DISPENSA POR VALOR (L. 14.133/21, art. 75, I e II, e §§ 1º a 4º)

DISPENSA POR VALOR (L. 14.133/21, art. 75, I e II, e §§ 1º a 4º)

 

Ivan Barbosa Rigolin

(abr/23)

 

 

I – Um dos mais utilizados dispositivos de toda e qualquer lei de licitações é o que dispensa a licitação em face do valor do negócio. No Decreto-lei nº 2.300/86 era o art. 22, incs. I e II;   na Lei nº 8.666/93 era o art. 24, incs. I e II,   e nesta nova Lei nº 14.133/21 é o art. 75, incs. I e II, combinados com os §§ 1º a 4º, sobretudo o 1º.

Não é à toa que as dispensabilidades por valor vêm sempre na cabeça do rol daquelas hipóteses; com efeito,  o número de compras e de contratação de serviços abaixo do limite da ilicitabilidade é centenas ou milhares de vezes superior ao dos contratos licitados, porque essa é a regra das necessidades da Administração, como das de qualquer empresa, como das de qualquer pessoa.

Reza a Lei nº 14.133/21:

Art. 75:

Art. 75. É dispensável a licitação:

I - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;           

II - para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras;       (...)

§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:

I - o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;

II - o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

§ 2º Os valores referidos nos incisos I e II do caput deste artigo serão duplicados para compras, obras e serviços contratados por consórcio público ou por autarquia ou fundação qualificadas como agências executivas na forma da lei.

§ 3º As contratações de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 (três) dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa.

§ 4º As contratações de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).

 

II – Os valores abaixo dos quais se dispensa a licitação são aqueles constantes dos incs. I e II, sendo o inc. I (R$ 100.000,00) para obras, serviços de engenharia e manutenção de veículos, e o inc. II (R$ 50.000,00) para compras e outros serviços.

Ainda bem que a lei neste momento não chafurdou no ridículo dos serviços ‘especiais’ de engenharia (art. 6º XXI, b), algo que somente existe na confusa concepção do legislador.

Qualquer serviço de engenharia se enquadra no limite do inc. I.

Mas  a euforia de  muitos contratantes públicos sofre um baque ao se ler o § 1º do artigo, que impõe o limite anual, computado todo o exercício financeiro, para a despesa de até cem mil reais com obras e serviços de engenharia.

Ou seja: até esse valor está dispensada a licitação, porém somados todos os contratos havidos dentro do exercício, ou seja: se o ente gastou R$ 65.000,00 em um contrato direto, então dentro do mesmo ano somente poderá contratar até outros R$ 35.000,00 com dispensa de licitação.

Cem mil reais é aproximadamente o custo de levantar um muro que desabou com a chuva, ou refazer o telhado de um galpão.

A dádiva legal soa como uma esmola ao ente público, algo como o quadro do cidadão que descarrega suas incômodas e azinhavradas moedinhas como esmola ao pedinte – convicto da magnanimidade do seu coração.

A quem esperava poder gastar muitíssimo mais com obras e serviços especializados sem licitação – por acreditar no modernismo da nova lei, atenta à inflação que nunca dá trégua e à alta generalizada de todos os preços -, uma tremenda decepção. Piorou em muito  a livre contratação por valor.

E o mesmo, mutatis mutandis, com relação ao inc. II, para compras e outros serviços, com a metade do valor anual do inc. I.

A lei desta vez e neste ponto evidenciou que detesta, odeia, execra a compra direta, sem licitação ([1]).  Trata-se de um atraso de vida próprio do homem das cavernas, um troglodita institucional. Será, pergunta-se, que a corrupção reside nos incisos iniciais do artigo que dispensa licitações ?

Nota zero à inovação.

 

III - Mas uma consideração é importante: os limites de valor constantes dos incs. I e II do § 1º são para cada unidade gestora do ente público, como se lê do mesmo inc.

Ou seja: cada ente poderá despender tantas vezes por ano aquele  limites quantas forem as suas unidades gestoras.

Exemplificando, se o Município de São Paulo, que tem a população de três e meio Uruguais,  tiver 1.000 unidades gestoras, então poderá valer-se 1.000 vezes dos limites por exercício financeiro.

O Município paulista de Borá, com seus 838 habitantes em 2.020, se tiver uma só unidade gestora, valer-se-á do limite apenas uma vez.

É uma forma de a miséria ser menos miserável, mas aos preços do mercado de qualquer coisa os valores são muito baixos.

 

IV – Deverá voltar à cena, imagina-se,  o drama dos fracionamentos de obras e de serviços, essa palavra constituindo uma maldição ou um anátema para os contratantes públicos, que nunca sabem exatamente o que os controladores e os fiscais entendem por fracionamento, e  onde começa a sua ilegalidade.

Fracionamento – real, não escondido nem disfarçado – é muita vez uma necessidade incontornável do poder público, que não pode realizar de uma só vez o seu escopo, ou porque não tem dinheiro para tanto, ou porque não tem o projeto integral e precisa testar a parte que detêm antes de contratar o conjunto completo, ou por outras inúmeras razões.

