OBJETO SOCIAL INCOMPATÍVEL VERSUS ATESTADOS COMPATÍVEIS

OBJETO SOCIAL INCOMPATÍVEL VERSUS ATESTADOS COMPATÍVEIS

 

Ivan Barbosa Rigolin

(jun/22)

 

 

I – Dentro do asqueroso  mundo da habilitações nas licitações – que jamais cansamos de denegrir, detratar, achincalhar e desmerecer porque constituem o grande atraso de vida da Administração licitadora, do serviço público, do agente público envolvido e dos licitantes, e o qual auxilia um  e atrapalha cinco – uma questão sempre presente é a de saber se os agentes licitadores (comissão, pregoeiro e equipe de apoio, e na nova lei os agentes de contratação) podem aceitar e habilitar licitantes cujo objeto social não se copmpatibilize com o objeto em disputa, porém detentores de atestados perfeitamente compatíveis de execuções.

O impasse  se dá em face da redação do inc. II do art. 30 da Lei nº 8.666/93, assim como do art. 67, incs. I e II, da nova regra legal, a Lei nº 14.133/21.

Reza a Lei nº 8.666/93:

Art. 30.  A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a: (...)

II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos; (Destacamos)

 

E assim dispõe a Lei nº 14.133/21 no dispositivo equivalente àquele:

Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a:

I - apresentação de profissional, devidamente registrado no conselho profissional competente, quando for o caso, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação;

II - certidões ou atestados, regularmente emitidos pelo conselho profissional competente, quando for o caso, que demonstrem capacidade operacional na execução de serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior, bem como documentos comprobatórios emitidos na forma do § 3º do art. 88 desta Lei;  (Destacamos).

II – Os trechos em destaque da Lei nº 8.666/93 – porque a nova lei, cuja aplicação só será obrigatória a partir de 1º de abril de 2.023, ainda mal iniciou a ser utilizada – têm com efeito ensejado inquietações e questionamentos, que assim se resumem:

- pode ser habilitado um licitante que apresente atestado(s) de execução de objetos perfeitamente compatíveis com o da licitação de que participa, ainda que o objeto social da sua empresa seja diverso, podendo-se-o chamar incompatível ?;

- o quê prevalece: o trabalho compatível já executado e atestado ou, de outra forma, além do(s) atestado(s) compatível(is), o atendimento formal à compatibilidade do objeto social do licitante com  a  exigência  do edital que repetiu a dicção da lei de licitações ?;

- é sempre exigível a compatibilidade formal do objeto social do licitante com o objeto da licitação, ou pode ser suprida a necessidade da Administração pela apresentação de atestado(s) de execução de objetos  compatíveis – independentemente do que diga o objeto social do licitante que os ofereça  ?

Ao licitador lúcido e consciente do seu papel  institucional dentro da Administração pública;  àquele agente voltado ao interesse público e não a formalidades e a rituais que somente interessam a preciosistas mais preocupados com seu umbigo do que com a população que precisam atender; àquele servidor que enxerga muito além do que sua vista alcança, e que honra seu cargo e o vencimento público que recebe, estes não terão um segundo de hesitação para responder: vale a atestação compatível antes do objeto social compatível. 

III – O grande Hely Lopes Meirelles, um dos principais edificadores do direito administrativo brasileiro e uma referência segura em todos os temas publicísticos com os quais conviveu até sua morte em 1.990, tem escrito um pequeno excerto de livro sobre o papel da licitação que é citado até à exaustão na literatura jurídica, pelo qual combate acerbamente o rigorismo das exigências editalícias, inconsentâneo com a desejável simplicidade das licitações.

Aquele curto e excerto nos inspirou a escrever, ainda sobre exigências para habilitação com seu freqüente exagero nos editais, que

Este tema aparentemente não perderá a atualidade nunca, porque por mais que se alardeie, escreva, propague e combata, a velocidade com que a Administração se conscientiza de que não deve exagerar nesta leviana e fútil inutilidade que é o rigorismo quanto à habilitação nas licitações.

Dizemos rigorismo e não rigor, no sentido pejorativo mesmo, porque é isso que ocorre a todo tempo, observando-se que o poder público, em larga proporção e sem generalizar de todo,  ainda não se libertou daquela antiga mentalidade, que é retrógrada, primitiva, tosca, rude, permeada pela indisfarçável insegurança sobre o direito aplicável ou pela preguiçosa má-vontade em abrir os olhos para o que interessa nos negócios públicos, de que a Administração precisa conhecer quem contrata.

Dizendo-se apenas assim nada em de fútil nem de impróprio esse entendimento, porém é na sua aplicação prática que se dá o problema: de fato o poder público não pode contratar fornecedores desconhecidos e os aventureiros “paraquedistas” de todo gênero que pululam no mercado à espera de quem tenha a má idéia de os contratar, para a seguir chorar lágrimas de sangue.

Se a Administração precisa de fato conhecer quem contrata, o fato é que é apenas em muito poucos aspectos que os precisa conhecer, e nunca, jamais em tempo algum, naquela infinidade de quinquilharias documentais e burocráticas que a lei de licitações permite exigir.  Não se deve perder a Administração licitadora naquele cipoal de documentos que a lei apenas permite exigir, sem jamais exigir que o edital exija de fato. ([1]).

