OS REGULAMENTOS DA LEI Nº 14.133/21

OS REGULAMENTOS DA LEI Nº 14.133/21

 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/23)

 

 

I – A vasta e congesta Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021, a nova lei de licitações e contratos, pelo seu próprio comando demanda diversos regulamentos, não necessariamente decretos, para permitir a sua regular e desimpedida operacionalidade.

Em verdade é difícil crer que essa lei, que entra em vigor isolado em 1º de abril de 2.023 – quando estará revogada a Lei nº 8.666/93 e a qual até então vigorará opcionalmente ao lado da nova lei  -, algum dia terá execução fluida e desimpedida, tamanhos são os travos internos do seu texto, e a dificuldade ingente de acionar todos os seus institutos de modo coeso e harmônico.

Com efeito, a nova lei é tão intricada, detalhista, rebuscada, preciosista, rebarbativa, e por tudo isso abundante,  que não permite prognósticos operacionais muito favoráveis. Lembra aqueles céus carregadíssimos de água por cair, e a antevisão de dilúvios e hecatombes ...

Mas desde logo uma advertência: a quem imagine que este escriba nutra antipatia pela nova lei, saiba que acertou em cheio. Nem por isso, entretanto, se podem ou se devem entregar os pontos. 

 

II – O anterior governo federal parece ter tido, quanto à nova lei de licitação,  um apetite regulamentador poucas vezes visto antes. 

Elencou 71 atos regulamentares necessários para a mais adequada execução da Lei nº 14.133/21, e mantém publicado na internet, site relatório_regulamentos _14133.portal (...), um quadro, atualizado até 8 de setembro de 2.022 quando foi escrito este artigo, informando visualmente os atos já expedidos e os ainda em andamento, bem como os entes por eles responsáveis, caso a caso.

Trata-se de decretos, portarias ou instruções normativas, sendo que 20 já estão publicados.

O trabalho organizatório, muito pouco usual na Administração pública brasileira,  é admirável, porque junta num só  quadro  a radiografia  completa do  panorama regulamentar da nova lei, com absoluta visibilidade e transparência a quem nele tiver interesse.

Deve ser periodicamente acompanhado e conferido pelos interessados, já que informará a edição dos novos diplomas sempre que ocorrer, enfeixando toda essa informação, que historicamente é quase sempre dispersa e desorganizada, num só documento.

É portanto um quadro em permanente evolução e complementação, até o momento em que todos os diplomas enunciados já estejam publicados. E mesmo após isso será atualizado a cada alteração de cada qual dos regulamentos.

 

III – Antes de prosseguir uma ligeira nota sobre o poder regulamentar.

Essa expressão designa a capacidade, ínsita em e ao dispor de  todo detentor de mandato executivo no poder público – Presidente da república, Governador e Prefeito -, e não se excluem os dirigentes de autarquias, fundações públicas e empresas estatais dentro da sua autonomia e do limite da sua circunscrição, de disciplinar quaisquer assuntos de interesse do ente que dirigem, observada apenas a Constituição, a lei e outro(s) eventual(is) atos regulamentares superiores e aplicáveis.

É o poder de livremente expedir regulamentos, instruções, comandos organizacionais ou disciplinares para o âmbito do ente comandado pelo respectivo chefe.

Esse poder, repita-se, não depende de autorização legislativa nem de qualquer outra, apenas se exigindo que o regulamento se atenha ao superior comando da Constituição e da(s) lei(s)  aplicável(is).

Graças ao poder regulamentar o chefe do ente expede atos que organizem, sistematizem, normatizem e orientem, como comandos obrigatórios, matérias, áreas ou assuntos internos de seu ente, em prol da sua melhor atuação na atividade a que esteja afetado.

O comando é obrigatório para os servidores do ente respectivo, porém pode sempre ser utilizado por outros entes que lhe sejam institucionalmente vinculados, como por exemplo um regulamento estadual, concebido para a administração direta,  que uma autarquia estadual resolva utilizar, porque assim quer. Nada o impede, e essa atitude é bastante comum no direito público.