O rodoanel de São Paulo está sendo construído há mais de vinte anos aos trancos e barrancos, sendo que última fração, de 44 Km,  foi agora licitada e contratada.

A linha amarela do metrô de São Paulo levou tempo similar para ser concluída, após fracionamentos sem fim.

Os programas habitacionais são todos, sempre, fracionados.

As duplicações de estradas, idem.  Os serviços de coleta de lixo, idem.  As dragagens dos rios nas áreas paulistanas, e as obras contra enchentes, idem.  As obras contra a seca, idem.

Poucas grandes obras, e poucos grandes serviços, escapam de um confessado e amiúde de vezes planejado fracionamento, de resto imprescindível  ou absolutamente recomendável do plano técnico, e portanto perfeitamente lícito.

Reitere-se: o que nunca se admitiu, não se admite e dificilmente um dia se irá admitir é o fracionamento artificial, sem explicação, desmotivado, sem razão técnica, financeira ou político-administrativa que o justificasse.

Não se admite fracionar apenas porque assim deu na veneta da autoridade, que tinha o projeto inteiro, tinha a verba necessária inteira, tinha todo o mais de que necessitava para adquirir todo o objeto, e sem explicação partiu-o em frações. Quem assim procede está pedindo para ser reprovado.

 

V - Agora desçamos ao plano dos pequenos contratos:  escapam eles da necessidade de fracionamentos ?

Absolutamente não: se é um serviço complexo, a exigir diagnóstico, projeto, compra de material e execução de serviços, e se quem vende um não executa o outro, então como não fracionar a obtenção desse objeto ?

Se o cidadão adquire projeto antes, depois compra o material e apenas na sequência  inicia a construção da sua casa, então será que a fiscalização imagina que na Administração o mundo é diferente, e as premências são outras ?

Recomenda-se à fiscalização, assim sendo,  ser bastante técnica e  realística quanto ao exame do que sejam ou possam ser fracionamentos, para separar os necessários e lícitos dos artificiais e ilícitos – ou praticará injustiça.

Mas sinistramente sobrepaira  toda essa teoria o valor, absolutamente patético, de cem mil reais anuais. E diante desse patamar resulta desanimador formular  teorias e tecer lucubrações ...  e estas considerações antes valem para os contratos de alto valor, licitados ou diretos por dispensa com base em outros incisos do art. 75.

 

VI – Que é unidade gestora (art. 75, § 1º, inc. I, in fine).

Não foram suficientes as 60 (sessenta) definições do art. 6º da lei para comportar a definição de unidade gestora, que surge no inc. I do § 1º do art. 75.

Mas é aquela unidade, órgão  ou repartição da organização administrativa de cada ente público – dependendo de cada organização administrativa interna -, que tem função de administrar ao menos a observância dos limites de valor para contratos diretos com dispensa de licitação.

Mas apenas para isso serve a unidade gestora ? Pelo que se lê da lei não se lhe vislumbra outra função senão essa.

Se isso for verdade – o que friamente custa crer pela dimensão microscópica do papel da unidade gestora -  mas do que desproporcional a previsão é de um ridículo absoluto dentro das categorias administrativas.

Mas. seja como for, essa função acima, exposta na lei, está clara. Imagina-se que a unidade gestora possa também gestionar os demais contratos, licitados, mas tal é matéria para as regras internas de cada ente público, que regra e disciplina a sua organização com a mais ampla liberdade dentro apenas das linhas constitucionais.

 

VII - Fez bem a lei nacional ao nem tentar impor coisa alguma quanto a isso sobre a organização dos entes públicos, até mesmo os federais, e com muito mais razão os estaduais, os distritais e os municipais.

Cada ente deve dispor sobre esse tema em legislação e em regramento seu, sem precisar olhar o Estado vizinho, ou o Município al lado, ou a capital do Estado.

A matéria se insere no âmbito do interesse exclusivamente local, o peculiar interesse de cada comunidade, e por essa comunidade deve ser disciplinado à exceção de qualquer outro regramento alheio. A Constituição assegura autonomia administrativa a cada pessoa de direito público interno, no art. 25 para os Estados e no art. 30 para os Municípios.

Se um pequeno Município quer que a unidade gestora seja o Executivo, então que o declare em regra sua, e assim será.  Se um grande Município quer ter centenas de unidades gestoras, faça-o então por  regra própria.

Assunto, para nós, encerrado.

 

VIII – Que são objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade (art. 75, § 1º, inc. II) ?

Voltou a assombração da subjetividade. Voltaram os abantesmas dos conceitos indeterminados. Retornaram as almas penadas do direito, para infernizar os desafortunados administrados.

Seria como dizer que o legislador não dá um ponto sem nó...

Muro é da mesma natureza que pátio ?  Uma garagem é da mesma natureza de um depósito ? Uma estrada é da mesma natureza de um estacionamento ?

