LICITAÇÃO – DIREITOS QUE A BOA ADMINISTRAÇÃO NÃO EXERCITARÁ

LICITAÇÃO  –  DIREITOS  QUE  A BOA ADMINISTRAÇÃO  NÃO  EXERCITARÁ

 

Ivan Barbosa Rigolin

(ago/23)

 

I – Enquanto se aguarda a – assaz anunciada mas até este ponto jamais executada  – morte da Lei nº 8.666/94, aquela que se e quando enfim for revogada nos deverá levar a refletir no sentido de que éramos felizes mas não sabíamos,  e em paralelo e complemento ao livro já escrito comentam-se agora alguns  pontos da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021.

Desde essa última data – curiosamente o dia da mentira - a nova lei  está em vigor alternativo à Lei nº 8.666/93, porém da nova lei  os envolvidos em licitação, praticamente à unanimidade,  têm preferido esquivar-se como foge o Mafarrico do crucifixo sagrado.

Com efeito,  fora realizada uma enquete sobre qual lei todos os profissionais vinculados a licitações preferem, imagina-se que  o resultado seria de aproximadamente 100 % em favor da Lei nº 8.666/93, e  em torno de 0 % em prol da nova lei – números estimados com base em tudo o que se vê, se lê e se ouve comentar desde abril de 2.021.

Da nova lei, que pela observação e ainda que contenha pontos elogiáveis e de grande qualidade,  é tida pelo conjunto final das suas disposições como tecnicamente arrepiante, pinçam-se desta vez alguns direitos do ente público que, facutativos como  por definição são todos os direitos, parece absolutamente melhor não utilizar do que utilizar ([1]).

É o caso dos direitos previstos em

- art. 2º, inc. IV (concessão e permissão de uso);

- art. 21 (audiência pública);

- art. 22 (matriz de riscos, cf. art. 6º, inc. XXVII);   

- art. 24 (orçamento sigiloso);

- art. 25, § 8º (repactuação, cf. art. 6º, inc. LIX);

- art. 26 (margem de preferência para nacionais) ;

- art. 32 (diálogo competitivo, cf. art. 6º, inc. XLII);

- art. 63, inc. I (declaração do licitante).

Bastam tais dispositivos para este breve artigo. Não é nem de longe uma lista exaustiva, porque existem outras facultatividades na lei cujo exercício é francamente desaconselhável.

 

II – Art. 2º, inc. IV.

Informa o caput mais o inciso que ‘Esta lei se aplica a: (...)  IV – concessão e permissão de uso de bens públicos’.

Isto está simplesmente errado. Não é nada disso que o direito determina. Não se aplica, nunca se aplicou e se a racionalidade jurídica persistir jamais se aplicará.

Disséramos em artigo de junho de 2.022 ([2]) que

Dentro do direito administrativo quando se mencionam os institutos da  concessão, da  permissão e da autorização imediatamente vem à mente serviços públicos, ou de utilidade pública, sejam a concessão, a permissão e a autorização de serviços. (...)

São três as tradicionais e clássicas espécies de trespasse do uso de bens públicos para particulares: concessão de uso, permissão de uso e autorização de uso.

Diferentemente dos trespasses de serviço público – que pela sua relevância, complexidade e abrangência do interesse público envolvido, que em geral não é apenas local mas por vezes até mesmo do tamanho do país – as normas de regência dos trespasses de uso de bens públicos são por excelência locais. (...)

O principal diploma da organização municipal é a Lei Orgânica do Município, algo como – guardadas as competências e as diferenças constitucionais – uma miniconstituição local.

E é exatamente na lei orgânica  de cada Município que vem disiciplinado o trespasse do uso dos seus bens públicos, ou seja a forma pela qual o uso de cada um deles pode ser entregue à iniciativa privada, remuneradamente ou não, sempre na perseguição do interesse público e dentro das regras rigidamente estabelecidas pelo ente titular.

Estados

VII - Nos Estados-membros da federação, regidos pelas Constituições respectivas que lhes dão sempre as primeiras balizas estruturais e organizacionais,   a matéria que escapar da Constituição estadual será disciplinada e resolvida na legislação estadual – que apenas observará  os mínimos e as restrições constitucionais federais.