No caso da Lei nº 14.133/21 nem todos os regulamentos que o governo federal expediu ou está em via de expedir, em número de 71 como se disse retro, estão exigidos pela lei. Alguns estão, ouros não.

E se o governo quiser adiar indefinidamente a expedição daqueles atos – sempre que a lei não fixe prazo máximo para tanto – pode fazê-lo, como tem feito frequentemente ao longo da história.

E se o governo quiser em vez de 71 regulamentar 200 pontos da lei pode igualmente fazê-lo, sem qualquer  embaraço,  graças ao  poder regulamentar de que dispõe.

Nesse panorama, quando a lei é silente e não aponta nenhum regulamento necessário é bastante usual a discussão sobre se algum regulamento é ou não é necessário para a melhor execução da lei – e essa discussão, que assume novas cores a cada nova lei, jamais terá fim.

Muitas leis detêm desde logo todas as condições para a sua desimpedida, integral e suficiente exequibilidade, sem decreto nem regulamento algum. Mas é igualmente comum a atitude de se protelar ad infinitum  a execução da lei sob a alegação de que ´o governo ainda não a regulamentou`.

Em geral se trata de parolagem flácida para dormitar bovino, conversinha de rematados preguiçosos a quem a perspectiva de ter  de começar a trabalhar inflige arrepios de pavor – aqueles que ingressam aos vinte anos no serviço público e imediatamente se põem a a calcular com quanto se aposentarão.

Como efeito, existem regulamentos e regulamentos tão necessários quanto um choque de motocicletas no Alpes, ou uma severa broncopneumonia dupla.

Muitos extensíssimos decretos no Brasil, como por exemplo em matéria previdenciária, são cópias da lei, com alguns ocasionais e esporádicos acréscimos de matéria, lançados sem  a menor reflexão nem o menor compromisso com sua possível permanência – e como se a lei precisasse que um decreto que a  copiasse para poder ser aplicada...

E tão ruins e escabrosos são esses regulamentos - ainda em matéria previdenciária cuja legislação brasileira é tida e havida como a pior do mundo  - que um dos decretos que regulamentaram a lei de organização previdenciária, após sofrer mais de 200 modificações e há cerca de 35 anos,  houve por bem  ser consolidada por outro decreto federal, na tentativa de tornar exequível a matéria que lembrava um ninho de ratos.

Pois bem, no mesmo dia em que foi publicado o decreto de consolidação da legislação previdenciária, logo em campo abaixo no Diário Oficial da União foi publicada uma lei que modificava a mesma legislação.

Neste caso histórico – sem dizer do bárbaro absurdo que é consolidar um conjunto de leis por via de um decreto – confundiram-se leis com decretos, com instruções e com o diabo a quatro, numa parafernália indecifrável.  Mas felizmente algo tão desastroso não é comum, e sobretudo nesta Constituição de 1.988 que após mais de 100 emendas acabou por absorver grande parte das instituições previdenciárias.

Mas mesmo fora da Constituição os tempos mudaram, e a fúria regulamentadora da autoridade arrefeceu nas últimas décadas. Com isso os decretos vêm sendo racionalizados e aperfeiçoados em técnica, de modo que atualmente os miasmas do analfabetismo regulamentar  jazem no passado – e que nunca ressuscitem.

 

IV – Escrevemos recente artigo  sobre o art. 20 da nova lei e seu regulamento, o Decreto nª 10.818, de 27 de setembro de 2.021, uma matéria curiosíssima em direito, a tentar objetivar o que se deve entender  por bem de luxo  nas esferas da Administração federal.

E aquele é o modelo para entes estaduais e municipais que aprovarem a ideia; poderão Estados e Municípios ou editar seus regulamentos sobre o art. 20 da lei ou, de outro modo que é muito frequente, encostar  no diploma federal e por ele orientarem suas licitações para compras sempre que envolvida a possibilidade de se enquadrar algum bem visado como sendo de luxo, os quais por princípio é proibido ao poder público adquirir se inexistir razão imperiosa para a exceção.

Assim como esse decreto acima citado regulamentou o art. 20 da Lei nº 14.133/21, diversos outros decretos disciplinam outros momentos da nova lei.

