USO DE BEM PÚBLICO – CONCESSÃO, PERMISSÃO E AUTORIZAÇÃO - NA LEI Nº 14.133/21

USO DE BEM PÚBLICO – CONCESSÃO, PERMISSÃO E AUTORIZAÇÃO - NA LEI Nº 14.133/21

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jun/22)

 

 

Escopo

I – Dentro do direito administrativo quando se mencionam os institutos da  concessão, da  permissão e da autorização imediatamente vem à mente serviços públicos, ou de utilidade pública, sejam a concessão, a permissão e a autorização de serviços.

Não é sem razão, porque esses trespasses da execução de serviço público a particulares são muito mais frequentes que as modalidades de trespasse objeto deste rápido artigo, que não se referem a qualquer prestação de serviços mas ao simples  uso de bens público, algo muito menos complexo que aquilo.

E a nota a lamentar é que  na pressa irrefletida de produzir seu trabalho algumas autoridades por vezes aplicam aos trespasses de uso as regras fixadas para os trespasses de serviço, deixando aos envolvidos a dúvida sobre se aqueles autores sequer sabem que existem os trespasses de uso...

Fique bem esclarecido desde lgo, assim sendo, que não é a prestação de serviço público que ora se focaliza, mas a mera transferência, ou adequação, ou condicionamento,  ou a provisória ‘titularidade’ do uso de bens públicos, que se desloca do poder público indiferenciadamente para a utilização, a cura e a responsabilidade do particular.

 

Modalidades ou espécies

II – São três as tradicionais e clássicas espécies de trespasse do uso de bens públicos para particulares: concessão de uso, permissão de uso e autorização de uso.

Diferentemente dos trespasses de serviço público – que pela sua relevância, complexidade e abrangência do interesse público envolvido, que em geral não é apenas local mas por vezes até mesmo do tamanho do país – as normas de regência dos trespasses de uso de bens públicos são por excelência locais.

Se uma concessão de serviço de transporte aéreo geralmente atinge, engloba e interessa a todo o país e até mesmo a outros países conforme o caso, entretanto uma concessão de uso de um parque  municipal interessa basicamente apenas ao Município onde se dá o trespasse.

Se uma concessão de obra, uma estrada interestadual por exemplo – que envolve construção de obras e prestação de serviços como os de manutenção, sinalização, ampliação -  interessa aos Estados abrangidos e até mesmo aos demais Estados cujos habitantes utilizam a estrada, entretanto a concessão de uso de uma pequena via municipal para os agricultores municipais é de interesse quase que exclusivamente local, desse mesmo Município.

Outro exemplo: uma concessão de serviço de energia elérica envolve interessados situados em diversos Municípios, enquanto que uma concessão de uso de um cemitério municipal se prende ao interesse fundamentalmente local, do Município que o instituiu e da sua população, e pouco mais que isso.

Considera-se por tais motivos que a legislação de regência dos trespasses de serviço podem ser (e devem, e são) de âmbito nacional, ou por vezes, ou  suplementarmente, estadual, enquanto aque as regras dos trespases de uso, por interessarem apenas ao ente local que os outorga, podem ser (e devem ser, e são) locais.

Como regra geral não se concebe um interesse que seja apenas local regido por lei nacional, tanto quanto  não tem sentido o inverso, como numa eventual comcessão do serviço de energia elétrica,  para dois Estados, regido pela legislação local de cada um dos Municípios servidos – algo que juridicamente seria uma piada.

 

Licitações não para compra – a lei derve ser outra

III – Em matéria que não seja de aquisição pelo ente público de obras, serviços ou materiais – pois que esse é o campo por excelência das leis de licitação -, desconfie-se muito seriamente de leis nacionais de licitação, como a Lei nº 8.666/93 e a nova Lei nº 14.133/21.

Essas leis se dizem de normas gerais de licitação e de contratação, e quanto a objetos que o ente público queira adquirir exercem, de fato e com todo efeito, o seu papel normativo, regrador e de fundamento jurídico substantivo.

Ninguém a esta altura da história do direito contersta o pepel constitucional da lei nacional de licitações e conrtatos administrativos.

Ninguém discute o  papel constitucional da União para ditar as normas gerais de licitação e de contrato, até porque isto é previsto na Constituição, art.22, inc.  XXVII. Questiona-se sempre, isso sim, a abrangência integral do texto das leis como normas gerais, o que fazem ambas as leis: todos os artigos são normas gerais.

Trata-se de evidente exagero, porém a batalha contra esse desmedimento parece definitivamente perdida, e ninguém mais perde tempo para combater essa grosseria do legislador que provém de 1.993.