Para não ir além na transcrição assim se resume o que ora se pretende deixar claro: não é nem será em nenhuma lei nacional de licitações que os entes federados – muito especialmente Estados, Distrito Federal e Municípios – encontram nem encontrarão regras ou fundamentos para operar suas concessões de uso, suas permissões de uso e suas autorizações de uso, todas referentes aos bens públicos que cada uma dessas pessoas de direito público interno administra.

Os Municípios têm nas suas leis orgânicas as balizas para fazê-lo; os Estados e o Distrito Federal as têm nas suas Constituições e nas suas leis específicas sobre essa matéria.

A própria União não se rende às leis de licitações para outorgar suas concessões e permissões de uso de bens públicos federais, a uma porque o assunto não é próprio de leis nacionais de licitações e de contratos administrativos, e a duas  porque esses mencionados atos não são contratos, mas atos administrativos  unilaterais de outorga.

A patética, gratuita e despreocupada previsão do inc. IV do art. 2º da Lei nº 14.133/21 é o bobo alegre do episódio dos trespasses de uso de bens públicos, e foi herdada da grossa embrulhada entre concessão e permissão de serviço de um lado,  e concessão e permissão de uso de outro lado,  que a Lei nº 8.666/93 manteve durante os últimos 30 anos. A origem do inc. IV do art. 2º da nova lei é portanto a pior possível.

Jamais deve  um ente federado tentar outorgar a ninguém uma concessão de uso ou uma permissão de uso de seus bens públicos pela lei nacional das licitações, seja ela a Lei nº 8.666/93, seja a Lei nº 14.133/21, seja  qualquer outra que venha a eclodir no ordenamento jurídico tupiniquim. Uma lei de alhos não disciplina bugalhos, como seria dar palpites no casamento alheio.

 

III – Art.  21.

Este art.21, que representa uma favorável evolução ante o art. 39 da  Lei nº 8.666/93,  para o qual a audiência era obrigatória nas grandes empreitadas pretendidas pelo poder público, avantaja-se tecnicamente ao apenas permitir que o ente promova a audiência – o que de resto sempre foi permitido, com lei, sem lei ou apesar da lei: o ente pode promover audiências públicas sobre ou para o quê bem quiser, sempre. Nada jamais o impediu, dentro de seu poder discricionário.

Apenas é de recordar que aquela audiência do art. 39 da lei que ainda está em vigor jamais serviu para coisa nenhuma, nunca.

Constituía, como constitui, uma rematada inutilidade, perda de tempo, leviandade institucional de cunho demagógico e propagandístico como um moralismo de circo, porém custava e custa tempo, trabalho e dinheiro ao poder público -  que além disso supõe-se que tenha mais o que fazer.

Na medida em que o resultado ou o  efeito da audiência nunca vinculou a vontade da autoridade que a promoveu, então para que diabos servia, ou serve ?  Fosse qual fosse aquele resultado da reunião, a autoridade realizava a licitação anunciada ou não, a seu talante, sem qualquer obrigação de coisa nenhuma ...   ora, mas que fanfarronada !

Ao sensato e ajuizado administrador local se recomenda enfaticamente jamais cogitar em realizar uma tal audiência, dispêndio público esse tão útil quanto uma broncopneumonia dupla no porteiro do cemitério, ou uma colisão de trens de enxofre. Por mais desocupado que seja ou esteja o agente público, algo melhor que perder todo esse tempo ele sempre poderá fazer. 

 

IV – Art. 22.

Deste artigo somente interessa ter presente uma parte do caput, pois que todo o resto lhe é decorrência:

O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado (...)

Como mais uma atração do festival nacional de inutilidades a Lei nº 14.133/21 desta vez apresenta a matriz de riscos.

Inutilidade absoluta, sim, pelas seguintes razões:

- sempre o edital pôde e pode contemplar matriz de riscos. Não é preciso uma lei autorizá-lo.

Quanto o ente licitador entender que pela natureza do objeto do contrato os riscos financeiros e/ou operacionais e/ou de qualquer outra natureza são tão sérios que exijam a precaução adicional de uma tabela em que se contemplem compensações extraordinárias por impasses e/ou danos ensejados ao contratado – o que se denomina álea contratual extraordiária, ou seja zona de riscos incomuns, inusuais, que refogem àqueles comuns de todo contrato complexo -, então naturalmente o autor do edital incluirá  uma matriz de riscos entre as regras editalícias.

