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TERMO INDENIZATÓRIO – O ART. 131 DA LEI Nº 14.133/21
TERMO INDENIZATÓRIO – O ART. 131 DA LEI Nº 14.133/21
Ivan Barbosa Rigolin
(dez/22)
I – Encerra-se o ano com este breve artigo sobre um tema que, até este momento pela legislação tradicional de licitação e contrato - centrada na Lei nº 8.666, de 1.993 – constitui algo como um tabu, um procedimento quase proibido em face do elevadíssimo perigo operacional que encerra: indenização administrativa.
Trata-se historicamente de matéria de alto risco, que – se houvesse espaço - deveria assegurar ao aplicador ou adicional de periculosidade, ou salvo-conduto internacional, ou habeas corpus preventivo ...
Com efeito, o simples cogitar de indenizações administrativas vem, já há bom tempo em nosso país, ensejando arrepios de pavor aos agentes públicos mais avisados e mais experimentados, aqueles dotados ao menos de alguns cabelos brancos e algumas rugas gravitacionais.
Afinal, ensina a sabedoria das gentes que somente o passar do tempo ensina ao primata abster-se de insinuar sua extremidade preênsil no recipiendário.
II – O risco aqui referido é o de o agente autorizador de indenizações administrativas - por desequilíbrio financeiro do contrato, ou por atos do ente público contratante que injustamente prejudicaram o contratado, inclusive algumas rescisões ou extinções do contrato – ser responsabilizado por seu ato, quase sempre judicialmente, em ações tremendamente pesadas, sejam justas, sejam injustas.
É bastante freqüente se observarem condenações àqueles agentes públicos, de ressarcirem o seu erário por indenizações administrativas que deferiram a particulares contratados – nada obstante o prévio aval do seu ato por pareceres, laudos, perícias, avaliações, auditorias ou levantamentos os mais diversos e abalizados.
Sim, porque, correta ou incorreta, nem toda argumentação e toda fundamentação do mundo resiste à sanha condenatória de quem (I) pode condenar, e (II) quer condenar. O bíblico julgamento de Cristo serve como suficiente exemplo.
III - Mas a temível questão vem de sofrer humanizante atenuação – poder-se-ia dizer algo como juridização – com o art. 131 da novel lei de licitações, a Lei nº 14.133, de 2.021, que em abril de 2.023 será a única lei de normas gerais sobre licitação e contrato administrativo vigorante no Brasil.
Reza aquele dispositivo:
Art. 131. A extinção do contrato não configurará óbice para o reconhecimento do desequilíbrio econômico-financeiro, hipótese em que será concedida indenização por meio de termo indenizatório.
Parágrafo único. O pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro deverá ser formulado durante a vigência do contrato e antes de eventual prorrogação nos termos do art. 107 desta Lei. (Itálico nosso).
Observa-se portanto que o termo indenizatório passou a constituir algo como uma instituição contratual, pela sua simples previsão na lei como regra ordinária e desassombrada – uma vez que a idéia antes evocava assombrações e fantasmagorias evitáveis a todo custo. Algo como um exorcismo legislativo de um abantesma procedimental... – e ninguém se assuste: os que já foram réus em tais ações sabem do que se está falando.
Normalizou-se, por assim dizer, a idéia de indenizar administrativamente o contratado prejudicado por ocorrência provocada pela Administração na execução do contrato, reconhecidamente desfavorável ao interesse do particular. Essa ocorrência, que só a contratante tem poder para efetivar, é a extinção do contrato.
IV – A regra deste art. 131, dentre outros efeitos que acaso produza, em princípio afasta a suspeita que sempre pesou sobre a intenção de indenizar o contratado por prejuízo que o ente público contratante lhe tenha infligido.
Tal indenizabilidade, evidentemente fundamentada nos fatos e financeiramente justificada, passa então a desfrutar de presunção de legitimidade, que a doutrina informa como pressuposto do ato administrativo mas que simplesmente, como regra geral na prática, não era aceita quanto a indenizações administrativas em face daquela insuperável suspeita de favorecimento ilícito, corrupção, negociata, maracutaia, etc, etc.
Corrupção e negociatas em tais negócios existiram, sim, e em grande quantidade – porém nem sempre assim ocorre, e, recorde-se outra vez, toda generalização é errada, indevida e injusta.
Nem todo indenizador público é um abutre, como nem todo particular indenizado é um bandido. Quantas indenizações mais do que justas e devidas deixaram de ser pagas por temor da autoridade, e, dessas, quantas foram indeferidas em ações judiciais de resultado discutibilíssimo ?