 

IV - Quando enrtetanto a lei sai do terreno dos objetos a serem adquiridos pelo ente público e passa paa outros campos como trespasse de serviçso públicos, ou para trespasses do uso de bens públicos, seu nível qualitativo despenca, ou vai para o brejo como se sói ouvir da judiciosa boca dos aplicadores

Uma lei concebida para comprar não pode servir para licitar concessões de serviço público, nem permissões de uso de bens públicos. 

Forçar a mão como o legislador já fez em 1.993 (Lei nº 8.666) não pode dar bom resultado, e essa atitude costuma dar péssimos resultados em nosso país. Ele tentou proteger a moralidade, mas promoveu uma lambança generalizada, um serviço porco, uma grandessíssima mixórdia legislativa.

Leis de compra têm institutos de compra, como pesquisas de preço, padronizações, critérios de menor preço, registros de preço, credenciamento e cadastramento de fornecedores, serviços especializados, notória especialização do prestador e inúmeros outros, ao passo que concessões e permissões são mundos ineiramente apartados das aquisições públicas, e exigem instituições peculiares e adequadas, que não se confundam com as de aquisições.

Tanto é verdade que a União licita suas concessões e suas permissões de serviço por lei própria, neste momento a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1.995, e não as leis de normas gerais de licitação – ustilizadas apenas suplementarmente àquela, quando a lei própria de concessões não for suficiente para euqcionar por inteiro o certame licitatório específico.

E seja observado: já fez mal o legislador federal de concessões ao encostar  na lei de licitações – por indisfarçável preguiça de disciplinar a concessão de modo completo e integral na lei específica, precisamente para não depender de feixes normativos estranhos ao objeto de concessões e permissões de serviço.

Mas, seja como for, o divisor de águas está traçado: aquisições se licitam pela lei geral de licitações, e concessões e permissões de serviço se licitam pela lei própria desse assunto. 

A mistura, a confusão, o baralhamento de fundamentos diferentes de propósitos diferentes (aquisições de um lado, concessões de ourto lado) não pode dar ceerto. Não é sem razão que os espiritualistas inquinam a preguiça de o mais grave dos pecados mortais ...

 

Trespasses de uso de bens públicos

V – Agora o tema central: uso de bens públicos.

 

Municípios

Os bens públicos, comose sabe,  são a) de uso comum do povo, ou b) especiais, ou c) dominicais (em verdade  dominiais, pois que não são de domingo mas de domínio), conforme o Código Civil, art. 99.

Os de uso comum do povo são utilizados e fruídos indistintamente por qualquer pessoa, sem qualquer requisito prévio. Os bens especiais são aqueles destinados ou afetados a determinado uso, e para  fruí-los o cidadão precisará submeter-se aos requisits e às limitações de uso impostas pelo ente público titular.

Os bens dominiais – que o Código Civil há um século denomina impropriamente  dominicais – são os integrantes do patrimônio disponível do ente público titular, e dos três são os únicos que podem ser alienados.

Cada qual pode ter a categoria alterada por lei local – e apenas local -,   e o uso de cada qual deles,  observada sua a classificação que é nacionalmente fixada no Código Civil,  se dará na forma exclusiva da legislação local.

O principal diploma da organização municipal é a Lei Orgânica do Município, algo como – guardadas as competências e as diferenças constitucionais – uma miniconstituição local.

E é exatamente na lei orgânica  de cada Município que vem disiciplinado o trespasse do uso dos seus bens públicos, ou seja a forma pela qual o uso de cada um deles pode ser entregue à iniciativa privada, remuneradamente ou não, sempre na perseguição do interesse público e dentro das regras rigidamente estabelecidas pelo ente titular.

 

Estados

VII - Nos Estados-membros da federação, regidos pelas Constituições respectivas que lhes dão sempre as primeiras balizas estruturais e organizacionais,   a matéria que escapar da Constituição estadual será disciplinada e resolvida na legislação estadual – que apenas observará  os mínimos e as restrições constitucionais federais.

Mas é curioso – e por isso os Municípios vieram, aqui,  antes dos Estados – que em matéria de Constituição ou de lei orgânica não são os Estados os modelos para os Muinicípios, e sim o inverso.

 

Leis orgânicas municipais

Quando, antes da Carta de 1.988 e afora em dois Estados brasileiros que tinham cartas-próprias, os Municípios não tinham poder para editar cada qual a sua lei orgânica, eram comuns as leis orgânicas estaduais para os Municípios de cada respectivo Estado.

O Estado editava uma lei que servia como a lei orgânica dos seus todos Municípios, mais ou menos a materializar, naqueles tempos duros,  o que se traduz como quem pode manda; quem tem juízo obedece ...