E será obrigado a incluir, ou de outro modo não encontrará um só interessado em licitar em todo o sistema solar, porque empresário nenhum é louco.

Que contrato sério de concessão de serviço de transporte coletivo deixa de contemplar uma matriz de riscos, e uma tabela de compensações financeiras ?  Ou de outro modo em uma pandemia como a ocorrida em 2.020 até 2.022 o concessionário restará sentado na calçada e chupando os dedos, enquanto sua frota enferruja na garagem e as contas não param de lhe chegar ...

- nos objetos  frequentes de contratos de serviços e de obras já existem mecanismos de sobra nas leis de licitações para assegurar o equilíbrio inicial e o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos firmados pelo poder público com particulares, dispensando o complicômetro  adicional  da matriz de riscos.

Uma matriz de riscos que não se sabe bem a quê veio deve atrapalhar a solução de problemas da execução mais do que auxiliar, sabendo-se que existem institutos de recomposição do valor justo da equação contratual. De  um jogo com dois juízes espere-se sempre o pior ...

- pior  que isso, uma matriz de riscos que não seja absolutamente indispensável, mais do que confundir pode mesmo induzir  o contratado a pedir majorações do preço contratado ao arrepio daqueles institutos reequilibrantes – como uma criança que quer provar um prato novo. A matriz de risco pode lhe dar ideias.

O empresário não é nem criança nem aventureiro inconsequente, mas, como todo respeito, não deve nem precisa ser estimulado a tentar provocar soluções alternativas às regras clássicas, que nas leis de licitação são mais do que suficientes para consertar desajustes financeiros supervenientes à assinatura do termo – e que são exercitadas à exaustão em nosso direito.

 

V – Art. 24.

Cuida esse dispositivo, autorizando-o em caráter facultativo, de orçamento sigiloso da Administração, nas licitações e nos editais.

Ora, será  que de fato o país está andando para trás ?

O que a lei quis com isso: segredo de Estado num orçamento de obra ou de serviço ?  Sigilo numa cotação da construção de uma estrada, um estádio de futebol ou um serviço de manutenção predial ?

Os empreendimentos estratégicos cuja publicidade possa comprometer a segurança do Estado, mesmo que não estivessem ressalvados no dispositivo como ensejadores de sigilo já seriam naturalmente sigilosos na forma da lei de salvaguarda dos assuntos sigilosos, e não precisaria a lei de licitações repisar essa regra, que se aplica com lei de licitações, sem lei ou apesar da lei.

Será que o legislador crê ou imagina que permitir à autoridade local emprestar segredo a um orçamento público fará aquela autoridade sentir-se importante, ou poderosa ?  Se a lei pode ser tão ridícula até esse ponto então também nós, baseados na igualdade, invocamos o mesmo direito de imaginação.

Ora, se a Lei nº 8.666/93 impôs como obrigatório anexo do edital de obras ou de serviços o orçamento da elaborado pela própria Administração, precisamente  para orientar o mercado fornecedor e impedir propostas aventurescas e desparametradas que eram comuns antes daquela lei, então que sentido faz um orçamento orientador do mercado e que seja sigiloso ?   Orientação sigilosa ?  Lembra o agente secreto que adentrando um táxi teve perguntado o seu destino, e respondeu que era agente secreto e o endereço não interessava ao taxista.

Não tem pé nem cabeça segredar  uma peça pública de informação financeira para o mercado, eis que é apenas com esse propósito que existe  o anexo de orçamento oficial nas licitações.

 

VI – Art. 25, § 8º.

Aqui a questão é mais séria porque se trata de um evidente defeito conceitual da lei, e não de matéria colocada como simples faculdade  para       o ente licitador; então muito cuidado ao operar com as categorias jurídicas, já que o terreno é de areia movediça.

A fórmula da Lei nº 8.666/93 é cem por cento melhor, corretíssima, assim resumida:

- (art. 40, inc. XI) reajuste ou reajustamento é o acréscimo de valor ao contrato devido à mera aplicação do índice de reajuste previsto no edital, na data preestabelecida e sem alteração do pacto econômico-financeiro  do contrato, e sem termo aditivo mas mera averbação;

- (art. 65, inc. II, al. d, e § 5º) repactuação, ou revisão  é a alteração do contrato e de seu pacto econômico-financeiro, via termo aditivo  consensual entre as partes, para reequilibar a equação financeira acordada originariamente, tudo em face de seu desequilibramento superveniente ante fatores e cambiâncias da economia e do mercado.

