA; DJ 13/12/2007; e REsp 714.935/PR, SEGUNDA TURMA, DJ 08/05/2006.

5. A justificativa da especialização notória, in casu, é matéria fática. deveras, ainda assim,resultou ausente no decisum a afirmação do elemento subjetivo.

6. É que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, examinado as condutas supostamente imputadas aso demandados, concluiu objetivamente pela prática de ato de improbidadeadministrativa (art. 10, inciso VIII, da Lei 8.429/93), ensejador do dever de ressarcimento ao erário, mantendo incólume a condenação imposta pelo Juízo Singular, consoante se colhe do excerto do voto condutor do acórdão recorrido.

"A r. sentença de fls. 934/952 deu pela procedência de ação civil pública, que condenou ambos os apelantes pela prática de ato de improbidade administrativa, consistente em contratação sem prévia licitação de empresa de consultoria financeira e orçamentária Fausto e S/ Associados por parte da Prefeitura Municipal de Campos do Jordão, através de seu Prefeito João Paulo Ismael, ao argumento de que se tratava de prestadora de serviços notoriamente especializada, o que dispensaria a realização do procedimento correspondente, de acordo com o artigo 25 inciso III da Lei n° 8.666/93, combinando com o artigo 13 inciso I do mesmo texto legal.

Houve condenação do Prefeito à perda de função pública, caso estivesse exercendo-a ao tempo do trânsito em julgado, suspensão de seus direitos políticos por cinco anos, além de restar obrigado ao recolhimento de multa civil igual a duas vezes o valor do dano estimado, reversível ao Fundo de Reparação de Direitos Difusos Lesados, além de ficar proibido de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios crediticios ou fiscais, direta ou indiretamente, ainda que por interposta pessoa jurídica da qual fosse sócio majoritário pelo tempo de cinco anos.

Quanto à empresa Fausto e S/ Associados Ltda., representada por Fausto ítalo Minciotti, impôs-se-lhe o pagamento de multa civil igual a duas vezes o valor do dano, proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou crediticios, direta ou indiretamente através de pessoa jurídica da qual fosse sócia majoritária, pelo prazo de cinco anos, afora a sucumbência imposta a ambos os apelantes, unicamente quanto ao valor das custas processuais. 

7. In casu, a ausência de má-fé dos demandados (elemento subjetivo) coadjuvada pela inexistência de dano ao patrimônio público, uma vez que o pagamento da quantia de R$ 49.820,08 (quarenta e nove mil, oitocentos e vinte reais, oito centavos) se deu à luz da efetiva prestação dos serviços pela empresa contratada (fl. 947), revelando error in judicando a análise do ilícito apenas sob o ângulo objetivo.

8. Dessarte, a natureza dos serviços exigidos, máxime em pequenos municípios, indicam, no plano da presunção juris tantum que a especialização seria notória, não obstante o julgamento realizado sem a realização das provas requeridas pela parte demandada.

9. As sanções da improbidade administrativa reclamam a exegese das regras insertas no art. 11 da Lei 8.429/92, considerada a gravidade das sanções e restrições impostas ao agente público, e sua aplicação deve se realizada com ponderação, máxime porque uma interpretação ampliativa poderá acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares.

10. Recurso Especial provido.

Nenhum comentário parece necessário.

 

VII - Tão importante resultou o advento da Lei nº 14.230/21 no processamento de ações civis públicas que muitos magistrados desde logo, espontanemente e sem provocação da parte,  passaram a despachar consultando os autores daquelas  ações sobre se diante da nova lei mantêm o interesse nas mesmas ações, sabendo-se que postulavam condenações por ‘improbidade culposa’.

Com a nova lei os últimos  vapores  de dubiedade sobre a realidade de que não existe improbidade sem dolo se dissiparam de modo oficial e definitivo no ordenamento jurídico. Como o fogo de santelmo dos cemitérios evolaram-se para sempre na substância cósmica, com a esperança de que sirvam de exemplo do que a todo custo o direito deve  evitar  no futuro.

Ninguém precisa, com todo efeito, dentre tantos problemas reais que enfrenta no a dia-a-dia e na vida, de fantasmagorias nem de assombrações institucionais, que, se vão bem na literatura, no direito são simplesmente ruinosos.

A hipocrisia institucional da ‘improbidade culposa’ – que era um triângulo quadrado, uma bola pontuda ou uma faca sem lâmina e sem cabo - sofreu um duro revés, e para gáudio dos  homens sérios teve fim essa farsa.