Assim foi com São Paulo, que editou seu Decreto-lei Complementar nº 9, de 31 de dezembro de 1.969,  autoria  de Hely Lopes Meirelles, o notável administrativista de quem se dizia que elaborava a lei, a doutrina e a jurisprudência no seu ramo...

Mas afora a pilhéria o diploma era de muito boa qualidade, e serviu de modelo tanto para outros Estados quanto para as futuras leis orgânicas municipais editadas a partir da Constituição de 1.988.

E mais: serviu ocasionalmente como modelo até mesmo para Constituições estaduais, na parte de uso de bens públicos e em outros assuntos como o trespasse, agora, sim, de serviços público

O Município  ocasionalmente  oferece lições inesperadas., porque nele o direito é concentrado no interesse local, enquanto que os Estados têm competência normativa residual, ou seja aquela não privativa nem da União nem do Município, e com isso é mais difícil lidar – porque um escopo mal definido e pouco preciso, a ponto de frequentemente haver discussão sobre que ente federado é competente para regular certos assuntos, como ocorreu há pouco com os temas da pandemia da praga chinesa.

 

VIII – Mas seja como for no caso do uso dos bens públicos municipais vale sempore a regra local, ou seja:

a) a lei e os decretos municipais informam a classificação dos bens públicos municipais;

b) a lei municipal altera a classificação de seus bens com absoluta liberdade, limitando-se apenas à observância de regras federais como a do loteamento, através da qual uma gleba reservada como área verde de um loteamento municipal não pode ter essa afetação desfeita  por lei local. 

Mas isso se dá porque o disciplinamento dos loteamentos é matéria federal, conforme a Constituição, art. 21, inc. XX (‘instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano’), sendo que a principal lei de loteamentos (Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1.979) atribui ou reconhece competência legislativa suplementar para Estados e para Municípios nas matérias de peculiaridade local ou regional sobre o assunto;

c) a lei municipal disciplina as formas de trespasse do uso dos bens públicos municipais, assim como a lei estadual o disciplian quanto aos bens estaduais. 

Nenhuma lei federal dita nem a Estados nem a Municípios a forma e as condições para o trespasse do uso dos bens estaduais nem municipais, porque, se a classificação originbária dos ens públicos é dada pelo Código Civil, enrtetanto o uso dos bens públicos é matéria para o disciplinamento local.

 

IX – Observemos o texto do antigo DLC estadual nº 9/69, a antiga lei orgânica estadual para os Municípios paulistas anteriormente à Consttuição de 1.988:

Art.  65  O uso de bens municipais por terceiros poderá ser feito mediante concessão, permissão ou autorização, conforme o caso, e o interesse público exigir.

§ 1º A concessão administrativas dos bens públicos de uso especial e dominicais, dependerá de lei e concorrência, far-se-á mediante contrato, sob pena de nulidade do ato. A concorrência poderá ser dispensada, mediante lei, quando o uso se destinar a concessionária de serviço público, e entidades assistenciais, ou quando houver interesse público relevante, devidamente justificado.

§ 2º A concessão administrativa de bens públicos de uso comum somente poderá ser outorgada para finalidades escolares, de assistência social ou turística, mediante autorização legislativa.

§ 3º A permissão, que poderá incidir sobre qualquer bem público, será feita a título precário, por decreto.

§ 4º A autorização, que poderá incidir sobre qualquer bem público, será feita por portaria, para atividades ou usos específicos e transitórios, pelo prazo máximo de sessenta dias.  (Itálico nosso, nesta lei cujo autor foi Hely Lopes Meirelles).

 

E eis o que reza atualmente a Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 4 de abril de 1.990:

Art. 114   Os bens municipais poderão ser utilizados por terceiros, mediante concessão, permissão, autorização e locação social, conforme o caso e o interesse público ou social, devidamente justificado, o exigir.

§ 1º   A  concessão  administrativa  de  bens  públicos depende  de  autorização  legislativa  e  concorrência  e  será formalizada mediante contrato, sob pena de nulidade do ato.

§ 2º  A concorrência a que se refere o § 1º será dispensada quando o uso se destinar a concessionárias de serviço público, entidades assistenciais ou filantrópicas ou quando houver interesse público ou social devidamente justificado.

§ 3º  Considera-se de interesse social a prestação de serviços, exercida sem fins lucrativos, voltados ao atendimento das necessidades básicas da população em saúde, educação, cultura, entidades carnavalescas, esportes, entidades religiosas e segurança pública.

§ 4º  A permissão de uso, que poderá incidir sobre qualquer bem público, independe de licitação e será sempre por tempo indeterminado e formalizada por termo administrativo.