Isso é que corretamente consta da Lei nº 8.666/93 e parece claríssimo, até  a Lei nº 14.133/21  armar a mixórdia que segue informada:

Art. 6º (...) LIX - repactuação: forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contrato utilizada para serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, por meio da análise da variação dos custos contratuais, devendo estar prevista no edital com data vinculada à apresentação das propostas, para os custos decorrentes do mercado, e com data vinculada ao acordo, à convenção coletiva ou ao dissídio coletivo ao qual o orçamento esteja vinculado, para os custos decorrentes da mão de obra; (...)

Art. 25 (...)  § 8º Nas licitações de serviços contínuos, observado o interregno mínimo de 1 (um) ano, o critério de reajustamento será por:

I - reajustamento em sentido estrito, quando não houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante previsão de índices específicos ou setoriais;

II - repactuação, quando houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante demonstração analítica da variação dos custos.

É difícil acreditar no que está escrito como  definição de repactuação, do inc. XIL do art. 6º da, de outro modo  apavorante, Lei nº 14.133/21. Seus defeitos são os seguintes:

- repactuação serve apenas para reequilibrar contratos de serviços contínuos com regime de predominância ou exclusividade de mão-de-obra ?  É assim agora ?  Então não pode existir repactuação num contrato de obra – sendo que os contratos de grandes obras são por excelência aqueles que na prática quase sempre ensejam as mais amplas e abrangentes repactuações, sendo raro um que siga até  o fim com o preço originário ? Não existe repactuação em obras. é isso que a lei pretendeu estabelecer ?  Como, onde, por quê  e quando isso é possível ?;

- são somente esses serviços contínuos com predominância de mão-de-obra que permitem repactuação ? Um serviço que não é continuado, como a pintura de um imenso prédio, ou a eletrificação  de   imensas instalações, esses não admitem repactuação ?;

- então uma repactuação deve estar prevista no edital ? O edital é bola de cristal, que adivinha se e quando será necessário reequilibrar o contrato que dele advenha ?  Edital-bola de cristal  ?   Faz algum sentido ?;

- agora o art. 25, § 8º, inc. I.  Existe reajustamento em sentido genérico ? Onde está ? Se existe, qual a diferença entre isso e o reajustamento em sentido estrito ?

Se não existe outro reajustamento, então não faz sentido a lei instituir o sentido estrito, que somente confunde. Bastaria instituir repactuação de um lado e reajustamento de outro, como está na Lei nº 8.666/93, e tudo estaria no seu lugar. A lei mexe em time que está ganhando, e o resultado é este desastre;

- dada essa mixórdia acima, pelo § 8º temos critério de reajustamento por (I) reajustamento em sentido estrito e (II) repactuação – e talvez o legislador estivesse pretendendo que o reajustamento por repactuação seja aquele reajustamento ‘em sentido genérico’. 

Ora, por tudo que é sagrado, alguém imagina um reajustamento por repactuação, se esses são institutos diametralmente opostos, como se viu acima ?  Reajuste é mera aplicação do índice de reajuste, o repactuação é um novo pacto, uma alteração do pacto contratual originário  por desequilíbrio econômico-financeiro superveniente ao início da execução.  Como então misturar, baralhar ou confundir instituições tão diferentes ?   Como se pode utilizar uma pela outra ?  

Fez a lei como seria classificar o ser humano em homem em sentido estrito e mulher. O retrocesso técnico e conceitual é acachapante, como uma pedra que arrasta o envolvido para o fundo do mar.

O que se recomenda – tremendo de medo de que as diversas fiscalizações tentem encontrar algum senso lógico nessa parte da nova lei – é aplicar os institutos do reajuste e da repactuação como constam  na Lei nº 8.666/93.   É essa a única forma que  faz sentido e que tem lógica.

E se augura também que o legislador revise, o quanto antes, esta passagem francamente embaraçosa do nosso direito.

 

VII – Art. 26.