IV - Não deve nem pode a Administração confundir figura com fundo. O que lhe interessa saber do licitante que se lhe apresenta é apenas se ele sabe realizar o objeto agora pretendido, e não se ostenta a imagem institucional tal ou qual, ou se exibe a rotulação mais desejável para o evento, ou se pertence ao restritivo clube do referido objeto, e se veste o figurino da ocasião.

Nada disso importa se ele já executou o objeto que ora está em disputa. Só isso interessa saber,  e ao licitante apenas isso  deve ser necessarário demonstrar, e apenas isso lhe pode ser cobrado.

Em boa técnica pouco deve interessar ao ente público que licita ins dagar a fundo sobre  a natureza jurídica e comercial dos estabelecimentos que se apresentam nos certames: deve atentar apenas para os demonstrativos que apresentam do que, pertinentemente ao objeto então em disputa, aquele licitante já executou.

Certifique-se então, se houver dúvida, da veracidade dos atestados, e da suficiência dos quantitativos dentro de cada fase ou etapa relevante do objeto executado.

Tudo isso deve ersultar confrmado e positivo, e por óbvio suficiente, e se tal acontecer, então  não se perca a Administração em perquirir formalismos  institucionais, quase sempre absolutamente desinteressantes ao seu interesse e ao interesse público, poruqe é de supor que tenha mais o que fazer.

Fixe-se e se detenha a entidade licitadora,  isto, sim, nas efetivas realizações do proponente, pois que aí e apenas aí reside a sua qualificação, e não em papéis, rotulações e  imagens que só em si a nada de proveitoso conduzem, e que de resto  o grande objeto de desejo dos pilantras, dos senvergonhas profissionais que vivem de aparências, dos embusteiros e dos golpistas premeditadores.

V - Não se está aqui discursando contra documentação relevante e essencial, em absoluto, e essa sempre existe e sempre é necessário – sem exagero ! Sem exagero ! – exigir.  Longe disso.

O que se recomenda com ênfase é filtrar a preocupação do edital e do ente público para matéria que valha, representada por execuções contratuais anteriores que sejam substantivas e significativas, sem maior detença ou obstinação quanto à  natureza comercial e jurídica do licitante, algo quase invariavelmente de grandíssima inutilidade e insignificância na prática operacional.

No direito, na Administração pública e, claro,  na vida inteira, vale a natureza das coisas e não o seu jeitão, nem a roupagem que se lhes dá, nem a sua fantasia para a ocasião.

E, porventura, em matéria de licitação e de habilitação resulta  mais fácil  vislumbrar as futilidades das leis do que caçar em um jardim zoológico. Nesse ponto, para ficarem apenas ruins nossas últimas leis de licitação precisarão melhorar umas cinco vezes.

O autor dos dispositivos sobre habilitação é o patético cavaleiro da triste figura do universo legislativo. De um ridículo que é só seu, é tão útil para a evolução do direito quanto uma boa tuberculose, ou o massacre da Ucrânia.

 Se a lei eventualmente, com boa ou com má intenção – porque existem leis de péssima intenção -    contém orientações que na prática se revelam fúteis e levianas, de outro lado sempre há e haverá modos de aplicá-la modo racional, econômico e inteligente, como com insistência preconizava Carlos Maximilano em sua obra imortal.

VI - Permita-se-nos por fim uma curta digressão filosófico-licitatória.

Quem aprecia a pintura mais do que a moldura; quem preza o valor antes do preço; quem prefere ser antes de ter; quem prefere a pessoa que está dentro antes da roupa que lhe está por fora; quem prestigia o seu gosto pessoal antes da moda do dia; quem raciocina com o próprio cérebro  e não com o coletivo alheio; quem se orienta pelo que  aprendeu e que sabe, e não pelo que ouviu no noticiário da manhã, este, se for colocado dentro do serviço  público, saberá como atuar e como agir, e o que prestigiar e o que preferir, separando substância de aparência, e essência de perfumaria barata.

E se esse mesmo cidadão porventura for da área das licitações, então saberá que o que de fato vale é aquilo  que o licitante demonstra que  já fez, e não a montoeira de rótulos, de etiquetas  e de papeladas que astutamente ajuntou ao longo do tempo para atender aos formalistas e aos prestigiadores, como nas Escrituras, da letra que mata, frente ao espírito que vivifica.

Existem-nos, em grande quantidade, tanto de um lado quanto de outro. Nosso íntimo conforto, entretanto. é saber que cada qual, no seu dia, terá o destino que merece ...

 

 

[1] Artigo Habilitação nas licitações: o horror continua, de out/10. publicado em Boletim de Administração Pública Municipal, Fiorilli, nov./10, assunto 161; Fórum de Contratação e Gestão Pública, out/10, p. 48;   BLC, NDJ, jan./11, p. 10;  Boletim de Licitações e Contratos, ed.  Governet, fev/11, p. 124.