Mas a presunção de legitimidade, que em princípio e teoricamente informa o ato administrativo, no caso de indenizações administrativas quase se invertia no conceito generalizado das pessoas e dos observadores dos negócios públicos. Muitos forçavam a idéia de que qualquer indenização é viciada e corrupta, o que é mais falso que uma cédula de quinze unidades monetárias.
A fiscalização, tanto ministerial quanto tribunalícia de contas, e quanto ainda à do cidadão e à das variadas organizações da sociedade civil, era e é implacável quando o tema é de indenização administrativa ao contratado particular.
As condenações judiciais, nesse mesmo condão, eram e são freqüentes em tal assunto, e o eram mais do que são hoje simplesmente porque devido ao risco iminente reduziram-se de modo dramático aquelas indenizações. O assunto ainda é, repita-se, quase um tabu.
V – Aquele antitécnico e assustador panorama está mudando, entretanto, graças à Lei nº 14.133/21.
A indenização administrativamente calculada e devida ao contratado por extinção do contrato, desde que requerida pelo contratado durante a vigência do mesmo contrato, passa a poder regular e desassombradamente ser paga.
Deve qualquer indenização, por evidente, estar baseada em cálculos oficiais – que podem ser contratados especialmente caso o ente contratante snão se julgue capaz de fazê-lo – e em adequada justificativa de valor, ou de outro modo continuará a ser, como no passado pela Lei nº 8.666/93, no mínimo temerária.
Evidentemente desvios de finalidade no cálculo das indenizações, com sobrevalorização do montante e favorecimento irregular do contratado, continuam a ser crimes contra a Administração pública, e continuarão a merecer apenação na exata forma da lei penal.
Apenas se evidencia que a diferença da nova lei de licitação e contrato com relação à atual (e em breve revogada Lei nº 8.666/93) é que a Lei nº 8.666/93 nem sequer tangencia o instituto da indenização administrativa, enquanto que a nova lei a consigna expressamente para a hipótese que enuncia.
Deixa então a indeznização de ser um fantasma ameaçador, tornando-se instituição legal e oficial, que qualquer criança compreende.
VI - Uma curiosidade e uma atecnia da nova lei neste art. 131 consta do seu parágrafo único, que exige, além de que o requerimento seja formulado durante a vigência do contrato e portanto antes da sua extinção, que o requerimento seja formulado antes de eventual prorrogação do contrato, como o art. 107 admite seja prorrogado.
Ora, mas se o desequilíbrio financeiro ocorreu apenas depois de alguma prorrogação, então como imaginar que o contratado adivinhe o que vai acontecer no futuro, e desde logo requeira indenização por algo que ainda não aconteceu, e por um prejuízo que ainda não teve ?
Não faz o menor sentido essa previsão, e a indenização pode ser requerida, entendemos, a qualquer tempo dentro do contrato, desde que o contratado apenas demonstre que o desequilíbrio ocorreu e o prejudicou. Se nesse meio tempo o contrato foi extinto, isso pouco importa ante os dizeres deste art. 131, e não afeta o direito do contratado à reparação.
VII – À falta de especificação na lei a indenização é devida por extinção unilateral ou bilateral do contrato, e não apenas, como se poderia imaginar, por extinção unilateral determinada pela contratante Administração ([1]). Qualquer extinção se encaixa no comando da lei.
Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus, reza o clássico adágio que proíbe ao intérprete promover ou encontrar distinções dentro de uma previsão jurídica genérica e indistintiva. Quisera o legislador distinguir ou especificar, então que o fizesse às abertas e explicitamente. A aplicação da lei não combina com cartas na manga.
Se a intenção originária do legislador era outra, entretanto o que a lei fez foi generalizar, e nesse contexto vale e prevalece o seu comando literal sobre qualquer ‘intenção’, ‘espírito’, tendência ou semelhante parolagem flácida para dormitar bovino, locução mais freqüentemente referida sob a dicção conversa mole para boi dormir.
Ninguém coloque palavras na lei, na pena do legislador nem no óculo do aplicador, porque isso é serviço de fariseu ou de lobo vestido de cordeiro, desses que pululam em farta quantidade no mundo jurídico.
[1] E outra vez é preocupante a invariável previsão legal de extinção ao invés da clássica, consagrada, absolutamente precisa e segura rescisão, que consta da Lei nº 8.666/93. Tendo sido extirpado o instituto da rescisão na nova Lei nº 14.133/21, parece-nos respeitosamente que nem mesmo MIchel de Nostradamus, assessorado pela sibila délfica e por Mãe Dinah, é capaz de profetizar o que virá no direito contratual público brasileiro. Poderá não vir nada, porém é arrepiante.