Exemplo: o Decreto nº 10.922, de 30 de dezembro de 2.021, regulamentou a atualização dos valores constantes da Lei nº 14.133/21.

Esse último é um assunto de competência exclusivamente federal, porém existem outros temas de interesse também local, como o art. 12, caput, inc. VII, que ensejou o Decreto nº 10.947, de 25 de janeiro de 2.022, versando sobre o plano anual de contratações – neste caso federal, porém que também precisa existir nos Estados e nos Municípios.  A matriz de inspiração está dada.

 

V – Tendo examinado um decreto no anterior artigo, vejamos agora uma portaria.

Em matéria administrativa de pessoal se afirma que o decreto é um ato de efeitos externos, e a portaria de efeitos individuais.

Em outras matérias porém, como na regulamentação de leis, a regra classificatória é a de que o decreto é ato privativo do chefe do Executivo e se aplica a todo o Executivo, enquanto que a portaria é o ato do chefe de algum ente que não o Executivo, pessoa essa que não tem competência para expedir decretos e expede portarias para o âmbito de seu ente descentralizado – e apenas aí a básica distinção entre um e outro ato: o diferente âmbito da competência regulamentar.

Vejamos os pontos principais  da Portaria SEGES/ME nº 938, de 2 de fevereiro de 2.022, do Ministério  da Economia, Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Secretaria de Gestão, e que  figura como nº 17 no quadro dos regulamentos, referido ao início deste artigo.

Esse diploma regulamenta para o âmbito federal, e para os Estados e Municípios que receberem verbas federais para custear suas compras, obras  ou serviços, o sistema de padronizações.

Pode ser entretanto utilizado, em tudo quanto couber ou convier adotar -  na forma do edital ou dos procedimentos de contratações diretas – por qualquer ente federativo, como pode também servir de modelo ou de inspiração para Estados e Municípios que pretendam disciplinar suas padronizações, procedimento auxiliar esse  que sempre foi uma excelente ideia para a Administração. 

PORTARIA SEGES/ME Nº 938, DE 2 DE FEVEREIRO DE 2022

Institui o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, em atendimento ao disposto no inciso II do art. 19 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021.

O SECRETÁRIO DE GESTÃO SUBSTITUTO DA SECRETARIA ESPECIAL DE DESBUROCRATIZAÇÃO (...) e tendo em vista o disposto no art. 19 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, resolve: (...)

Art. 1º Esta Portaria institui o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, em atendimento ao disposto no inciso II do art. 19 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021.

Parágrafo único. O catálogo eletrônico de padronização constitui ferramenta informatizada, disponibilizada e gerenciada pela Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, com indicação de preços, destinado a permitir a padronização de itens a serem contratados pela Administração e que estarão disponíveis para a licitação ou para contratação direta.

Art. 2º Os órgãos e entidades da Administração Pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, quando executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias, deverão observar as regras desta Portaria.

Art. 3º É admitida a adoção do catálogo de que trata o caput do art. 1º por todos os entes federativos, conforme dispõe o inciso II do art. 19 da Lei nº 14.133, de 2021. (..)

Art. 4º No processo de padronização do catálogo eletrônico de compras, serviços e obras, deverão ser observados:

I - a compatibilidade, na estrutura do Poder Executivo federal, de especificações estéticas, técnicas ou de desempenho;

II - os ganhos econômicos e de qualidade advindos;

III - o potencial de centralização de contratações de itens padronizados; e

IV - o não comprometimento, restrição ou frustração do caráter competitivo da contratação, ressalvada a situação excepcional de a padronização levar a fornecedor exclusivo, nos termos do inciso III do § 3º do art. 40 da Lei nº 14.133, de 2021.