Autoriza esse artigo que o ente público que licita consigne uma margem de preferência aos licitantes ou aos produtos nacionais nas licitações em que estrangeiros e brasileiros empatem.

De início seja consignado que em nossos quarenta anos de experiência com licitações jamais testemunhamos ou ouvimos relato de um só empate entre propostas nacionais e propostas estrangeiras. Teoricamente pode acontecer, como pode acontecer que tenhamos êxito na mega-sena da loto (não se sabe se o nome é esse), sobretudo sem jogar.  Para o Altíssimo sabe-se que nada é impossível.

Mas o importante é esta recomendação: não seja dada preferência facultativa a ninguém, por motivo nenhum salvo os objetivos e expressos da lei, como no caso das micro e pequenas empresas, que têm privilégios legais ante as demais empresas, e que por isso têm direitos legais em vez de facultativas preferências que o edital lhes poderia dar. Não. Se a lei privilegia alguém, então esse alguém passa a ter o direito legal de ser tratado com distinção, e assunto encerrado.

No  caso do art. 26 a Lei nº 14.133/21 autoriza o ente licitador que consigne no edital alguma preferência a nacionais, o que é uma excrescência técnica própria do  país dos coitadinhos que a todo tempo encostam no Estado e dele esperam favores de mão beijada. E a esmola para um homem que é são – pontificava Luiz Gonzaga – ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.

Licitação não existe para proteger licitantes locais frente aos forasteiros, nem licitantes nacionais ante os estrangeiros. Licitação existe para permitir ao ente público adquirir o que precisa pela proposta mais vantajosa – nem sempre a de menor preço isolado, mas aquela ao final mais proveitosa ao poder público.

Não se presta a ajudar os amigos ou os aliados, porque não é campanha social nem ato de benemerência com o dinheiro público;  licitação, não !

Se a proposta vier do último cantão da China, ou se vier de Marte mas se for a que melhor atenda o interesse público, essa deverá ser a escolhida. Repita-se: não será necessariamente a de menor preço, uma vez que o barato muita vez sai caro.

O que entretanto não se justifica é preferir o nacional apenas por ser nacional, em especial se isso se der com prejuízo do global e final interesse do ente que licita.

Patriotismo é uma coisa, e desvio de finalidade é outra.

 

VIII – Art. 32.

O assunto é  diálogo competitivo – sim, senhores, na nova lei isso existe !

Disséramos em artigo de abril de 2.022:

Agora a questão se apresenta mais patética: diálogo competitivo é algo da mais absurda e rematada despiciência – para não repetir inutilidade, assaz de vezes utilizada neste texto.

Não tem motivo de existir, nem razão nenhuma de ter sido escrita na lei. Lembra a ideia de quem deseja viajar de Brasília a Manaus e corta o caminho  por Porto Alegre... 

A impressão é a de que o legislador quis passar para a história do direito brasileiro como o criador de instituições unicamente originais.

Mais uma vez introduz a pedra na sopa, porque originalidade não significa boa qualidade, e uma lenda urbana legislativa  como esta  no máximo terá o condão de introduzir na cabeça do desavisado aplicador da lei a bazófia de que algum diálogo competitivo seja,  um dia na sua vida e no seu ofício, necessária.  Não é e dificilmente será, mas o estrago aos desavisados e aos crédulos pode estar a caminho. ([3])

E em nosso já mencionado livro consta no comentário ao art. 32 da nova lei de licitações:

Artigo que resume um vasto amontoado de futilidades, retiradas em geral de cartola de mágico e concebidas por alguém que se deve imaginar um prodígio de criatividade,  e que pela subjetividade inteira e absoluta desde já se recomenda que, se possível, jamais seja utilizado  por ente nenhum da Administração pública, porque jamais foi necessário até  o dia de hoje nada semelhante, e porque os negócios públicos jamais se ressentiram da falta de algo semelhante.    (...)

Verifique se o objeto pretendido pode enquadrar-se nas als. b e c do inc. I, ou seja se parecer impossível tratar o objeto do modo tradicional, descrevendo-se-o adequadamente no edital. Para nós não existe objeto no universo que não possa ser descrito adequadamente. Desafiamos alguém a nos exibir algum.  