Copo é da mesma natureza que panela ? Refrigerador é da mesma natureza que aspirador ?  Toalha de banho é da mesma natureza que lona de caminhão ?

Até onde vai a similaridade entre esses objetos acima, e na infinidade dos demais objetos ?

Até onde a natureza de um é a mesma natureza de outro ?

Será que apenas porque se compram copos e panelas no mesmo estabelecimento esses objetos têm a mesma natureza ?  Será que porque acaso são da mesma marca são também da mesma natureza ?

Será que apenas porque uma construtora executa estradas e constrói um estacionamento esses objetos são de natureza  igual, ou similar ?

Uma piscina tem a mesma natureza de um gigantesco edifício comercial, apenas porque ambos são obras ?

Papel sulfite tem a mesma natureza de impressora ?  Tinta de impressora tem a mesma natureza de tinta de parede, ou de tinta de produtos de maquiagem ?

 

IX - O legislador ao dispor sobre conceitos abertos, vagos ou indeterminados, de interpretação cem por cento subjetiva de cada leitor, lembra aquele benemérito ente público que resolveu o problema das quedas de avião: pendura-se o aeroplano num cabo de aço do começo ao fim da viagem; se o motor falhar a aeronave fica pendurada até chegar o socorro.

Indagado onde se fixariam os terminais o ente se esquivou de responder, alegando que essa questão pertence à área técnica, estranha aos seus fins institucionais.

Resulta muito cômodo ao legislador tratar de objetos de mesma natureza, ou similares, e ainda mais indicado que o traço de similaridade se dá entre dois objetos compreendidos no mesmo ramo s de atividade de quem os fornece !

É espantosa a desfaçatez, e o desprezo completo da lógica racional, e o alheamento legal dos problemas na prática do dia-a-dia dos operadores !

Se fosse esta a primeira vez no direito brasileiro em que tal fenômeno ocorre, então tudo seria devido ao noviciado e à inexperiência do legislador. Mas não é, e há décadas. Com máxima frequência a lei brasileira se vale de conceitos indeterminados - e indetermináveis até pelas pitonisas gregas ou pelo Plenário dos Deuses do Olimpo.

Tente alguém, om efeito, objetivar conceitos como estes do inc. II, do § 1º.  Será  acrescer  uma arbitrariedade a outra, um personalismo a outro, uma incerteza a outra, uma impressão pessoal a outra – independentemente de que as melhores intenções estejam presentes.

Pau que nasce torto morre torto.

Se a lei pretende ser compreendida -  aplicável, eficaz, organizativa e não tumultuária (terrorística ?..) – então rejeite de antemão valer-se de conceitos que não remetem a lugar algum, mas que apenas intimidam e amedrontam o aturdido aplicador.

Viva então o bom-senso,  o senso médio das pessoas - apurável pela média conhecida das situações, e não fruto de algoritmo ou previsão da televisão ou de rede social -, se salvação houver ([2]).

Nesse sentido e para concluir este tópico, ai do aplicador cuja interpretação descoincida, nessa selva conceitual escura e tenebrosa,  com a do fiscal da sua conta ...

 

X – Os parágrafos do artigo, além do 1º que é de relevância essencial, estendem o sofrimento de ler o artigo inteiro – um suplício imposto por quase toda a lei.

O § 2º duplica os valores–limites quando o ente é uma agência executiva (fundação ou autarquia), assim criada e definida em lei,  ou quando se trata de um consórcio público, constituído na forma da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2.005. A ideia  não é nova, constando, um pouco diferente em valores e abrangência, do § 1º do art. 24 da Lei nº 8.666/93.

Os § 3º e 4º deste art. 75 podem ser desconsiderados, porque não contêm comandos mas meras recomendações, veiculadas pelo advérbio preferencialmente.

Sempre advertimos em livros, artigos, aulas, palestras e onde mais tivermos voz que disposições jurídicas que recomendem, ou que indiquem caminhos preferenciais, sejam pulados, como se não existissem, porque lei não é catecismo nem manual de aconselhamento.

Tudo o que numa lei venha escrito após o advérbio preferencialmente, ou recomendavelmente, de nada presta, e não vale a tinta gasta na impressão, se nos dias de hoje alguma tinta foi gasta.

Se não for para alterar o direito mas apenas para recomendar condutas a lei simplesmente não deve existir, e até porque se supõe que quem a lê não procura conselhos, e que tenha mais o que fazer na vida senão conjeturar sobre recomendações ou aconselhamentos.

 

 

 

 

[1] Não deixa de ser curioso. Na Lei nº 8.666/93 o artigo que mais cresceu – mais que a população da Índia – foi o 24, a lista das licitações dispensáveis, sempre por leis propostas pelo Executivo, e a evidenciar que o governo detestava licitação.  Agora a moda se inverteu, e nesta Lei nº 14.133/21. que tem origem parlamentar, de detestada a licitação passou a ser desejada acima de todas as coisas ...

[2] E reconheçamos que para nós falar é fácil...