Art. 5º O processo de padronização observará as seguintes etapas sucessivas, no mínimo:

I - emissão de parecer técnico sobre o item, considerados especificações técnicas e estéticas, desempenho, análise de contratações anteriores, custo e condições de manutenção e garantia, se couber;

II - convocação, pelo órgão ou entidade com competência para a padronização do item, com antecedência mínima de 8 (oito) dias úteis, de audiência pública à distância, via internet, para a apresentação da proposta de padronização;

III - submissão das minutas documentais de que tratam os incisos I, II, IV, e V do art. 6º, que compõem a proposta de item padronizado, à consulta pública, via internet, pelo prazo mínimo de 10 dias úteis, a contar da data de realização da audiência de que trata o inciso II deste artigo;

IV - compilação e tratamento, pelo órgão ou entidade responsável pela padronização do item, das sugestões submetidas formalmente pelos interessados por ocasião da consulta pública de que trata o inciso III;

V - despacho motivado da autoridade superior, com a decisão sobre a adoção do padrão;

VI - aprovação das minutas documentais de que trata o inciso III pela Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, em atenção ao disposto no inciso IV do art. 19 da Lei nº 14.133, de 2021;

VII - publicação, no sítio oficial do órgão ou entidade responsável pela padronização, sobre o resultado do processo, observado os requisitos estabelecidos no inciso III do art. 43 da Lei nº 14.133, de 2021; e

VIII - publicação no Portal Nacional de Contratações Públicas do item padronizado.

§ 1º O parecer técnico de que trata o inciso I do caput deverá ser elaborado por comissão de padronização, formada por, no mínimo, 3 (três) membros, sendo a maioria servidores efetivos ou empregados públicos do quadro permanente, permitida a contratação de terceiros para assisti-los e subsidiá-los. (...)

Art. 6º O catálogo eletrônico de padronização conterá os seguintes documentos e funcionalidades da fase preparatória de licitações:

I - anteprojeto, termo de referência ou projeto básico;

II - matriz de alocação de riscos, se couber;

III - conexão com o painel para consulta de preços, o banco de preços em saúde e a base nacional de notas fiscais eletrônicas, de forma a otimizar a determinação do valor estimado da contratação, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto;

IV - minuta de edital ou de aviso ou instrumento de contratação direta; e

V - minuta de contrato e de ata de registro de preços, se couber. (...)

Art. 7º O catálogo será estruturado nas seguintes categorias:

I - catálogo de compras, para bens móveis em geral;

II - catálogo de serviços, para serviços em geral; e

III - catálogo de obras e de serviços de engenharia, para projetos em geral ou serviços comuns de engenharia, de menores complexidades técnicas e operacionais. (...)

Art. 8º O órgão ou entidade competente poderá revisar o item já padronizado:

I - de ofício, sempre que entender conveniente e oportuna a revisão; ou

II - a requerimento de terceiro, após análise de viabilidade pela comissão de padronização. (...)

Art. 10. O catálogo eletrônico de padronização será utilizado em licitações cujo critério de julgamento seja o de menor preço ou o de maior desconto, bem como nas contratações diretas de que tratam os incisos I do art. 74 e os incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021.

Parágrafo único. A não utilização do catálogo eletrônico de padronização é situação excepcional, devendo ser justificada por escrito e anexada ao respectivo processo de contratação.

Art. 11. No emprego das minutas que compõem o catálogo eletrônico de padronização, apenas os campos informacionais indispensáveis à precisa caracterização da contratação poderão ser editados ou complementados, tais como:

I - quantitativos do objeto;

II - prazo de execução;

III - possibilidade de prorrogação, se couber;

IV - estimativa do valor da contratação ou orçamento detalhado do custo global da obra; e

V - informação sobre a adequação orçamentária. (...)

Art. 12. As informações sobre o catálogo eletrônico de padronização serão disponibilizadas no Portal Nacional de Contratações Públicas. (...)

Art. 14. Esta Portaria entra em vigor em 2º de fevereiro de 2022. RENATO RIBEIRO FENILI

O motivo de o governo federal ter editado portaria e não decreto foi seguramente o de que, sendo essa uma matéria específica de administração das aquisições, torna-se melhor restringir o âmbito regulamentar ao do Ministério por isso responsável, sem necessidade de um ato de espectro mais amplo. E essa técnica é igualmente aplicável a Estados e Municípios.

Ninguém duvide: regulamentar é também uma arte.