Se o homem foi capaz de chegar a uma tecnologia tão requintada que chegue de início a assustar, foi porque passou por diversos e penosos estágios de desenvolvimento, e nessa hipótese com muitíssimo maior  facilidade terá condição de simplesmente descrever aquelas fases, aquele progresso gradativo e o resultado final, com a indicação de toda a utilidade ou a serventia do que concebeu.  É sempre muito mais árduo inventar que descrever a invenção.

E a Administração, será que outra vez desconhece o de que precisa ? Já não basta o concurso para sugerir objetos ao ente público que não sabe o que quer ?

Sem mais. Autoridade, meditai e refleti.

 

IX – Art. 63. inc. I.

O tema é a declaração do licitante de que preenche os requisitos do edital, durante a habilitação as licitações, que neste ponto a nova lei permite que o edital exija.

Neste momento a nova lei  está muito melhor que o infinitamente estúpido  inc. VII do art. 4º da lei do pregão (Lei nº 10.520, de 17/7/02),  a qual lei será revogada juntamente com a Lei nº 8.666/93 nos  estertores de 2.023 – se nada de diferente acontecer até lá.

Como mera faculdade dada ao edital de exigir essa asneira de morder a nuca apenas se quiser, evoluiu muito o direito, da anterior obrigação nos pregões.

Sim, porque o licitante, munido da ampla documentação que obteve  pode entender, e por vezes com carradas de razão, que atende as exigências habilitatórias do edital,  porém assim pode não entender a comissão ou o julgador do certame, e  com isso declarar que o mesmo licitante não atendeu este ou aquele requisito.

Ora, se desatender o edital o único prejudicado será o próprio licitante, porque será inabilitado e descartado do certame.  Ele tem todo interesse em atender o ato convocatório, e se for sério de duas uma: ou junta tudo o que o edital exigiu, e tem essa convicção, ou simplesmente não participa do certame, porque de antemão se sabe inabilitado.

E imagina-se que se declarou atender e a comissão entende que não atendeu se o possa adicionalmente apenar ­- quando o maior prejudicado já foi ele mesmo – aí se transcende o último limite da decência e da razoabilidade.

Seja como for, não se pode exigir do licitante que obrigatoriamente satisfaça a comissão julgadora e a convença de que apresentou todo o exigido: ele entende que o fez, porém simplesmente não pode responder pelos critérios da comissão, nem se tornar clarividente quanto a isso do dia para a noite.

Nunca foi possível compreender porque a lei do pregão teceu aquela absurda exigência, das mais bisonhas sob qualquer ponto de vista.

Então, por esses motivos de pura lógica o que enfaticamente se recomenda ao autor dos editais é jamais exigir uma tal declaração.

 

 

[1] Registre-se neste ponto a prebenda doutrinária sobre direitos irrenunciáveis, que alguns defendem que existem. É o caso dos alimentos em direito civil, que parte da doutrina entende que não podem ser renunciados pelo titular, ou pelo seu tutor em nome do tutelado. Direito irrenunciável para nós é uma roda quadrada, um sol escuro, um zumbi ou um chupa-cabras jurídico, uma aberração lógica, uma faca sem lâmina e sem cabo, uma contradictio in terminis, uma mula sem cabeça, algo assim. Direito que não possa ser renunciado simplesmente não é direito: é dever, obrigação. Se alguém não pode renunciar ao seu direito a alimentos, então passa a ter o dever de recebê-los, sic et simpliciter. Não se consegue compreender como alguém possa defender uma tal tese, que Monteiro Lobato talvez classificasse  sesquipedal.

[2] Artigo Uso de bem público – concessão, permissão e autorização - na Lei nº 14.133/21, publ. em Revista Solução em Licitações e Contratos, Ed. SGP Soluções em Gestão Pública, ano 5, nº 53 – ago/22, p. 41; Boletim de Administração Pública Municipal, Fiorilli, ago/22, assunto 480; Revista Síntese de Direito Administrativo, set/22, nº 201, p. 40; Revista Governet, Boletim de Licitações e Contratos, fev/23, nº 214, p. 118.

[3] Artigo Matriz de riscos e diálogo competitivo a pedra na sopa das licitações, in Revista Solução em Licitações e Contratos, Ed. SGP Soluções em Gestão Pública, ano 5, nº 51 – jun/22, p. 53; Revista Governet, Boletim de Licitações e Contratos, ago/ 22, nº 208, p. 721.