§ 5º  A autorização será formalizada por portaria, para atividades ou usos específicos e transitórios, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, exceto quando se destinar a formar canteiro de obra ou de serviço público, caso em que o prazo corresponderá ao da duração da obra ou do serviço.

§ 6º  A locação social de unidades habitacionais de interesse social produzidas ou destinadas à população de baixa renda independe de autorização legislativa e licitação e será formalizada por contrato.  (O artigo segue, mas basta isto acima)

 

Conclui-se que a) não há nada de novo sob o sol, e b)  não é sem razão que se afirma que Hely  escrevia a lei, a doutrina e a jurisprudência. Até hoje os seus textos são reverenciados e, dentro do possível, mantidos.

 

X - Porém mais importante é observar que nenhuma lei federal dita normas de uso de bens municipais, como de bens estaduais. É  o Município o gestor do uso de seus bens públicos, e o Estado dos seus:

a) as modalidades de trespasse de uso, hoje na capital paulista com inspiração na antiga LOM estadual para os Municípios, são concessão de uso, permissão de uso, autorização de uso e locação social, esta última uma inovação ao velho modelo.

E se o Município resolver inventar novas espécies de trespasse de uso, fá-lo-á livremente na sua lei, observadas apenas as regras constitucionais porventura aplicáveis, e as de direito civil que incidam sobre a matéria, que são muito poucas e  de grande generalidade;

b) se se licita, o que se licita, se se dispensa licitação e porquê, tudo isso é matéria disciplinada na LOM, ou seja na lei municipal.  Não é lei outra nenhuma nacional que o dirá, porque essa matéria se inclui entre as de interesse local, resguardada portanto pela proteção constitucional como de competência do Município, e o mesmo se podendo afirmar quanto ao Estado – com cujas competências e com cuja legislação é muitíssimo mais difícil trabalhar do que o é quanto à legislação municipal, concentrada como é no interesse local.

Mas em assunto caseiro do Município – como é o disciplinamento do trespasse do uso dos seus bens públicos - a lei federal  não dá pitaco: entra muda e sai calada, e com muito cuidado...

 

XI – Mas o título desta breve reflexão menciona a nova lei de licitações, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021, e até o momento ela pouco foi mencionada.

Então, qual o papel da nova lei de licitações naquela questão do trespasse de uso ?

Pode isto ser um decepcionante anticlímax, porém o papel da nova lei é o mesmo da antiga e atual Lei nº 8.666/93, ou seja: se a lei local mandar licitar, o trespasse de uso será licitado pela lei de licitações em vigor – que é nacional, já que toda ela se diz de normas gerais de licitação e contrato.

Enquanto estiver a nova lei em vigor alternativo com a velha e atual lei  (mamma mia !  Onde chegamos !..), o aplicador escolherá aplicar uma ou outra. A partir de 1º de abril de 2.023 só lhe restará aplicar a nova.

Se a lei local (municipal ou estadual, forçando-se um pouco essa denominação de ‘local’ para os Estados) dispensar licitação para este  ou aqueloutro trespasse, então a licitação estará ipso facto dispensada, só em si e por completo, não se devendo sequer consultar as  hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade constantes da lei nacional – porque a matéria não é nacional e sim local.

Isso acaso significa afirmar que, mesmo as regras da lei nacional de licitação se dizendo o conjunto das normas gerais, acaso existem outras dispensas ou inexigibilidades dadas por lei local, conforme o assunto seja local ?    Foi isso o que se quis afirmar ?

Absolutamente sim.

 

XII - Sim,   porque não é lei nacional nenhuma de licitações – nem de coisa nenhuma - que irá prejudicar a competência constitucional privativa do Município, para legislar sobre os temas de seu peculiar interesse, ou interesse local, dada art. 30, inc. I, da Constituição tupiniquim.

E o mesmo se conclua quanto aos Estados, face ao  art. 25  da  mesma  Constituição-cidadã.

Com todo efeito, nem hoje nem nunca uma lei federa, sobre o assunto que for ou a pretexto do que for, retirará de Estados e de Municípios a sua autonomia legislativa e administrativa que  por excelência  integra a base do sistema federativo brasileiro.

Reza nossa Constituição:

Art. 60  A Constituição poderá ser emendada (...)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado.

Ora se nem sequer se admite proposta de emenda à Constituição (PEC) que vulnere o pacto federativo, muito menos lei ordinária terá esse condão.

Antes de  tentar resolver um problema com base direta na lei o cidadão consciente deve, antes, e como sempre advertia o mestre Geraldo Ataliba, perscrutar a Constituição, para examinar se a questão já não está resolvida ali mesmo, no texto magno.

É muito mais civilizado.